A Odisseia dos Tontos envolve com humor politizado de revanche popular
Na América Latina, os planos econômicos que visam a salvar a economia acabam sempre estourando do lado dos mais fracos e que já estariam acostumados a serem ludibriados, como tontos. Aqui no Brasil, o plano Collor foi um exemplo dramático de situações terríveis, provocadas pelo confisco do dinheiro poupado pelo cidadão. Na Argentina, em 2001, houve o corralito, que segurou os dólares, limitando drasticamente o seu uso e transformando-os em pesos, que perdiam valor. Como também aconteceu – e acontece – por aqui, informações privilegiadas de pessoas poderosas e dos bancos favoreceram uns e acabaram com a vida de outros. É nesse contexto de crise econômica que desempregados e subempregados do filme “A Odisseia dos Tontos”, em busca de sobrevivência, conseguem juntar dólares para reformar e reavivar uma cooperativa agrícola, até que o corralito, associado a uma manobra bancária escusa, acabou com a economia deles de vez. Só que eles dizem “Chega!” e prometem fazer de tudo para encontrar o dinheiro que lhes foi roubado, arquitetando uma revanche dos perdedores, os tontos. Se o filme começa bem político, acaba se transformando em uma aventura em forma de comédia. Mas que mantém o espírito crítico e a ironia, associados a uma forte raiva de se sentir, mais uma vez, passado para trás. Tudo acontece numa pequena vila da província de Buenos Aires, onde afinal todo mundo acaba se conhecendo e sabendo de tudo que se passa. Desse modo, as estratégias possíveis são ampliadas e viabilizadas, embora as consequências também o sejam. A trama é muito bem construída, revelando, uma vez mais, que a Argentina tem escritores e roteiristas muito bons para relatar histórias e relacioná-las ao ambiente social, econômico e político do país. O diretor Sebastián Borensztein já tinha realizado o delicioso “Um Conto Chinês”, em 2011, e dirigiu também um episódio de “Relatos Selvagens”, de 2014, enquanto o roteirista Eduardo Sacheri, em cujo livro o filme é baseado, também escreveu “O Segredo dos Seus Olhos”, vencedor do Oscar de Melhor Filme em Língua Estrangeira de 2010. Sucessos de público no Brasil. Aqui, eles trabalham com um elenco magnífico, liderado por Ricardo Darín (que estrelou os três filmes citados), com participação de seu filho, Chico Darín, e que tem Luis Brandoni, Andrés Parra, Verónica Llinás e muitos outros bons atores e atrizes. Isso resulta num filme bem equilibrado, convincente nas atuações e com um bom ritmo, capaz de envolver o espectador na história. “A Odisseia dos Tontos” teve sua première nacional na Mostra de São Paulo e foi escolhido pela Argentina para representar o país na disputa pelo Oscar de filme internacional. A Argentina costuma indicar produtos fortes nessa disputa, desta vez, porém, por melhor que seja o longa, é difícil que obtenha êxito, porque há grandes filmes na competição, inclusive o brasileiro “A Vida Invisível”, de Karim Ainöuz.
Vencedor de Cannes, Parasita surpreende a cada reviravolta
“Parasita”, vencedor da Palma de Ouro em Cannes e indicado pela Coreia do Sul para disputar o Oscar de Filme Internacional (ex-Filme em Língua Estrangeira), é um produto poderoso. A narrativa se refere a uma família pobre, que se aproveita de uma oportunidade de trabalho temporário para um de seus membros para parasitar uma família rica. Para desenvolver essa história, o cineasta Bong Joon-ho (de “Expresso do Amanhã”) se vale de uma variedade de gêneros. “Parasita” é comédia, destila um humor que produz riso na plateia. É também um drama, até bem pesado. Não há personagem que saia incólume de lá. Tem muito suspense e um sem-número de surpresas e reviravoltas de tirar o fôlego. Tem também alguns elementos fantasiosos, surrealistas, eu diria. Ao mesmo tempo, aborda aspectos da realidade social que estão subjacentes à situação, mas também explicitados na dinâmica das classes sociais envolvidas na trama. Até aspectos políticos da divisão das Coreias aparecem, dando um toque inteligente em cenas de humor. O filme consegue intrincar todos esses elementos dos diferentes gêneros cinematográficos com bastante competência, sem artificializar as passagens de um a outro registro e sem perder o ritmo. Ao contrário, o ritmo só cresce após cada reviravolta. Os desdobramentos das ações, na realidade, produzem novas histórias e situações-problema. Constituem-se num desafio novo a cada um dos personagens, deixando sempre em aberto aonde é que tudo isso vai parar. É um filme imprevisível, mas que conta com um roteiro muito bem engendrado. É, sem dúvida, um dos maiores destaques do cinema mundial em 2019.
Mostra de São Paulo: Programação vasta contrasta com clima sinistro para a Cultura no Brasil
A 43ª. Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que começa nesta quinta (17/10), contrasta sua vasta programação ao momento sinistro, em que atuar na área da Cultura no Brasil está cada vez mais difícil: pela crise, pelos cortes, pelos filtros, pelos ataques, pelas perseguições, vocês sabem… Um evento da magnitude e importância da Mostra ganha significado ainda maior do que sempre teve, nesse contexto. O trabalho incansável de Renata de Almeida e sua equipe é digno do maior reconhecimento. É um trabalho de resistência e que não perde o fôlego. Senão, vejamos: mesmo com a perda de patrocínios, como o da Petrobras, a Mostra 43 vem com mais de 300 filmes de 45 países. Continua recebendo um número grande de convidados internacionais, promove uma Mostra Brasil ampliada, organiza o III Fórum da Mostra, debate filmes, lança livros, traz produções de realidade virtual, sessões especiais no Teatro Municipal, no Auditório Ibirapuera, no vão livre do MASP, exibições na CPFL de Campinas, itinerância em 12 cidades paulistas com o SESC e tudo o que tem feito dela o evento cinematográfico mais importante do país. O cardápio de filmes exige que os cinéfilos se debrucem na programação para descobrir as pérolas de todos os cantos do planeta, que sempre existem, e os novos talentos de primeiro e segundo longas de cineastas de todos os quadrantes. Já os filmes premiados nos festivais pelo mundo, como o vencedor de Cannes “Parasita”, de Bong Joon-ho, requerem menos esforço para serem localizados. Assim como os candidatos de seus países ao Oscar de filme internacional. “Wasp Network”, de Olivier Assayas, adaptação do livro de Fernando Morais “Os Últimos Soldados da Guerra Fria”, abre a Mostra. Assayas ainda será homenageado com o prêmio Leon Cakoff e uma retrospectiva com 14 obras exibidas nesta edição da Mostra. “Dois Papas”, o novo longa de produção internacional de Fernando Meirelles, protagonizado por Jonathan Pryce e Anthony Hopkins, fecha a programação no dia 30. E, entre eles, o melhor do cinema mundial, especialmente o cinema de alta qualidade artística, promotor de reflexões importantes que nos remetem aos dilemas do mundo atual. Isso tudo vai acontecer em São Paulo, de 17 a 30 de outubro de 2019, em 34 salas de cinema, de 28 locais de exibição, entre eles os já tradicionais Cinearte, Cinesesc, Espaço Itaú de Cinema Frei Caneca e Augusta, Petra Belas Artes, Reserva Cultural, Cinesala e Cinemateca Brasileira. O circuito Spcine, o Instituto Moreira Salles, o Museu da Imagem e do Som e o Itaú Cultural também estão novamente presentes na Mostra. A central da Mostra fica no Conjunto Nacional, da avenida Paulista, onde podem ser adquiridas permanentes integrais (válidas para todas as sessões, sem restrição), especiais (para sessões de 2ª. a 6ª. feira, até as 17:55 h), ou pacotes de 40 ou de 20 ingressos. Assinantes da Folha têm desconto nas permanentes e associados plenos do Sesc têm preços promocionais, no Cinesesc. Ingressos individuais para as sessões somente nas salas dos cinemas, no dia de exibição do filme escolhido. Informações já podem ser obtidas na central da Mostra ou no site mostra.org. As vendas de permanentes e pacotes começam no dia 12 de outubro, sábado. Pacotes de 20 ingressos costumam se esgotar rapidamente. Como as sessões da Mostra costumam ser concorridas, vale a pena comprar pacotes ou permanentes, porque os ingressos podem ser tirados alguns dias antes da exibição do filme pretendido. O cartaz da Mostra 43, de Nina Pandolfo, é de uma delicadeza que contrasta com os tempos de ódio, grossura e lacração que estamos vivendo. O cartaz (abaixo), como a própria Mostra, é um respiro de beleza e arte.
Não se sai de Coringa sem sentir o peso de suas questões
Coringa, como é do conhecimento geral, é o poderoso e misterioso vilão das histórias do Batman. É um desses vilões que fazem sucesso junto ao público. Por isso, explorar as suas origens pode ser uma tarefa atraente. O filme de Todd Phillips, que leva o nome do personagem, vai nessa linha. “O difícil de ser um doente mental é que todo mundo espera que você aja como se não fosse”, frase dita pelo personagem no filme, pode ser o começo de tudo para entender o Coringa, ou melhor, esta mais recente versão cinematográfica dele. Acometido por uma risada assustadora, o filme nos informa que o riso incontrolável do personagem é uma doença que está em desacordo com os sentimentos ou a situação vivida por ele. As feições embranquecidas ou com máscara remetem à figura do palhaço, sua ocupação inicial. E é na condição de palhaço que ele mata e capitaneia ações violentas e destrutivas, que alcançam toda a Gotham City. É, digamos, a vingança pela rejeição e maus tratos sofridos por toda a vida e sempre reiterados pela sociedade. A revolução dos palhaços, porém, tem outras dimensões. A cidade vive abandonada, cercada de lixo por todos os lados, fruto de uma greve nunca resolvida, e espalhando super-ratos por todos os lugares. Ou seja, trata-se de uma Gotham City maltratada pelos políticos e ainda sem sombra de um Batman para salvá-la. História em quadrinhos à parte, “Coringa” reflete o mal estar do nosso mundo, em que a violência é onipresente e, em alguns casos, pode aparecer como solução para alguma coisa. Tudo pode começar com um doente mental ressentido, a quem alguém entrega uma arma, com a pretensão de ajudá-lo a se defender das pessoas que o atacam. Soa familiar? Claro e, também, assustador. O lançamento do filme nos Estados Unidos chegou cercado por cuidados, na suposição de que sua violência pudesse estimular atiradores, como já há às pencas no país. Já tem armas, precisam ainda do estímulo do cinema? Duvidoso. Desde “Pequenos Assassinatos”, filme de Alan Arkin de 1971, está posta a prática do assassinato em massa, sem motivo palpável, como uma chaga contemporânea ao lado do terrorismo – este com motivações políticas, econômicas, culturais e religiosas detectáveis. Lobos solitários, excluídos e que se excluem, vivem aparecendo, fato revelador da solidão e da exclusão sociais. Se esses lobos forem capazes de inflamar multidões, estaria posto o clima do caos. E é o caso da história de “Coringa”. O filme de Todd Philips é surpreendentemente forte e impactante. Não se sai do cinema sem sentir o peso da questão. O espectador sai mexido, quer queira, quer não. Quem for assistir só pensando em super-heróis e batalhas com os vilões de costume vai se decepcionar. “Coringa” tem muito mais força e reflexão do que isso. Não por acaso, venceu o Leão de Ouro do Festival de Veneza 2019. Entre os méritos do filme é preciso destacar, de modo evidente e reluzente, o desempenho de Joaquin Phoenix. Ele é perfeito para o papel de Arthur Fleck, o Coringa. Ou ele se faz perfeito para todos os papéis: é um grande ator. Até Robert De Niro desaparece no filme, diante da atuação de Joaquin Phoenix. Só pelas gargalhadas deslocadas da ação já se pode ver a capacidade de comunicação que ele tem. Sem ele, o filme talvez fosse pouca coisa, com ele, ganha importância. Mas todo o elenco também dá bem conta do recado, levando a ação de um filme polêmico, palpitante para o público. iframe width=”650″ height=”365″ src=”https://www.youtube.com/watch?v=jfVTJm9NilA” frameborder=”0″ allowfullscreen>
Legalidade reconstitui luta histórica contra golpe militar no Brasil
O filme de Zeca Brito, com roteiro dele e de Léo Garcia, mescla ficção e realidade para contar fatos muito importantes da nossa história contemporânea. “Legalidade” trata da resistência coordenada pelo governador gaúcho Leonel Brizola a um golpe militar em curso, em 1961, com apoio dos Estados Unidos. Era o que surgia no horizonte com a renúncia do então presidente Jânio Quadros e as ações visando a impedir a posse do vice-presidente João Goulart, que estava em viagem à China comunista. Na realidade, desde a morte de Getúlio Vargas, passando pela eleição de Juscelino Kubitschek, conseguiu-se impedir a eclosão do golpe. Golpe frustrado por reações corajosas, escoradas no apoio popular, como o próprio suicídio de Vargas ou a ação decisiva do marechal Lott. Da mesma forma, o papel heroico, em 1961, coube ao então governador Leonel Brizola, que jogou todas as suas forças na defesa da Constituição, formando a cadeia da legalidade a partir do próprio Palácio Piratini, e a formação dos grupos dos onze, país afora, prometendo resistir até pelas armas para garantir a legalidade. Conseguiu, embora o próprio Jango tenha negociado o parlamentarismo para poder assumir, frustrando as expectativas dos que lutaram por sua posse, ao menos em parte. Jango recobrou plenos poderes, um ano depois, por meio de um plebiscito. Mas o golpe acabou se realizando em 1964. A reconstrução desses fatos é fundamental para que não se perca o fio da história e por enfatizar a importância da resistência popular na democracia. O uso complementar de material de arquivo jornalístico da época dá a dimensão da extensão e do significado que esse evento político representou para o país. No caso de “Legalidade’, o filme traz a ação também para o ano de 2004, em que Brizola morreu, a partir da retomada de uma trama ficcional, envolvendo um triângulo amoroso entre um militante e jornalistas imersos naqueles fatos históricos. Fatos que estão sendo pesquisados pela filha da jornalista do Washington Post, Cecília, que foi para onde convergiu a questão amorosa, mas também política, da narrativa. Fantasias à parte, o filme gaúcho retoma um momento importante, crucial, da nossa realidade política. O papel central destinado a Leonel Brizola, um inegável herói no filme, foi muito bem levado pelo ator Leonardo Machado, morto precocemente no final de 2018. Cleo Pires, Fernando Alves Pinto e Letícia Sabatella têm igualmente ótimos desempenhos. Um filme que merece ser conhecido, em especial quando se pretende reescrever certos fatos históricos, negando a gravidade que tiveram para o país, como a ditadura militar, que se consumou após os fatos narrados em “Legalidade’ e perpurou por 21 longos anos de opressão, que não podem ser esquecidos.
Bacurau mistura ação e reflexão num filme de peso
Novo filme de Kleber Mendonça Filho (“Aquarius”) e Juliano Dornelles (“O Ateliê da Rua do Brum”), “Bacurau” é um western brasileiro. Segue a trilha dos históricos “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (1963) e “O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro” (1969), de Glauber Rocha (1938-1981). Filmes que já se pautavam por grande força política e preocupação social, tentando desvendar um universo nordestino, marcado pela violência opressora, de um lado, e resistente, de outro. Dialoga também com a produção nacional que sempre teve nos cangaceiros uma fonte de inspiração permanente, oportunidade de pensar e de criar a partir da realidade do nordeste brasileiro para alcançar o país. “Bacurau” incorpora novos elementos a tudo isso. Tem invasores agressores e poderosos. Que chegam a tirar o povoado do mapa e produzem assassinatos aparentemente inexplicáveis, valendo-se até de drones com aspecto de disco voador. Falam inglês, seu comandante é um alemão com pinta e comportamento de nazista, e os colaboradores que atuam com eles falando português, além do inglês, são desprezados e descartados na primeira oportunidade. Ou seja, estamos no terreno da alegoria política, que soa tão atual, mas talvez seja mesmo uma constante da nossa história. Até porque a trama não se nutre do momento atual (foi filmado antes da eleição de Bolsonaro), embora pareça inspirado nele. Percepção acurada? Premonição? Visão apurada do processo histórico, da relação entre a casa-grande, a senzala e a dimensão internacional que as envolve. A produção mistura ação e reflexão no mesmo produto. É um filme forte, intrigante, provocador, mas é também uma aventura, muito envolvente. Por isso, pode ser visto como um filme de gênero, embora não esteja preocupado em seguir cartilhas ou convenções. Fala ao sentimento do público, mostra uma violência que tem de ser decifrada e que, afinal, leva a algumas conclusões. Talvez distintas, para cada grupo de espectadores. Mas que deve mexer com todo mundo, de um jeito ou de outro. Um elenco enorme e dedicadíssimo a seus personagens passa uma sensação de grande veracidade e remete a um mundo tão familiar quanto distante. Sonia Braga, como a dra. Domingas, reúne as dimensões da solidariedade e do descontrole, a indicar a profunda humanidade da figura que encarna. O alemão Udo Kier (astro de inúmeros terrores clássicos) é a maldade forasteira, mas também o impasse e a solidão. Bárbara Colen faz Teresa, mulher forte e lutadora. Os forasteiros colaboracionistas são patéticos, mas a gente até se esquece disso porque Karine Teles e Antonio Saboia nos conquistam pela qualidade de seus desempenhos. Thomás Aquino, como Pacote, e o inusitado bandido local Lunga, papel de Silvero Pereira, nos mostram como é estar no fio da navalha entre a fome e o crime. Todos os personagens são bem construídos e têm um ator ou atriz à sua altura. A trilha sonora é também bem marcante, vai de Gal Costa e seu objeto voador não-identificado a Geraldo Vandré, passando por Sérgio Ricardo. Marcos reconhecíveis da resistência que sempre pautou a nossa música e o nosso cinema, que combinam bem com a temática tratada no filme. A comunidade do povoado da Barra, no Rio Grande do Norte, divisa com a Paraíba, onde a maior parte do filme foi gravada, participou ativamente dos trabalhos de apoio à produção e como figurantes, contribuindo para a autenticidade das situações mostradas. “Bacurau” é um filme de peso da produção brasileira recente, que já vem recebendo o maior reconhecimento internacional, na forma de convites para mais de 100 festivais e mostras de cinema pelo mundo, e já conquistou prêmios nos festivais de cinema de Munique, de Lima e o importante Prêmio do Júri do Festival de Cannes.
Pássaros de Verão conta a origem indígena do tráfico colombiano
Assim como em “O Abraço da Serpente” (2015), o novo filme de Ciro Guerra, codirigido por Cristina Gallego, põe o espectador em contato com uma cultura colombiana indígena. No caso deste “Pássaros de Verão”, é a comunidade Wayuú, mostrada por meio de uma aldeia a partir da família wayuunaiki, em cujo idioma o filme é falado, além do espanhol e do inglês. O inglês, por conta dos turistas norte-americanos que aparecem por lá, em busca de maconha. O que se vê, então, é um choque cultural, que põe em guerra a família indígena com o que ficou conhecido como la bonanza marimbera, o lucrativo comércio ilegal da maconha para os Estados Unidos, no decorrer dos anos 1970, que tem a ver com um ciclo que colocou a droga no centro das questões políticas do próprio país. O que seria uma questão local, de pequena dimensão, tornou-se base de uma guerra que alcançou grandes proporções, como mostra a história recente da Colômbia. O filme tem um enfoque diferente para a questão das drogas e dos crimes que a acompanham: a descoberta de um caminho produtivo, relativamente fácil e altamente lucrativo, que poderia ser a redenção econômica daquela comunidade, transformando-se numa guerra familiar muito sangrenta. A ambição e a tradicional defesa da honra e dos hábitos ancestrais da comunidade convivem com o mercado que se conduz por outros padrões, o das economias capitalistas, em que oferta e procura determinam ações, preços, e trazem consequências que escapam inteiramente ao controle da cultura local, acabando por praticamente destruí-la, descaracterizando-a, gerando a cizânia. “Pássaros de Verão” mostra a riqueza cultural tradicional do povo Waiuú, seus rituais religiosos e de acasalamento, suas danças, oferendas, princípios de relacionamento e inserção familiar. As drogas até fazem parte da comunidade, como costuma acontecer com quem está mais próximo das plantas e do uso medicinal delas. Mas se torna mais difícil de compreender e lidar quando o produto assume a condição de mercadoria, reverenciada e consumida com avidez e a preços vantajosos pelos forasteiros. Elas são fontes de riqueza, por um lado, e uma espécie de força do demônio, por outro. O filme é muito bem feito, instigante, original na abordagem, reafirmando os realizadores colombianos como cineastas de peso, o que está sendo reconhecido em festivais importantes, como o de Cannes. Ciro Guerra (com produção da atual codiretora Cristina Gallego) concorreu ao Oscar de filme estrangeiro com “O Abraço da Serpente”. Aquele filme foi também um dos grandes destaques da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e exibido no circuito comercial. “Pássaros de Verão” está seguindo trilha semelhante, incluindo a seleção para buscar uma indicação ao Oscar, e firmando uma filmografia muito interessante, com base na Antropologia, O tema de Guerra é a identificação dos elementos culturais ancestrais, postos em contato com elementos contemporâneos que os modificam e transformam, mas que também podem transformar, de algum modo. Via uma consciência ecológica, por exemplo, que tem muito a aprender com as culturas mais tradicionais. Também é muito relevante seu papel ao registrar os encontros e desencontros culturais de diferentes mundos que coexistem.
A Última Loucura de Claire Darling reúne Catherine Deneuve e sua filha Chiara Mastroianni
Ver Catherine Deneuve e Chiara Mastroianni, mãe e filha na vida real, e grandes atrizes da telona, atuando juntas no mesmo filme, já é um bom motivo para ir ao cinema. “A Última Loucura de Claire Darling”, porém, tem algo mais a oferecer. A história de Claire, que decide que sua vida chegou ao fim e resolve se desfazer de todos os seus ricos, artísticos e sofisticados pertences, a preços meramente simbólicos, tratada aqui como loucura, pode trazer algumas reflexões interessantes. Sabe-se que com o avanço da idade ocorrem algumas perdas mentais, lapsos de memória, esquecimentos, o presente fugidio, aspectos do passado que se borram, coisas assim. Não se trata de diagnóstico de Alzheimer ou similar. É a perda natural da vida, que o passar do tempo cobra. No entanto, a personagem do filme é uma pessoa lúcida, mais do que isso, inteligente, instruída, de gostos altamente sofisticados. O que ocorre é que essa lucidez acaba sendo parcial. Ou seja, parte dela se perde nesse processo de deterioração natural. O uso inadequado e a percepção do valor do dinheiro é um bom exemplo. Coisas são supervalorizadas e pagas regiamente. Ou bens e valores são esbanjados sem motivo, ou a partir de uma avaliação precária e imediata, ou, ainda, por adesão a uma causa, por exemplo, religiosa, discutível. No caso do filme da diretora Julie Bertuccelli, é a ideia de que se possa conhecer o dia ou o momento da própria morte. Antevê-lo sem estar vivendo nenhuma situação de doença ou dor extremas é, evidentemente, um delírio, que gera comportamentos extravagantes, capazes de trazer de volta à pequena aldeia, onde vive a mãe, uma filha distante, um vínculo complicado. Mãe e filha, belas mulheres, grandes atrizes, que encarnam com brilho esses papéis.
Rafiki mostra amor proibido em país que reprime LGBTQs
Kena (Samantha Mugatsia) e Ziki (Sheila Munyiva) se sentem atraídas uma pela outra e se tornam as “amigas” do título original de “Rafiki”, primeiro e premiado longa da cineasta queniana Wanuri Kahiu. As protagonistas são filhas de dois políticos locais, de uma região de Nairobi, no Quênia, que estão em disputa na eleição municipal com posicionamentos políticos diferentes. Só por isso, já não seria muito adequada essa aproximação. Fica mais complicada a situação, considerando-se que, apesar de o casamento gay entrar nas cogitações políticas, no Quênia a homossexualidade é ilegal e pode ser penalizada com prisão. Além disso, é fortemente rejeitada e hostilizada pela religião. Não há garantia dos direitos dos LGBTs. Tudo isso faz com que o amor entre Kena e Ziki, que se dá de forma quase instantânea – amor à primeira vista? – se torne um drama, impedindo que elas possam experimentar um envolvimento amoroso que escapa dos padrões e expectativas dessa sociedade muito conservadora. “Rafiki” trabalha essas questões com sutileza, numa produção bem cuidada, e escorando-se no admirável talento da jovem atriz Samantha Mugatsia, que conquista desde os primeiros planos do filme. Sua parceira explora mais a aparência e a feminilidade, mas não tem o mesmo carisma. O resultado geral é muito bom. O filme da diretora Wanuri Kahiu merece ser conhecido e apreciado. Não precisa nem dizer que a exibição de “Rafiki”, que tem coprodução da África do Sul e França e foi bem recebida nos festivais internacionais de cinema, teve sua exibição proibida no Quênia, por supostamente promover o lesbianismo. Em pleno século 21, há países e governos que querem impedir que a diversidade humana exista. Mostrá-la se confunde com propagá-la. Temos muito ainda para evoluir, até que o mundo como um todo possa ser um lugar habitável para todos os humanos.
Um Homem Fiel segue a tradição da nouvelle vague
“Um Homem Fiel”, de Louis Garrel (“Dois Amigos”), se inspira na tradição da nouvelle vague, lidando com um quarteto amoroso, formado por Abel (o próprio Garrel), Marianne (Laetitia Casta, mulher do ator), Paul (Joseph Engel) e Eve (Lily-Rose Depp, a filha de Johnny Depp). Envolve separações, perda da mulher para o amigo, retorno no tempo, expectativas amorosas que vêm desde a meninice, suas alternativas, possibilidades e impedimentos. Nada de tão novo, exceto o foco na fidelidade masculina, mas o filme flui bem, envolve e trata de gente real. As relações amorosas, sob os mais diversos ângulos, sempre foram o forte do cinema francês. O filme foi escrito pelo diretor e ator Louis Garrel, Florence Seyvos (“Camille Outra Vez”) e ninguém menos do que Jean-Claude Carrière (“A Bela da Tarde”, “A Piscina”, “A Insustentável Leveza do Ser”), um dos maiores roteiristas da história do cinema francês. E isso faz toda a diferença. O filme dá seu recado sem enrolar nem perder tempo, em apenas 75 minutos, bem aproveitados.
Estou Me Guardando para quando o Carnaval Chegar tem dimensão reflexiva surpreendente
“Cinema, Aspirinas e Urubus” (2005), primeiro longa-metragem do diretor pernambucano Marcelo Gomes, está entre as melhores produções brasileiras do século 21. “Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo” (2009), dirigido por Gomes e Karim Ainouz, é um filme experimental brilhante e um dos produtos mais criativos da nossa filmografia recente. O que recomenda vivamente o trabalho do cineasta. Marcelo Gomes fez ainda “Era uma Vez Eu, Verônica” (2012) e “Joaquim” (2017), e codirigiu com Cao Guimarães “O Homem das Multidões” (2013). Uma trajetória bastante sólida e consistente. Seu novo trabalho, “Estou Me Guardando para quando o Carnaval Chegar” tem título quilométrico, que remete a uma música de Chico Buarque. No entanto, é um documentário com uma abordagem simples, clara e direta, que dá conta de uma realidade bem mais complexa do que a sua aparência faria supor e alcança uma dimensão reflexiva surpreendente. Como um filme que se constrói ao caminhar sobre o tema e ao encontrar elementos novos a cada passo, a narrativa se estabelece à medida em que é capaz de ouvir o outro com atenção e, de algum modo, interagir, participar e intervir no seu objeto de estudo. O personagem do documentário é a cidade de Toritama, no Agreste de Pernambuco, que era uma localidade pacata, que Marcelo Gomes conheceu quando criança, acompanhando seu pai em visitas de trabalho. Era, não é mais. Foram justamente a agitação e as mudanças em Toritama, visíveis ao passar pelas estradas locais, que chamaram a atenção dele. Agora Toritama se define como a capital do jeans. 20% de toda a produção de jeans do Brasil vem de lá, cerca de 20 milhões de peças por ano produzidas em fábricas de fundo de quintal, que são chamadas de facções. É surpreendente que uma cidade com 40 mil habitantes tenha uma produção assim tão grande para ostentar. E por que isso acontece? Em síntese, porque tudo que se faz lá, o tempo inteiro, é trabalhar. Cada casa ou conjunto delas vira uma oficina de costura individual ou coletiva. Quase todos parecem preferir trabalhar por sua conta e risco, como e quando quiser, sem carteira assinada na fábrica. Com a certeza de que o que produzirem vai ser comprado. Ou porque já foi combinado ou porque vai ser vendido nas grandes feiras que atraem público de todos os cantos. Como mais peças ou partes de peças costuradas resultam em pequenas quantidades de dinheiro, quanto mais se faz mais se ganha. Conclusão, a maioria dos moradores/produtores da cidade trabalha continuamente desde cedo até tarde da noite. Em casa mesmo, sem horário. Ou melhor, sem horário para viver, só para trabalhar, comer e dormir, com direito a uma hora de TV, provavelmente para ver a novela. Uma espécie de escravidão não só consentida, mas buscada pela população. Que dela não se queixa, com poucas exceções. Acha que está muito bom assim, sente-se livre e dona do seu nariz. Ou melhor, do seu negócio. Muito curioso esse microcosmo do capitalismo que toma de assalto e transforma radicalmente uma pequena localidade, que já não tem espaço nem para criar galinhas ou fazer caminhar os bodes que restaram pela cidade, cruzando a rodovia. Se isso parece estranho e surpreendente, o que dizer da obsessão absoluta de toda a população em, obrigatoriamente, passar o Carnaval na praia? Custe o que custar, ninguém fica, todos saem para tomar banhos de mar, beber, fazer alguma fantasia, batucar e dançar no Carnaval. Se não tiver dinheiro, vende o que tem – fogão, geladeira – ou toma emprestado, para depois pagar ou recomprar o que vendeu. O que não pode é perder o Carnaval. Marcelo Gomes filmou a cidade nos dias de Carnaval e só então reencontrou o silêncio e as ruas vazias do seu tempo de criança. O mundo do trabalho e o do lazer (ou férias) se colocam em oposição. Oposição não é bem a palavra. Talvez espaço e tempo estanques, separados. Trabalho todo o tempo. Parada no Carnaval, fora da cidade, como obrigação incontornável. Trabalho parece ser só dinheiro e o dinheiro vira uma dependência, é só ele que importa. Prazer no período mágico do Carnaval, tratado como obrigação tanto quanto a atividade produtiva. Mas há também prazer no trabalho e nos resultados obtidos. Por que não é possível integrá-los, mesclá-los, equilibrar algumas coisas, diante da obsessão em fabricar cada vez mais e mais e obter o dinheiro desejado? Fico pensando nos mecanismos da Internet – e-mails, WhatsApp, outras redes sociais – nos tomando um tempo absurdo de trabalho não remunerado, quando a tecnologia teria de ter vindo para nos poupar tempo e permitir o ócio criativo. Parece que também nos deixamos escravizar com gosto, ou simplesmente o esquema nos engole. Isso também tem a ver com abdicar da liberdade para seguir um salvador da pátria, um mito qualquer? O ótimo documentário de Marcelo Gomes nos faz pensar em muitas coisas como essas, que não estão no filme, mas na minha cabeça, nesse momento. A música do Chico Buarque, que está no filme, e tem como estribilho “Estou Me Guardando para quando o Carnaval Chegar” fazia alusão á liberdade que o sujeito viveria com o fim da ditadura militar opressora, restritiva de todas as liberdades e que tinha como oposição o Carnaval libertador. Não é o sentido, aqui, o Carnaval, no caso, é uma liberação momentânea de um trabalho que, no fim das contas, embora não pareça, é também opressivo, mas que dura pouco e nada muda. O filme ganhou o prêmio do Júri e da Abraccine (Associação Brasileira dos Críticos de Cinema) no festival É Tudo Verdade 2019. E está sendo exibido na sessão Vitrine, com preço reduzido, em grande número de cidades brasileiras.
A Árvore dos Frutos Selvagens discute o mundo no interior da Turquia
“A Árvore dos Frutos Selvagens” é o novo trabalho do diretor turco Nuri Bilge Ceylan, que prima por imagens de grande elaboração e beleza em seus filmes. Enriquece o seu apuro visual com locações na Anatólia, a região turca de sua origem, que tem paisagens exuberantes. É, portanto, com grande prazer que vemos a natureza magnificamente enquadrada, as expressões humanas se revelando, em meio a um ambiente amplo, mostrado por planos gerais e panorâmicos, mas também por detalhes significativos do contexto cultural abordado. Não fica por aí. Ceylan discute o mundo contemporâneo e a conquista da identidade, a partir do personagem Sinan, um jovem que deixou sua aldeia para estudar em Istambul e encontrar sua paixão por literatura e o desejo de se realizar como escritor. Mas o que significa literatura, a quem ela interessa, que papel exerce hoje num mercado tão distante de suas pretensões? E como ele se vê, no contexto rural de sua origem? Sua ex-namorada, seu pai endividado, os limites da vida na aldeia, que papel tem tudo isso nessa jornada em busca de autoconhecimento e de realização pessoal? Como o islamismo é visto e compreendido pelos jovens? Que polêmicas envolvem a aceitação e a interpretação do Corão no contexto atual? Muitas reflexões filosóficas e debates sobre a contemporaneidade, a vida e os projetos dos jovens, e também dos adultos, fazem parte dos diálogos do filme. Como se vê, é um produto artístico muito encorpado e consistente, em todos os seus aspectos. Nuri Bilge Ceylan é, mesmo, um dos maiores cineastas do cinema atual. Faz filmes de longa duração, como este, que tem 188 minutos, mas que envolve e encanta durante todo esse tempo. Os filmes de Ceylan subvertem a narrativa clássica e exigem do espectador tempo para fruir os eventos e descobrir o que está submerso na ação. Em contrapartida, oferecem uma beleza visual permanente, de embasbacar os olhos. É cinema de altíssimo padrão, já várias vezes reconhecido pelo Festival de Cannes, que em 2008 conferiu ao cineasta o prêmio de Melhor Direção por “Três Macacos”, o Grande Prêmio do Júri em 2011, por “Era Uma Vez na Anatólia”, e a Palma de Ouro em 2014, por “Winter Sleep” (que não teve o título traduzido em seu lançamento nacional). “A Árvore dos Frutos Selvagens” também foi exibido em Cannes – e teve première nacional na 42ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, outro evento que em várias oportunidades premiou o cineasta.











