Desgoverno: Verbas de até US$ 1,5 bilhão do setor audiovisual teriam sumido

A falta de transparência do desgoverno atual não se limita aos dados sobre a covid-19. Na última sexta-feira (5/6), a Ancine (Agência Nacional do Cinema) disponibilizou números enigmáticos sobre o FSA, o […]

Divulgação/Paris Filmes

A falta de transparência do desgoverno atual não se limita aos dados sobre a covid-19. Na última sexta-feira (5/6), a Ancine (Agência Nacional do Cinema) disponibilizou números enigmáticos sobre o FSA, o fundo do setor audiovisual brasileiro.

Seis meses depois de anunciar um montante de R$ 703,7 milhões, relativo à taxas cobradas em 2018, disponível para produções de filmes, séries e games nacionais em 2019, e após adiar a liberação dessa verba ao infinito, a Ancine dá a entender que esse dinheiro simplesmente não existe – ou sumiu.

Em um relatório que só fará sentido após passar por uma bancada de auditores especializados (leia a nota pública aqui), a Ancine revelou que o FSA, que deveria ter cerca de R$ 1,5 bilhão (sem contabilizar juros), apresenta saldo negativo, sendo na verdade um fundo deficitário.

Onde está o dinheiro? É o que quer saber o TCU (Tribunal de Contas da União). Esse relatório abracadabra, complexo para um olhar leigo, já é resultado de um questionamento da Justiça, que busca a explicação sempre cobrada pela Pipoca Moderna sobre o motivo de a Ancine não lançar edital algum para o setor audiovisual desde que Bolsonaro assumiu o desgoverno federal.

A Ancine parece sugerir sob seus números opacos que a fortuna foi corroída, talvez por má gestão financeira da diretoria anterior, talvez por desmandos do desgoverno atual e talvez ainda por outros “detalhes” burocráticos, incluindo pedaladas fiscais – elas mesmas, as famosas.

Entretanto, há apenas seis meses a atual diretoria anunciou que o valor existia, dando publicidade até a seus centavos. E tem o detalhe: os tais R$ 703,7 milhões já eram menores que o montante previsto e se referem à arrecadação de 2018, disponível para fomentos do ano passado – que não aconteceram. A taxa Condecine ainda continuou a ser cobrada durante todo o ano de 2019 e deveria ter gerado montante igual ou superior para o fomento do audiovisual em 2020. É o que apontam as planilhas.

O próprio site da Ancine apresenta as planilhas do FSA, que comprovam arrecadação de 1,1 bilhão em 2018 e mais 1,2 bilhão em 2019. Elas demonstram que, deste total, R$ 724 milhões deveriam ter sido destinados para fomento do audiovisual em dezembro de 2018. E em dezembro de 2019, a previsão era outro montante igual. Ou seja, praticamente 1,5 bilhão para a produção de novos filmes, séries e videogames brasileiros. Mas nenhum edital foi publicado para receber esses valores.

Até Bolsonaro, o fundo era sempre liberado no máximo nos primeiros meses de cada ano. Mas as últimas reuniões do comitê gestor do Fundo a lançar novos editais aconteceram em 2018, durante o governo Temer – e diziam respeito à aplicação de valores arrecadados em 2017.

Para complicar ainda mais, o pior presidente da História do Brasil ainda fez questão de vetar a renovação da Lei do Audiovisual no ano passado, impedindo que as produtoras conseguissem viabilizar projetos junto à iniciativa privada, via incentivo fiscal, de forma a concentrar toda a possibilidade de fomento no FSA. Este fundo que, agora se descobre, é na verdade sem fundo.

Desde que Bolsonaro assumiu, a estratégia para o setor tem sido a paralisação.

Sem pressa para nomear diretores na Ancine, destituindo secretários de Cultura a cada quatro meses e mantendo – como mantém atualmente – a coordenação cultural acéfala em seu desgoverno, Bolsonaro tem impedido que o comitê gestor do FSA faça reuniões. Com isso, o valor do fundo era mantido longe do conhecimento público. Mas a brincadeira de esconde-esconde acabou.

O TCU cobrou e a Ancine tem agora a obrigação de mostrar onde foi parar cada centavo que estava sob sua guarda.

Segundo o esboço de justificativa, apresentado na sexta, a entidade teria assumido compromissos financeiros no valor de R$ 944 milhões, mas só teria, em caixa, R$ 738 milhões. Isso significa que a agência não tem dinheiro nem para pagar todos os projetos contemplados nos editais de 2018 – os últimos que foram lançados – e, muito menos, para lançar novas chamadas.

Uma das explicações para a falta de dinheiro, pelo que se pode visualizar na versão da Ancine, seria um erro contábil no pacote de editais de 2018, chamado #AudiovisualGeraFuturo, que somou cerca de R$ 1,2 bilhão, quase o dobro dos R$ 748 milhões previstos para o período. Há, nesse conjunto, projetos que foram contratados, mas há também editais não lançados e outros que tiveram resultados divulgados, mas não teriam sido contemplados. A página da Secretaria da Cultura sobre os editais foi derrubada – ao seguir o link que diz “Confira aqui os editais”, o resultado é “Oops! Essa página não pode ser encontrada”.

A gravidade dos fatos se manifesta numa pantomima, em que a atual diretoria ensaia culpar, sem muita convicção, senão a diretoria anterior, o próprio desgoverno pelo endividamento. Mas levou um ano e meio para fazer qualquer acusação ou mesmo denunciar o rombo. E só se pronunciou após o TCU cobrar explicações.

O atual presidente da Ancine, Alex Braga, já era diretor da agência no governo Temer – desde 2017. E estava na entidade desde 2003, tendo atuado na maior parte deste tempo como procurador, com a função, justamente, de zelar pela otimização dos recursos públicos utilizados na Ancine. E ele não manifestou contrariedade quando os supostos editais onerosos foram votados e aprovados em 2018. Portanto, culpar a gestão anterior não lhe tira responsabilidade sobre a fonte dos problemas na administração do FSA.

Em busca de pistas sobre o paradeiro do dinheiro, chama especial atenção a forma como links sobre editais e respectivas prestações de conta do desgoverno tendem a apontar para páginas inexistentes.

Uma das omissões mais facilmente localizáveis reflete a época em que Bolsonaro protestou contra um edital de projetos de séries de temática LGBTQ+, dizendo que não aprovaria seu conteúdo. Uma live ofensiva, desinformada e homofóbica do presidente inspirou o então ministro da Cidadania Osmar Terra a derrubar o edital. Só que ele não teria poderes para isso, o que gerou uma crise jurídica e levou o MPF-RJ (Ministério Público Federal do Rio de Janeiro) a entrar com uma ação por improbidade administrativa na Justiça.

Pra resumir a história, o preconceito foi acomodado de forma a não contemplar as séries mencionadas nominalmente por Bolsonaro em sua live, mas supostamente premiando outras produções. Só que o relatório das verbas destinadas aos “80 projetos selecionados” desse imbróglio conduz a uma endereço do BRDE (Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul) – agente financeiro do FSA – que informa que a página não existe.

Será que a prestação de contas está em outro link ou apenas em documentos oficiais? Cabe ao TCU verificar.

Neste período nebuloso, Bolsonaro também começou a falar em “filtros” – critérios de censura – para o fomento cultural e alimentou o caos na Ancine. Após demitir por decreto o diretor-presidente Christian de Castro Oliveira, que já estava enrolado em investigação da 5ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro, manteve o órgão paralisado por cinco meses com apenas um diretor, Alex Braga, respondendo por toda a diretoria-colegiada. O desgoverno protelou o quanto pôde para nomear mais dois diretores evangélicos sem representatividade no mercado, visando preencher outras duas cadeiras no comando da entidade, suficientes para seu funcionamento mínimo.

Essa estrutura precária foi piorada com a falta de nomeação de um Secretário do Audiovisual, iniciativa que caberia ao Secretário da Cultura, cargo que se tornou rotativo e ausente no desgoverno. O Secretário do Audiovisual é um dos membros do comitê gestor do FSA, junto do Secretário da Cultura.

A atual composição do Comitê Gestor, com mandato de dois anos, foi estabelecida pela Portaria nº 2.068, de 23 de outubro de 2019, e além dos secretários citados inclui o Ministro da Cidadania, como titular, e seu substituto legal, como suplente, entre outros membros. Só que, depois da publicação dessa portaria, Bolsonaro tirou a pasta da Cultura do ministério da Cidadania, jogando-a no Turismo. Isso representou outra pedra burocrática no meio do caminho da materialização do comitê.

A prática de paralisar o setor com burocracia está mais que manifestada pelo governo. Porém, não se sabia, até sexta passada, que isso também ajudava a encobrir um rombo financeiro.

A burocracia, claro, é um dos motivos alegados pelo relatório dos números mágicos para o sumiço bilionário. O abracadabra seria fruto da remuneração supostamente excessiva dos bancos que operam o FSA e das regras do desgoverno relativas às aplicações, que exigem que os juros dos investimentos do FSA sejam devolvidos ao Tesouro Nacional, e lá precisem passar por outra etapa de autorização e liberação para poderem ser usados pelo fundo. Em outras palavras, haveria represamento dos valores em outra ponta do sistema, aparentemente dentro do ministério da Economia.

Aos trancos e barrancos, a Ancine ainda teria liberado cerca de R$ 500 milhões para projetos de editais de 2018, ao longo do ano passado. De janeiro a abril de 2020, porém, os valores limitaram-se a menos de R$ 60 milhões, o que gerou processos de produtores lesados para que fossem liberadas as verbas aprovadas há dois anos. Mesmo assim, nenhum novo edital foi lançado.

Em seu ofício ao TCU, a Ancine alega que já havia previsão para esse estouro em seu orçamento de 2018 e que ele seria compensado pela “utilização de rendimentos das aplicações no montante de R$ 348 milhões, incluindo-os nos investimentos do FSA para aquele ano”. Mas aponta que, em momento posterior, esse dinheiro saiu de suas mãos, porque “houve a determinação de que estas receitas sejam recolhidas ao Tesouro Nacional”.

Culpar o desgoverno – ou o próprio TCU, que chegou a intervir nas contas da Ancine em 2019 – por orientações que renderam prejuízo financeiro explicaria o rombo das verbas de 2018. Mas não justifica o sumiço do dinheiro de 2019 e 2020, que, segundo se deduz pelo relatório da agência, só teria servido para pagar juros e taxas bancárias.

A se acreditar nisso, o investimento que rendeu, segundo o mesmo relatório, estimados R$ 615 milhões em 2018, resultou em prejuízo de mais de US$ 1,5 bilhão após a eleição de Bolsonaro. Se isso tudo não pagou apenas juros e taxas, então, pode ter havido pedaladas fiscais, palavra que remete à desculpa usada pelo Congresso para realizar o impeachment de Dilma Rousseff, e que significa usar orçamento futuro para pagar dívidas do passado – geralmente para cobrir rombos, como o caso.

É exatamente o que sugere esta conclusão do ofício da Ancine: “Segundo diagnóstico realizado, a totalidade dos recursos para pagamento de agentes financeiros se encontra comprometida com obrigações anteriores. Mesmo se consideradas as disponibilidades financeiras para 2019 e 2020, o valor seria insuficiente para a contratação do total de investimentos em projetos anunciados [em 2018], restando ainda um saldo negativo de R$ 3,6 milhões”.

Traduzindo: em vez de ter US$ 1,5 bilhão para fomentar novos projetos, a Ancine deve R$ 3,6 milhões a “agentes financeiros” – quais sejam: o BRDE e o BNDES – devido a “obrigações anteriores” – quais sejam?

Qualquer conclusão sobre erro contábil, mal-entendido, gestão temerária, improbidade administrativa, crime fiscal ou ação penal caberá ao TCU, que também deverá proceder a busca pelo montante não contabilizado e determinar a responsabilização por eventuais desmandos, após o destrinchamento dos números e os meandros kafkianos do desgoverno de Bolsonaro.