El Camino revela o que aconteceu com Jesse Pinkman
O que aconteceu com Jesse Pinkman? “Breaking Bad” é uma série perfeita, mas deixou essa coceira nos fãs desde que Vince Gilligan encerrou a melhor produção norte-americana feita para o formato nesta década. A lacuna permitiu aos adeptos exercitarem a imaginação. Embora o passado não pudesse ser apagado, Jesse teria finalmente a chance de seguir adiante. Não exatamente com uma redenção, o que seria praticamente impossível. Mas ter a chance de recomeçar quando se tem a vida inteira pela frente? Bom, isso foi uma bênção de Vince Gilligan para o personagem. Porém, a polícia poderia pegá-lo. Ou matá-lo durante a fuga. Vai saber. O ponto é que, no fundo, todas as possibilidades deveriam estar corretas, contanto que o espectador escolhesse o caminho do otimismo ou do pessimismo. Em outras palavras, não havia necessidade de nenhuma continuação de “Breaking Bad”. Ninguém precisa confirmar o destino de Walter White nem saber como Skylar e Walter Jr. seguiram depois dos eventos do último episódio. Só que Vince Gilligan achou que ainda devia algo a Jesse Pinkman. E “El Camino: A Breaking Bad Movie” começa no exato momento em que deixamos o personagem imortalizado por Aaron Paul. Como esperado, o filme não faz a menor diferença. Parece somente um epílogo para Jesse, um longo apêndice de “Breaking Bad”, sem surpresas, em que o único objetivo é colocar um ponto final na saga do personagem. Por outro lado, Vince Gilligan acerta em não acrescentar qualquer coisa que mude o que vimos antes. Em resumo, não passa de aperitivo para os fãs. É como rever velhos amigos mesmo quando não temos nada a dizer no encontro. Quem nunca viu “Breaking Bad”, além de precisar de tratamento médico, deve passar longe de “El Camino”. Escrito e dirigido por Gilligan, o filme tem uma vantagem para quem gosta da série: parece que o tempo não passou. É como se tivessem filmado “El Camino” na sequência do último episódio de “Breaking Bad”. Curiosamente, com uma perspectiva mais reflexiva, meditativa do que na série, enquanto dá olá a alguns rostos conhecidos. Nunca de forma gratuita, mas para alavancar cada decisão seguinte de Jesse. Por mais que esse também seja o propósito de cada flashback, acho que Gilligan exagerou na dose com esse recurso geralmente preguiçoso. “Breaking Bad” nunca dependeu disso, de forma diferente de Lost. E isso deixou “El Camino” bem moroso. Mas OK. O filme pode não ser um exemplo do que Vince Gilligan é capaz de fazer como roteirista, mas certamente permite mostrar que o cara está cada vez melhor como diretor. Que ele sabe contar uma história visualmente, todos nós temos certeza. Mas caprichou demais na hora de posicionar a câmera em alguns pontos insanos, vide o duelo no finalzinho. Será interessante ver mais trabalhos de Vince Gilligan como diretor e roteirista, mas longe de “Breaking Bad”. Ele tem muito a acrescentar tanto na TV quanto no cinema. Da mesma forma que Aaron Paul, que merece mais chances. Aliás, o ator ainda deixa a impressão de que não desligou do personagem nem por um segundo. É de impressionar quando lembramos que Jesse vivia um bastante momento pesado da última vez que o vimos em “Breaking Bad”. É um belo trabalho de Aaron Paul que, aos poucos, dá a Jesse a paz que ele merece. É só notar sua expressão em sua última cena em “Breaking Bad” e em sua última cena em “El Camino”. A transição entre duas distintas sensações de liberdade mostradas pelo ator vale mais que toda a história contada neste filme.
Greta materializa universo LGBTQIA+ com força dramática
O longa-metragem de estreia de Armando Praça, “Greta”, é baseado na peça “Greta Garbo, Quem Diria, Acabou no Irajá”, de Fernando Melo, escrita e encenada como comédia. A mudança da comédia para o melodrama foi uma opção do cineasta, que achava que aquela história era muito mais próxima de uma situação dramática. Aliás, é interessante quando um diretor busca um espaço entre o drama e a comédia para contar suas histórias, como fazia Almodóvar em seus primeiros filmes. No caso de “Greta”, ainda há bastante espaço para o humor, mas se trata definitivamente de uma história sobre dor, sobre busca de sentido para uma vida que está próxima do fim e muita, muita solidão e rejeição. Mesmo sendo um filme com protagonistas homossexuais, certas coisas são universais. Afinal, difícil encontrar quem nunca passou por sentimentos de solidão e rejeição. Na trama, Marco Nanini é Pedro, um enfermeiro septuagenário que procura ajudar sua amiga transexual Daniela (Denise Weinberg), que passa por uma doença terminal e sofre muitas dores. A escalação de uma mulher cis para viver uma trans tem sido bastante questionada, mas difícil não se emocionar com a performance de Denise cantando “Bate Coração”, canção do repertório de Elba Ramalho. A carga dramática que ela empresta à canção e amplifica o sentido da letra é tocante. De todo modo, o elenco também inclui uma trans, Gretta Sttar, interpretando uma mulher cis. Mas o filme está mesmo mais interessado na trajetória de Pedro e sua busca por prazer para aliviar a dor, sua busca por alguém que o ame. Ele é um homem que costuma masturbar alguns pacientes do hospital em que trabalha, tenta marcar encontros e frequenta saunas gay, um espaço favorável para o sexo casual. Há uma cena com um misto de humor e drama bem marcante que se passa nesse espaço. Vale destacar que há cenas em que o sexo aparece bastante pulsante dentro dos leitos de hospital, inclusive. A vida de Pedro ganha novo sentido quando ele, para encontrar uma vaga para a amiga Daniela no hospital, leva um homem responsável pela morte de outra pessoa, ferido, para sua casa. Com esse homem potencialmente perigoso vivido por Démick Lopes, Pedro cria uma relação de ajuda, desejo e afeto. O homem, a princípio muito reticente em ter relações sexuais com aquele idoso, aos poucos começa a se aproximar. Há um diálogo muito bonito e doloroso em que Daniela pergunta a Pedro se ele ainda está tendo um caso com esse homem que cometeu um crime e é procurado pela polícia. “É o único que eu tenho”, Pedro diz, com um misto de alegria e tristeza. A entrega de Marco Nanini a esse papel é admirável. O grande ator não se incomodou em se entregar também de maneira física nas cenas que envolvem sexo e nudez. Isso contribui para que o filme ganhe ainda mais força na materialização desse universo marginal.
A Noite Amarela ressalta variedade atual do terror brasileiro
O cineasta paraibano Ramon Porto Mota estreia “A Noite Amarela”, seu primeiro longa-metragem depois da experiência coletiva da antologia “O Nó do Diabo” (2018), em um momento especialmente feliz para o cinema de gênero brasileiro. Vejam só: na mesma semana em que o seu filme estreou, entrou em cartaz também em outras salas do país “Morto Não Fala”, de Dennison Ramalho, e “Amor Assombrado”, de Wagner de Assis. E na semana anterior foi lançado “O Clube dos Canibais”, de Guto Parente. Ou seja, o cinema de horror brasileiro está deixando de ser rejeitado e está sendo abraçado por uma parcela cada vez maior de espectadores, ao mesmo tempo em que estamos vivendo um momento político também singular. Nas entrevistas de Mota, ele afirma que não tinha a menor intenção de que “A Noite Amarela” fornecesse metáforas para o momento político brasileiro. Mas acontece que a percepção da obra de arte, ainda mais essa do tipo mais livre e cheia de espaços, pode trazer interpretações diversas. E isso já não está mais nas mãos do artista. Além do mais, o artista costuma ter antenas que captam o espírito da época. Assim, o mal estar com o mundo contemporâneo se faz bastante presente na escuridão que invade a vida de seus protagonistas. “A Noite Amarela” quase se desvincula de uma trama no sentido convencional, especialmente a partir de seu terço final, ao se deixar levar pela atmosfera de sonho/pesadelo, fazendo com que os personagens sejam engolfadas pela escuridão, por algo não muito fácil de ser compreendido. O escuro é um aspecto predominante no filme. Quase todas as cenas se passam à noite, desde o começo, quando jovens secundaristas chegam a uma ilha para relaxar e comemorar a formatura do ensino médio. A opção de Ramon Porto Mota em adotar uma fotografia suja, áspera, com pouca iluminação, como se fosse um filme feito nas primeiras experiências com o digital, contribui para a sensação de que estamos vendo uma produção estranha a esses tempos em que as imagens são cada vez mais nítidas. Ao mesmo tempo, difícil não apreciar o belo trabalho de direção de arte e fotografia, com um uso de cores que remetem ao cinema italiano de horror dos anos 1970. O filme é marcado por sua geografia, seu sotaque paraibano, seus diálogos aparentemente espontâneos, mas que na verdade foram memorizados pelos atores. O tipo de dramaturgia também é diferente, estranho. Nas entrevistas, Mota vem comentando que seu filme é mais herdeiro das experiências com o cinema de horror de Walter Hugo Khouri e Jean Garrett do que com o cinema de horror estrangeiro. De fato, quem viu os filmes de Khouri e Garrett sabe do que ele está falando e vai concordar. A intenção é fazer uma obra atemporal, cuja estranheza atravessará décadas. Na trama, após o grupo de adolescentes chegar a uma ilha praticamente desabitada e sem sinal de celular, uma das meninas, Karina (Rana Sui), desaparece, e a missão da turma passa a ser procurar pela amiga pela noite escura. Eles resolvem se separar e acabam se deparando com estranhas coisas que lhes assombram, como a presença de duplos. No meio disso tudo, há um grande flashback que dá uma quebrada no filme, como se o tirasse do gênero horror e o colocasse em um daqueles filmes dos anos 1950, com jovens duelando. Isso contribui para a estranheza, mas não deixa de ser no mínimo divertido. Além do mais, a presença desses jovens atores e de um cinema que não tem medo de experimentar traz um frescor necessário para este momento, em que filmes brasileiros de gênero começam a se tornar cada vez mais comuns no circuito. Quanto mais pluralidade, melhor.
Carta para Além dos Muros é antídoto para descaso do governo com a saúde brasileira
A narrativa do HIV/AIDS no cinema é repetidas vezes marcada pelo melodrama. Há uma dor e um luto naturais, causado pelo medo e pelo horror de quem viveu a epidemia de perto. Por isso mesmo, filmes de diferentes épocas captam essa angústia de um vírus que dizimou uma geração. “Meu Querido Companheiro” (Norman René, 1989), “Filadélfia” (Jonathan Demme, 1993) e “The Normal Heart” (Ryan Murphy, 2014), por exemplo, eram filmes para chorar, do tipo que encaravam o vírus pela ótica da perda. O francês “120 Batimentos por Minuto” (Robin Campillo, 2018) já opta por um novo olhar: o da luta. Reconstruindo a história do grupo ativista Act Up, o filme traz luz sobre os personagens que lutaram por tratamento digno e por pesquisas na área. É sobre essa mesma ótica que chega agora aos cinemas brasileiros o documentário “Carta para Além dos Muros”, de André Canto. O longa-metragem cita e relembra personagens pontuais que morreram por causa do HIV/AIDS, porém a perspectiva de Canto é muito mais de captar as histórias em torno do espectro e do estigma carregado pelo HIV. Em cerca de uma hora e meia, vemos um retrospecto de toda a luta de ativistas, ONGs e médicos pelo tratamento digno e pelo respeito aos pacientes, bem como as lutas pelo tratamento pleno da doença no SUS e as disparidades de acesso a essas informações. “Carta para Além dos Muros” se utiliza de personalidades diversas, como o médico Dráuzio Varella, o cineasta Jean-Claude Bernardet, o jornalista João Silvério Trevisan e ativistas como Lucinha Araújo (mãe de Cazuza) e Gabriel Estrela, todos a favor de um diálogo aberto e sem firulas sobre o tema. De formato clássico, o documentário de André Canto é bastante didático em seus discursos e isso não é um defeito em nosso cenário atual. Em 2019, o governo Bolsonaro diminuiu o status do departamento de combate ao HIV do Ministério da Saúde, transformando-o apenas em uma pasta do Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis. Além disso, o governo deletou as redes sociais desse mesmo departamento, apagando da internet inúmeros materiais informativos e de prevenção. Nesse cenário, as campanhas de prevenção seguem cada vez mais diminutas e as tensões religiosas têm tornado a educação sexual um campo minado. Em contrapartida, dados do Ministério da Saúde divulgados no ano passado mostram que de 2007 a 2017, subiu de 3 para 7 o número de casos de HIV por 100 mil habitantes entre jovens do sexo masculino de 15 a 19 anos. Segundo dados da ONU, o Brasil registrou 53 mil novos casos de HIV só em 2018! Esses novos casos atingem uma população jovem: homens gays, homens e mulheres trans, mulheres negras e uma população que é sempre marginalizada pelos meios de informação e pelo atendimento de saúde. Num novo cenário, em que temos no Brasil um tratamento de referência mundial para o HIV, bem como novos meios de prevenção, como a PEP e a PrEP, é surreal pensar que uma grande parcela da população, por exemplo, não sabe nem mesmo a diferença entre HIV e AIDS. “Carta para Além dos Muros”, nesse cenário, é um alento de informação e conhecimento, tudo sem apelar para o terrorismo ou o alarde. Precisamos urgentemente falar sobre o HIV, mas não com o medo de uma epidemia letal, mas sim com as informações necessárias para compreendermos uma doença crônica com tratamento contínuo, assim como compreendemos outras doenças crônicas como o Diabetes e a hipertensão. As gerações que não enfrentaram o pânico do HIV não devem viver mais com esse imaginário monstruoso: é preciso desmistificar preconceitos e expandir horizontes. O estigma não pode mais ser um véu que obscurece essa discussão. A recomendação é que se assista “Carta para Além dos Muros” no cinema e que se faça esse filme circular por mais e mais lugares. Este é o tipo de documentário necessário, que deve ser visto pela comunidade LGBT, mas também por jovens negros de periferia, homens heterossexuais, mães e pais de jovens, professores, profissionais de saúde, entre outros. Vejam e falem sobre isso!
Não se sai de Coringa sem sentir o peso de suas questões
Coringa, como é do conhecimento geral, é o poderoso e misterioso vilão das histórias do Batman. É um desses vilões que fazem sucesso junto ao público. Por isso, explorar as suas origens pode ser uma tarefa atraente. O filme de Todd Phillips, que leva o nome do personagem, vai nessa linha. “O difícil de ser um doente mental é que todo mundo espera que você aja como se não fosse”, frase dita pelo personagem no filme, pode ser o começo de tudo para entender o Coringa, ou melhor, esta mais recente versão cinematográfica dele. Acometido por uma risada assustadora, o filme nos informa que o riso incontrolável do personagem é uma doença que está em desacordo com os sentimentos ou a situação vivida por ele. As feições embranquecidas ou com máscara remetem à figura do palhaço, sua ocupação inicial. E é na condição de palhaço que ele mata e capitaneia ações violentas e destrutivas, que alcançam toda a Gotham City. É, digamos, a vingança pela rejeição e maus tratos sofridos por toda a vida e sempre reiterados pela sociedade. A revolução dos palhaços, porém, tem outras dimensões. A cidade vive abandonada, cercada de lixo por todos os lados, fruto de uma greve nunca resolvida, e espalhando super-ratos por todos os lugares. Ou seja, trata-se de uma Gotham City maltratada pelos políticos e ainda sem sombra de um Batman para salvá-la. História em quadrinhos à parte, “Coringa” reflete o mal estar do nosso mundo, em que a violência é onipresente e, em alguns casos, pode aparecer como solução para alguma coisa. Tudo pode começar com um doente mental ressentido, a quem alguém entrega uma arma, com a pretensão de ajudá-lo a se defender das pessoas que o atacam. Soa familiar? Claro e, também, assustador. O lançamento do filme nos Estados Unidos chegou cercado por cuidados, na suposição de que sua violência pudesse estimular atiradores, como já há às pencas no país. Já tem armas, precisam ainda do estímulo do cinema? Duvidoso. Desde “Pequenos Assassinatos”, filme de Alan Arkin de 1971, está posta a prática do assassinato em massa, sem motivo palpável, como uma chaga contemporânea ao lado do terrorismo – este com motivações políticas, econômicas, culturais e religiosas detectáveis. Lobos solitários, excluídos e que se excluem, vivem aparecendo, fato revelador da solidão e da exclusão sociais. Se esses lobos forem capazes de inflamar multidões, estaria posto o clima do caos. E é o caso da história de “Coringa”. O filme de Todd Philips é surpreendentemente forte e impactante. Não se sai do cinema sem sentir o peso da questão. O espectador sai mexido, quer queira, quer não. Quem for assistir só pensando em super-heróis e batalhas com os vilões de costume vai se decepcionar. “Coringa” tem muito mais força e reflexão do que isso. Não por acaso, venceu o Leão de Ouro do Festival de Veneza 2019. Entre os méritos do filme é preciso destacar, de modo evidente e reluzente, o desempenho de Joaquin Phoenix. Ele é perfeito para o papel de Arthur Fleck, o Coringa. Ou ele se faz perfeito para todos os papéis: é um grande ator. Até Robert De Niro desaparece no filme, diante da atuação de Joaquin Phoenix. Só pelas gargalhadas deslocadas da ação já se pode ver a capacidade de comunicação que ele tem. Sem ele, o filme talvez fosse pouca coisa, com ele, ganha importância. Mas todo o elenco também dá bem conta do recado, levando a ação de um filme polêmico, palpitante para o público. iframe width=”650″ height=”365″ src=”https://www.youtube.com/watch?v=jfVTJm9NilA” frameborder=”0″ allowfullscreen>
Jornada de Brad Pitt em Ad Astra é Apocalypse Now no espaço
Em julho de 1969, quando Neil Armstrong e Buzz Aldrin davam seus primeiros passos na Lua, parte da população mais carente dos Estados Unidos protestava contra aquele feito histórico e científico. Na época, o programa Apollo custou cerca de US$ 25 bilhões (o equivalente a 150 bilhões hoje em dia). E enquanto o governo gastava fortunas com a corrida espacial, a comunidade negra passava fome e o país continuava envolvido no conflito do Vietnã, enviando milhares de jovens para a morte todos os dias. A ideia de olhar para o lado de fora pareceu, àqueles que a criticavam, uma forma de ignorar a realidade interna. O filme “Ad Astra – Rumo às Estrelas” parte de uma crítica similar, mas oferece uma abordagem mais intimista. Dirigido por James Gray (“A Cidade Perdida de Z”), que também escreveu o roteiro em parceria com Ethan Gross (série “Fringe”), “Ad Astra” se passa em um futuro próximo, quando a humanidade já avançou na exploração espacial. Viagens à lua tornaram-se rotineiras – para quem consegue pagá-las – e uma base em Marte foi estabelecida como ponto de partida para jornadas mais longas. A trama acompanha o astronauta Roy McBride (Brad Pitt), um sujeito frio, impassível e aparentemente destemido, disposto a sempre colocar a missão à frente da vida pessoal. Sua vivência é ancorada na lembrança do pai, o também astronauta H. Clifford McBride (Tommy Lee Jones), considerado um pioneiro espacial. Há mais de três décadas, o McBride pai liderou o projeto Lima, uma ambiciosa expedição espacial com o intuito de encontrar vida inteligente em outros planetas. Mesmo após o desaparecimento e suposta morte de Clifford, a busca por respostas e por vida alienígena não cessou. E o fantasma do pai ainda assombra o filho, determinando as suas decisões. Quando conhecemos o McBride filho, ele é visto trabalhando em uma gigantesca antena utilizada com o intuito de estabelecer comunicações extraplanetárias. Recuperando-se após um acidente que quase lhe custou a vida, Roy recebe a notícia de que seu pai pode estar vivo, orbitando o planeta Netuno. Não só isso, mas ele também pode estar trás de uma série de ataques energéticos que atingem todo o sistema solar. Roy é escalado para tentar fazer contato com o pai, encontrá-lo e, consequentemente, salvar o universo. Sua jornada, porém, é recheada de descobertas em relação ao pai, em relação a si mesmo e ao próprio universo. E nisto o filme se aproxima bastante da clássica ficção científica “2001 – Uma Odisseia no Espaço” (1968). Ainda assim, a principal referência de “Ad Astra” – apontada pelo próprio diretor – é “Apocalipse Now” (1979). A estrutura do longa-metragem segue à risca a obra de Francis Ford Coppola, desde a chamada à missão, passando pelo percurso a ser seguido, as paradas pelo caminho e culminando nas transformações sofridas pelo protagonista ao longo da jornada. E Gray ainda aborda a figura de McBride como se ele fosse uma espécie de Coronel Kurtz espacial: alguém que antes era visto como um herói, mas que agora virou uma ameaça. E a presença/ausência de Tommy Lee Jones é intimidadora, assim como era a de Marlon Brando. A principal diferença reside no laço familiar. Pois se no filme de Coppola a hierarquia militar era o único relacionamento entre os dois personagens, aqui há uma força muito maior aproximando os dois. O pai é o herói e o vilão da vida do protagonista. E é neste espaço de conflito e admiração que a narrativa de “Ad Astra” é construída. A jornada de pai e filho são similares. Em ambos os casos, as viagens são sucedidas por fatalidades. Aliás, Roy parece atrair tragédias para quem está ao seu redor, seja por meio de ação direta (como quando invade uma nave espacial) ou quando não tem controle pelo ocorrido (quando é perseguido por piratas na Lua). Nada disso, porém, parece afetá-lo. Não apenas os seus batimentos cardíacos mantêm-se ritmados, como suas constantes avaliações psicológicas o qualificam como apto a continuar a missão. Pitt carrega seus segredos no seu rosto e no seu silêncio. E Gray não hesita em aproximar sua câmera do rosto do ator, para captar nuances da sua atuação, como a única lágrima que escorre do seu rosto durante o clímax. Além disso, o cineasta mantém o seu apuro estético característico, presenteando-nos com tomadas que exploram a imensidão e a beleza do espaço. O contraste entre as cenas passadas no espaço – ou em outros planetas – e aquelas ambientadas na Terra, sempre escura e opressiva, serve para explicitar justamente aquilo que o filme busca criticar: a ideia de buscar algo (resposta, beleza, etc) naquilo que está longe, e nunca no que está ao nosso lado. A jornada do herói se completa quando ele percebe a sua ínfima importância diante da vastidão do universo.
O Clube dos Canibais representa momento especial do cinema brasileiro
O lançamento de “O Clube dos Canibais” representa um momento especial do cinema brasileiro, que se manifesta com pluralidade cada vez maior de estilos, gêneros, maneiras de se fazer filmes. Representa também uma espécie de consolidação da chamada “primavera do cinema cearense”, como alguns vêm denominando o movimento cinematográfico do estado. E ainda é a afirmação do atual ciclo de terror nacional, que dedica um cuidado muito especial ao formalismo visual. Seu diretor, Guto Parente, já havia mostrado esse virtuosismo no ótimo “A Misteriosa Morte de Pérola” (2014), feito sem recurso algum do Estado, com um valor de produção próximo do zero. Parente escreveu o roteiro de “O Clube dos Canibais” em 2013, aplicou o projeto em edital em 2014 e finalizou as filmagens em 2016, tendo suas primeiras exibições em festivais ligados ao gênero fantástico em 2018. Ou seja, o filme atravessou todo esse turbilhão de pesadelo pelo que tem passado o Brasil ao longo desta década. E por conta do contexto histórico, a crítica à elite, que come os mais pobres – e pardos e pretos – e que elogia o “primeiro mundo” acabou se tornando ainda mais atual. Na verdade, ela nunca deixou de ser uma realidade do nosso país. Apenas as máscaras caíram. “O Clube dos Canibais” conta a história de Otávio (Tavinho Teixeira), dono de uma empresa de segurança privada, e Gilda (Ana Luiza Rios), sua esposa, que adora ficar na piscina tomando uns drinques enquanto sensualiza para o caseiro. Os caseiros, logo veremos, passam por uma rotatividade intensa na casa, já que são sugados para a cilada de seus patrões. Gilda os atrai para o sexo enquanto o patrão está supostamente indo para Fortaleza. A cena que mostra o sexo de Gilda com o caseiro, a masturbação de Otávio, o machado na cabeça da vítima, o êxtase, tudo isso é filmado com muita sensualidade, assim como a visão de Gilda, descendo as escadas, com o corpo nu banhado de sangue, como uma versão maligna e poderosa da inocente Carrie (difícil não lembrar do filme do De Palma). O interessante é que o gore, a violência gráfica, não parecem tão perturbadores neste filme, por conta de um senso de humor satírico muito agradável. Sem falar que Guto Parente, sendo um esteta, preza pela beleza das imagens. Assim, o vermelho do sangue e tudo o mais que compõe essas cenas integra uma intenção de fazer um cinema mais sensorial, que valoriza a fotografia e o desenho de produção em vez de apenas chocar – como alguns filmes do subgênero torture porn, em voga na década passada. Além do mais, o filme não se limita simplesmente a uma repetição desses eventos na casa de Otávio e Gilda. Na verdade, há uma cena em especial que mudará o destino dos personagens. Isso acontece quando, em uma festa do clube do título, em que Gilda flagra o grande líder, Borges (Pedro Domingues), um deputado influente, em um ato secreto. Impagável a cena de Gilda indo conversar com Borges no dia seguinte. Um convite à gargalhada. A produção de “O Clube dos Canibais” conta com uma equipe de dar gosto. Fernando Catatau, guitarrista célebre de Fortaleza, faz a trilha sonora, que valoriza tanto os sintetizadores quanto a bateria, amplificando o prazer fílmico. A supervisão de efeitos especiais é de Rodrigo Aragão, famoso por sua filmografia voltada ao horror gore. E há toda a turma que vem crescendo cada vez mais no cinema cearense, como Ticiana Augusto Lima, Breno Baptista, Luiz Pretti, Ricardo Pretti, Samuel Brasileiro, Lia Damasceno, Luciana Vieira, entre outros, que fazem parte do filme em variadas funções. Por isso, não seria um exagero colocar “O Clube dos Canibais” na mesma lista de obras como “As Boas Maneiras”, de Juliana Rojas e Marco Dutra, “O Animal Cordial”, de Gabriela Amaral Almeida, e até “Bacurau”, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dorneles, divisor de águas deste momento. Todos esses terrores recentes tem uma característica marcante em comum: o ataque às classes menos favorecidas. Para completar, é preciso elogiar a elegante performance de Ana Luiza Rios como Gilda, e também Tavinho Teixeira, claro. O cinema nacional está cada vez mais pulsante, enfrentando com sangue nos olhos os ataques do governo federal. Tanto talento assim não morre fácil, não.
Um Amor Impossível acompanha evolução feminina por meio século
Pelo título, “Um Amor Impossível”, de Catherine Corsini, parece uma dessas obras bem água com açúcar, mas o que temos aqui é uma verdadeira pedrada, que trata não apenas da relação entre um homem e uma mulher, mas também da evolução da mulher ao longo de algumas décadas, começando no final dos anos 1950. A história é contada por Chantal (Jehnny Betty, na fase adulta) e a personagem principal é sua mãe, Rachel (Virginie Efira, que vive a mesma personagem desde a tenra juventude até a velhice, o que é sempre um risco). A princípio, o foco da narrativa, baseada no best-seller de Christine Angot, gira em torno do relacionamento entre Rachel e Philippe (Niels Schneider). Ela vem de classe mais humilde da sociedade; ele é um rapaz que conseguiu escapar da guerra da Argélia por causa de influências de sua família, rica e culta. A relação dos dois parece correr muito bem, mas Rachel fique triste quando Philippe revela que tem entre seus princípios jamais se casar. E essa decisão não muda nem mesmo quando Rachel se descobre grávida. Mas a posição covarde de Philippe em não reconhecer oficialmente a paternidade se torna até pequena diante do que o filme ainda guarda para a pobre mãe solteira. Embora a figura de Philippe continue sendo de fundamental importância para a história, aparecendo para visitar a filha e Rachel de vez em quando, “Um Amor Impossível” se transforma em um filme sobre a relação de proximidade entre mãe e filha, e sobre o quanto o pai distante fará parte da vida da jovem. A cineasta Catherine Corsini vem de um belo filme sobre a relação afetiva entre duas jovens mulheres – “Um Belo Verão (2015) – e volta a mostrar um cinema interessado em lidar com as questões do lugar da mulher no mundo moderno. Sua nova protagonista é por demais sofrida, seja por causa de uma paixão não correspondida, seja pela sociedade que não vê com bons olhos uma mãe solteira. Nesse sentido, é também um modelo da evolução do papel da mulher na sociedade ocidental (ou pelo menos francesa) entre o século 20 e o início do 21.
Midsommar subverte o gênero com terror florido e ensolarado
Existem signos clássicos do cinema que são sinônimos de medo ou tensão: a lua cheia, a névoa, os gatos perdidos, as sombras difusas. Esqueça esses signos, pois o novo filme de Ari Aster, “Midsommar – O Mal Não Espera a Noite”, escolhe outros caminhos para uma viagem perturbadora, que leva o espectador a uma Suécia ensolarada e cheia de flores. O jovem cineasta americano ganhou renome com o excelente “Hereditário” (2018), que chafurdava no drama de uma família após uma grande tragédia. Esse mesmo clima de terror causado por uma tragédia sem medidas é o mote do prelúdio de seu novo filme, quando a história da protagonista Dani (Florence Pugh) arremessa o espectador em 10 minutos iniciais que poderiam ser por si só um filme de terror. Passada essa introdução, vemos Dani aceitando a proposta de viajar ao lado do namorado e de seus amigos rumo à Suécia, para a festa de solstício de uma comunidade mezzo hippie mezzo esquisitona. Jack Reynor (de “Sing Street”) dá vida ao namorado Christian, um estudante de antropologia, assim como seus amigos, interpretados por William Jackson Harper (da série “The Good Place”) e Will Poulter (de “Black Mirror: Bandersnatch”). Todos são levados a tal região através de Pelle (Vilhelm Blomgren), o colega sueco deles, que é um dos membros da comunidade local. Dani, nesse cenário, é uma espécie de intrusa na viagem, perdida em seus dramas pessoais e em suas lutas mentais. Já em solo sueco, o grupo passa por experimentações de bebidas, chás de cogumelos e outros psicotrópicos não-identificados, que de alguma forma mudam determinadas percepções deles. Esse é um dos pontos estranhos em meio a uma profusão de acontecimentos cada vez mais esquisitos e assustadores que irão acontecer, colocando os personagens em uma espiral surreal. Paramos por aqui, para que nenhum spoiler seja dado e você possa vivenciar essas surpresas. “Midsommar” é, essencialmente, um filme de terror, pelo simples fato de que é aterrorizante: nos deixa sem ar, nervosos, querendo entrar na tela e fazer algo. Por outro lado, ele não tem nada do que os teóricos postulariam como um filme de terror: não há sustos, não há monstros, não há sombras. Temos flores, campos abertos e um sol que nunca se põe. Temos pessoas sorridentes em túnicas brancas, vacas a pastar bucolicamente e casinhas de madeira ao melhor estilo sueco. O que Ari Aster faz é desconstruir o que temos pré-concebido como horror, como assustador; mais que isso, ele nos coloca em um universo onde qualquer coisa pode ser assustadora. O diretor modifica as perspectivas e apresenta um cenário em que o sol constante, os campos floridos e o bucolismo se tornam um temor por si só. Podem não haver sustos, mas também praticamente não há respiros no filme. Há cenas esparsas em que pessoas riem na sala de cinema, mesmo assim, a sensação natural durante todo o filme é de completo aprisionamento, de tensão irrestrita, de atenção constante, de quem teme o desconhecido. Todo esse clima do filme tem muito a ver com seu ritmo lento e compassado, bem como com a qualidade da trilha sonora. Se em “Hereditário” Aster contava com o genial Colin Stetson, aqui ele trabalha com The Haxan Cloak (que assina como Bobby Krlic) na criação de uma ambiência que é aterrorizante. Há peças musicais que vão desde o erudito até a música ambiente, passando também por ritmos típicos da Suécia. Há em “Midsommar” alguns signos e determinadas escolhas que começam a delinear uma estética especifica do diretor: cenas de violência extremamente gráficas em momentos muito pontuais do filme, o fogo, os rituais pagões, a experiência de situações traumáticas, a tragédia como propulsor da loucura – todos temas que também já haviam sido suscitados em “Hereditário”. Há um universo de exploração do diretor, que usa o terror e o medo como uma forma de observar as nossas reações perante o mundo. Dani, a protagonista, precisa enfrentar o vida em sociedade após uma experiência traumática e precisa lidar com tudo isso engendrada em um relacionamento amoroso completamente fracassado. Ari Aster cria assim um filme de expurgo, isto é, de auto-descoberta dos nossos medos, das nossas tensões, dos nossos monstros internos, tudo isso praticamente em “praça pública”, à luz do sol. A grande jornada de Dani foi inspirada em experiências reais do diretor, inclusive pelo término de um de seus namoros. A realidade é reinterpretada de forma quase surrealista por Aster, em um filme que constrói cenas perturbadoras e marcantes, ao lado de outras que podem ser considerados alguns dos takes mais lindos do ano – a cena de Dani vestida de flores a chorar em meio a um cenário caótico é incrivelmente genial! “Midsommar”, no final das contas, é um filme de gênero que implode o próprio gênero e busca novas lógicas, novas construções e, por isso mesmo, soa estranho, diferente, mas não menos assustador. É daquele tipo de filme que funciona como uma experiência na sala de cinema: é desconfortável, incômodo, mas instigante. Ari Aster cria um grande filme sobre as tensões que permeiam o universo da individualidade versus o coletivo, bem como as tensões causadas por esse embate. “Midsommar” é como um tour de force pela mente humana, que nos causa medo pelo fato de que o terror está muito mais em nós do que em qualquer outro subterfúgio. É filmaço dos bons, mesmo assim fica o aviso: veja por sua conta em risco!
Rambo se vinga de estereótipos até o fim
Sylvester Stallone perdeu a chance de fazer, pelo menos, um filme de vingança decente com “Rambo – Até o Fim”, dirigido por Adrian Grunberg, de “Plano de Fuga” (2012). As motivações de seu personagem clássico são praticamente as mesmas de Liam Neeson em “Busca Implacável” (2008), que foi um sucesso de bilheteria. E aqui ainda tem o diferencial de mostrar o lendário John Rambo no encalço dos bandidos. Além disso, Stallone não tenta ser um Tom Cruise, que quer sempre sair bem na fita nos filmes de ação, com um ego gigante. Stallone parece não se importar em aparecer levando uma surra de dezenas de homens e ficar no chão. Afinal, seu auge foi levando muita porrada no lindo “Rocky, um Lutador” (1976). John Rambo só quer ficar em paz, mas as pessoas não deixam. Isso, aliás, é basicamente o plot do pequeno clássico original, “Rambo – Programado para Matar” (1982). Ele só queria curtir a sua solidão em paz. Em “Até o Fim”, ele aparece ainda mais pacífico, bem mais velho e morando com uma família formada por uma garota órfã de mãe e abandonada pelo pai biológico. Ele é o Tio John, mas é o mais próximo de um pai que a garota tem. Há também uma senhora mexicana que cuida da casa e funciona como uma espécie de mãe. A garota, na ânsia de conhecer o pai biológico, vai parar no México, contra a vontade de “John”, e acaba raptada e colocada num grupo de mulheres forçadas a se prostituir. Rambo vai atrás com o intuito de resgatá-la. E é com essa simplicidade de trama que se constrói “Rambo – Até o Fim”. E também com muitas cenas de violência gráfica explícita. Há alguns anos, esse tipo de selvageria sanguinária era mais celebrada pelos fãs de filmes de terror, mas os tiros que arrancam pedaços não parecem chocar mais a audiência dos dias de hoje. O problema é outro: a falta de uma melhor solução para a trama, que volta a retratar Rambo como um exército de um homem, o que não empolga e esfria o interesse pela trama de vingança – fórmula que costuma gerar mais solidariedade do espectador. No mais, o filme poderia ter aproveitado melhor a personagem de Paz Vega, que parece saída de algum filme dos anos 1970. E ser menos óbvio ao estereotipar todos os mexicanos como bandidos. Falta de sensibilidade dos realizadores ou visão de mundo de extrema direita – que limita mulheres e vilaniza imigrantes? Provavelmente ambos.
Capítulo Dois de It não repete os acertos do primeiro filme
“It: Capítulo Dois” não se desconecta do original. Neste sentido, é meio como “De Volta para o Futuro II”. A diferença é que Robert Zemeckis e Steven Spielberg se deram bem graças à liberdade proporcionada por um roteiro original, enquanto Andy Muschietti se deu mal por respeitar o livro de Stephen King. E olha que “It: Capítulo Dois” repete várias vezes a dica: “o final é ruim!” A fala está realmente no filme. Um dos personagens do filme anterior se torna escritor na vida adulta, como Stephen King. Em sua primeira cena, ele está nas filmagens da adaptação de uma de suas obras e descobre que o final será mudado para a versão de cinema. Ele fica irritado com a decisão do diretor, interpretado pelo lendário cineasta Peter Bogdanovich, de “A Última Sessão de Cinema”. Mas o comandante do filme peita o autor e diz em sua cara que o final original é ruim e ele precisa ser alterado para o filme. Bom, conhecendo a conclusão e a metade final (mais fraca) de “It”, o livro, acreditei nesta cena que a fala de Bogdanovich era a voz do diretor verdadeiro do longa, Andy Muschietti, avisando aos fãs mais radicais que viria mudança por aí para o bem de seu próprio filme. Ledo engano! Ficou somente como uma piada interna em relação ao que se costuma dizer sobre os finais de Stephen King, que cria ótimas histórias de terror, mas geralmente não sabe muito bem como terminá-las. Mas, no fundo, não é uma piada. É fato. King pode espernear sobre a versão de Stanley Kubrick para “O Iluminado”, mas ainda bem que o cineasta ignorou seus chiliques e entregou um clássico do cinema com sua cara. Então, por mais que Muschietti mude uma coisa ou outra, o destino está lá. E, gente, depois de um primeiro filme delicioso, em que Pennywise, o palhaço dançarino, virou um Freddy Krueger dessa nova geração, somos apresentados no “Capítulo Dois” a rituais indígenas, seres cósmicos e uma aranha gigante. Ainda bem que Muschietti deixou de fora a tal tartaruga que enfrenta o palhaço no livro. Pelo menos, se o primeiro “It” introduzisse algumas dessas ideias, o choque não teria sido tão brusco. Outro mistério é como “It: Capítulo Dois” tem muito menos para contar sobre o mistério, em relação ao primeiro, mas ainda assim consegue ser meia hora mais longo que o original. Pior: passa a sensação de ter cerca de uma hora a mais de tão arrastado e modorrento. E se Bill Skarsgard recebeu merecidos elogios pela sua caracterização de Pennywise no longa anterior, dispensando comparações com o palhaço icônico de Tim Curry na minissérie dos anos 1980, em “Capítulo Dois” ele quase some. Isso porque Pennywise está preocupado em devorar criancinhas e, como sabemos, o Clube dos Otários cresceu. A trama agora acontece 27 anos depois. O que resta? Adultos reunidos tentando relembrar a infância e seus pesadelos antes do confronto final com Pennywise. E é isso que leva um bom tempo. Andy Muschietti poderia ter polido mais o roteiro de Gary Dauberman, que se atém demais ao livro original. Fica clara a falta que fazem Cary Joji Fukunaga e Chase Palmer, que assinaram o roteiro do “Capítulo Um”, finalizado por Dauberman, e limaram do filme anterior aquela sensação prolixa de adaptações de obras famosas que não podem mudar muito para desagradar o autor e os fãs. Além disso, há um problema de desenvolvimento de personagens que precisava ser alterado, pois não faz mais sentido nos dias atuais. Todos os garotos cresceram ricos, exceto o único negro da história. Lamentável. De terror, também quase não há nada. O primeiro “It” é um filme do gênero para crianças. Uma das principais críticas ao longa de 2017 é que ele não assusta muito. Ainda assim, deixa crianças impressionadas com Pennywise. Já “It: Capítulo Dois”, com os personagens crescidos, tinha a obrigação de explorar o medo de adultos – como perda ou morte. Mas esses medos “invisíveis” mal são tocados, porque o mais importante da trama parece ser relembrar o “Capítulo Um” à exaustão. Nem é preciso rever o anterior para embarcar no “Dois”, porque a história faz questão de repassar tudinho. Até a trama terminar a la “O Hobbit” para jogar qualquer intenção de horror na lata do lixo. De qualquer forma, a produção acerta na escolha do elenco adulto, o que livra o filme de ser considerado medíocre. Consagrados como Jessica Chastain e James McAvoy deixaram vaidades de lado para viverem a continuação como se fosse o filme de suas vidas, mas quem se destaca mesmo são Bill Hader como Richie e Jason Ransone como Eddie. Fantásticos! Também é um acerto a opção pela nostalgia, da sensação de lembrar boas e más experiências da infância, como as merdas feitas pelos pais, que deixaram sequelas, amizades que nunca mais vimos ou amores que ficaram no passado. No entanto, não funcionou a opção de ilustrar algumas memórias da infância com participação do elenco infantil do primeiro longa, afinal os garotos estão dois anos mais velhos e a maquiagem digital para deixá-los com carinha de 2017 não deu tão certo. Como a Marvel entregou melhor esse trabalho digital de rejuvenescer atores, parece que esse processo foi feito às pressas (ou com menor orçamento) em “It: Capítulo Dois”. Será que não poderiam simplesmente mostrar os meninos dois anos mais velhos?
O Fim da Viagem, O Começo de Tudo é de uma delicadeza impressionante
Considerado por muitos um dos maiores cineastas de cinema de horror do Japão, Kiyoshi Kurosawa tem, com frequência, demonstrado interesse em variar. Basta lembrar que um de seus mais recentes trabalhos, “Para o Outro Lado” (2015), por mais que adentre o terreno do espiritual, não opta pelo medo como fator principal, é sobre um grande amor que retorna da morte, tudo de maneira muito serena. “O Fim da Viagem, O Começo de Tudo” (2019), seu mais recente filme, exibido no Festival de Locarno, é de uma delicadeza impressionante. É, desde já, um dos melhores lançamentos deste ano. O filme nos apresenta a uma repórter de um programa de variedades do Japão que está com sua equipe no Uzbequistão para gravar a história de um lendário peixe de dois metros de comprimento que habita, supostamente, um lago. Como não conseguem gravar o tal peixe, a equipe procura alguma coisa que possa ser interessante para o tal programa. Enquanto passa esse tempo em território estrangeiro, a protagonista de nome Yoko procura conhecer os pontos turísticos do lugar, ao mesmo tempo que lida com a solidão e o sentimento de saudade do namorado e uma forte insegurança também, tendo em vista que em determinado momento ele deixa de retornar suas mensagens. Yoko é protagonizada por Atsuko Maeda, em terceira colaboração com Kurosawa. A primeira foi, inclusive, em outro filme ambientado fora do Japão, “O Sétimo Código” (2013). Outra informação muito interessante sobre Atsuko é que ela é uma cantora famosa no Japão, e em “O Fim da Viagem…” mostra este talento em duas lindas cenas. Ela canta uma versão em japonês de “Hino ao Amor”, sucesso de Edith Piaf, nas duas cenas, mas o sentido da canção muda de acordo com o que acontece na vida da personagem e com o fluxo de seus sentimentos. Impressionante como o filme nos faz próximos de Yoko. Sentimos medo quando ela sente medo; sentimos solidão quando ela se sente só; sentimos o seu mal estar diante do trabalho quando ela assim se sente; o sentimento de não pertencimento etc. Só por isso o filme já é louvável. E explica porque o diretor não economiza elogios a Atsuko, que consegue passar emoção sozinha em cena. E há muitas cenas em que ela está sozinha naquele país estrangeiro e estranho. Há uma cena especialmente tocante, na qual ela tem a ideia de produzir uma matéria sobre um bode que está preso em uma casa, com o objetivo de libertar o animal. Como a equipe compra a ideia, eles vão em busca de realizar a ação. E as cenas de Yoko com o bode são tão cheias de ternura que só aumentam ainda mais o grau de quase inocência que a personagem transmite. De vez em quando, personagens assim fazem bem para o espírito cinéfilo. E por isso filmes assim são tão valiosos.











