Milton Gonçalves (1933-2022)

O ator Milton Gonçalves, pioneiro da representatividade na TV e no cinema brasileiros, morreu nesta segunda-feira (30/5), em sua casa no Rio de Janeiro, aos 88 anos, por consequência de problemas de […]

Divulgação/Globo

O ator Milton Gonçalves, pioneiro da representatividade na TV e no cinema brasileiros, morreu nesta segunda-feira (30/5), em sua casa no Rio de Janeiro, aos 88 anos, por consequência de problemas de saúde que vinha enfrentando desde que teve um AVC em 2020, enquanto participava de uma feijoada na quadra da escola de samba Salgueiro.

Com uma carreira vasta, iniciada nos anos 1950, ele chegou na TV pelo teatro, ou melhor pelo teleteatro, integrando várias adaptações de textos dramatúrgicos que preenchiam o “Grande Teatro Tupi”, antes das primeiras novelas.

Mas sempre foi mais ligado ao cinema, estreando na tela grande em “O Grande Momento”, clássico de Roberto Santos lançado em 1958.

O ator fez parte de momentos marcantes do cinema nacional, a partir das participações em “Cidade Ameaçada” (1960), de Roberto Farias, um dos pioneiros do gênero policial brasileiro, e no revolucionário “Cinco Vezes Favela” (1962), que colocou as comunidades cariocas na tela. Nesta antologia de tramas de favela trabalhou com o mestre do Cinema Novo Joaquim Pedro de Andrade.

Sua trajetória praticamente se confunde com história da sétima arte no país, desde chanchadas com Dercy Gonçalves (“Sonhando com Milhões”, em 1963), dramas de cafajestes de Jece Valadão (“Procura-se uma Rosa” e “História de um Crápula”, em 1964 e 65), marcos do Cinema Novo (além de “Cinco Vezes Favela”, a adaptação de “Grande Sertão”, feita em 1965 por Geraldo e Renato Santos Pereira, o politizado “O Bravo Guerreiro”, de Gustavo Dahl, de 1968, e o icônico “Macunaíma”, de Joaquim Pedro de Andrade, em 1969), musicais de pop/rock (“Em Busca do Tesouro”, com Jerry Adriani, em 1967, e “É Simonal”, com Wilson Simonal em 1970), cinema underground (“O Anjo Nasceu”, de Júlio Bressane, em 1969) e até protótipos da pornochanchada (“Toda Donzela Tem Um Pai Que É Uma Fera” e “Os Paqueras”, respectivamente de Roberto e Reginaldo Farias, em 1966 e 1969), além de sucessos populares (“O Homem Nu”, de Roberto Santos) e a consagração como o bandido favorito do emergente gênero policial brasileiro (“Paraíba, Vida e Morte de um Bandido”, “Mineirinho Vivo ou Morto”, “Na Mira do Assassino”, “Máscara da Traição”, “Pedro Diabo Ama Rosa Meia Noite”, “Sete Homens Vivos ou Mortos”, apenas entre 1966 e 1969).

Ele continuou se destacando na tela grande nos anos seguintes, mas após ser contratado pela Globo foi como se só fizesse novelas, tamanha a popularidade alcançada por alguns de seus personagens, como o Zelão das Asas, de “O Bem-Amado” (1973), e o médico Percival, de “Pecado Capital” (1975).

Sua longa experiência cinematográfica também o credenciou a se tornar diretor de novelas, estreando na função em “Irmãos Coragem” (1970), de Janete Clair, primeira produção com cenas intensas de ação da TV brasileira e um dos maiores sucessos da Globo em todos os tempos, além de ter comandando “Selva de Pedra” (1972), “O Bem-Amado” (1973) e “Escrava Isaura” (1976), outros fenômenos de audiência – no caso da última, audiência mundial.

Também participou da série infantil “Vila Sésamo” (1972), como o Professor Leão, ao lado de Sonia Braga e Armando Bógus, e se destacou como ator em mais de 40 novelas e minisséries, incluindo “Roque Santeiro” (1985), “Tenda dos Milagres” (1985), “As Noivas de Copacabana” (1992), “Agosto” (1993), “Chiquinha Gonzaga” (1999), “Sinhá Moça” (2006), primeira novela da Globo indicada ao Emmy Internacional, e “A Favorita” (2008), atualmente sendo reprisada na TV.

Ao mesmo tempo, continuou preenchendo as telas de cinema com performances antológicas, clássico atrás de clássico. Foram mais de 80 longa-metragens!

Se já tinha sido o cara do cinema dos anos 1960, atuando em praticamente todos os gêneros populares no período, seguiu fazendo História com “A Rainha Diaba” (1974), de Antonio Carlos da Fontoura, em que viveu uma drag queen criminosa, foi premiado pela primeira vez no Festival de Gramado pelo papel coadjuvante de “Barra Pesada” (1977), drama criminal dirigido pelo ator Reginaldo Faria, com quem contracenou em “Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia” (1977), de Hector Babenco, que denunciou tortura e chegou a ser proibido pela ditadura. Ainda integrou “Eles Não Usam Black-Tie” (1981), de Leon Hirszman, como um operário engajado no drama grevista que marcou a abertura democrática do país, e ajudou a contar a história de Palmares em “Quilombo” (1984), de Cacá Diegues.

Babenco foi responsável por lançar sua carreira internacional em “O Beijo da Mulher-Aranha” (1985), premiado com o Oscar. Por isso, mesmo sem sair do Brasil, ele foi dirigido pelos americanos Paul Mazursky na comédia “Luar sobre Parador” (1988), Zalman King no erótico “Orquídea Selvagem” (1989), Rick King no thriller de ação “Kickboxer 3: A Arte da Guerra” (1992), e Jeff e Michael Zimbalist na biografia “Pelé: O Nascimento de uma Lenda” (2016), sem esquecer do francês Éric Rochat em “O Quinto Macaco” (1989) – o que lhe permitiu contracenar com astros de Hollywood como Richard Dreyfuss, Mickey Rourke, Vincent D’Onofrio e Ben Kingsley.

Gonçalves também participou de “O Que é Isso, Companheiro?” (1997), drama político de Bruno Barreto indicado ao Oscar de Melhor Filme Internacional, do remake de “O Homem Nu” (1997), de Hugo Carvana, do musical “Orfeu” (1999), uma de suas muitas parcerias com Cacá Diegues, e muitos, muitos outros filmes.

Especialista em produções criminais, ele ganhou um troféu internacional por integrar o elenco de “Carandiru” (2003), de Babenco, no Festival de Cartagena. Mas nem sempre foi bandido. Também foi delegado em “Bufo & Spallanzani” (2001), de Flávio Ramos Tambellini, e até Presidente da República em “Segurança Nacional” (2010), de Roberto Carminati.

Fez de tudo um pouco, até três produções da Xuxa. E trabalhou com os maiores cineastas que viveram no país, incluindo mestres negros, como Antonio Pitanga e Joel Zito Araújo. Vivendo o pai de “Filhas do Vento”, de Araújo, conquistou o Kikito de Melhor Ator do Festival de Gramado em 2004.

Entre seus trabalhos mais recentes estão “Quincas Berro d’Água” (2010), de Sérgio Machado, “O Abismo Prateado” (2011), de Karim Aimouz, “Assalto ao Banco Central” (2011), de Marcos Paulo, “Giovanni Improtta” (2013), de José Wilker, “Carcereiros: O Filme” (2019), de José Eduardo Belmonte, e “Pixinguinha, Um Homem Carinhoso” (2019), de Allan Fiterman e Denise Saraceni.

Seu último longa foi “Hermanoteu na Terra de Godah: O Filme” (2022), adaptação de uma comédia teatral popular, enquanto sua despedida televisiva se deu em dois tempos: no streaming com “Filhas de Eva” (2021) e na TV aberta com “Juntos a Magia Acontece: Especial de Natal” (2019), primeiro especial de Natal com uma família negra da televisão brasileira, que venceu o Leão de Ouro na categoria Entretenimento, no Festival Internacional de Criatividade de Cannes.

Sua morte causou comoção nos colegas de cena.

“O coração está pequeno agora”, escreveu Lázaro Ramos nas redes sociais. “Choro com sua partida. E agradeço imensamente todos os caminhos que o senhor abriu pra nós. Me sinto privilegiado por ter te assistido em cena e testemunhado toda sua inteligência cênica, assim como me sinto honrado por termos nos encontrado tantas vezes no trabalho. Obrigado por ser inspiração e pelo seu pioneirismo. Receba meu mais caloroso aplauso, seu Milton Gonçalves”.

“É uma perda gigante porque Milton representa o que temos de melhor”, disse Taís Araújo em depoimento ao jornal O Globo. “E quando a gente perde alguém por aqui, a gente ganha um ancestral. E ganhar um ancestral significa que ele continua entre nós e que seu legado agora é nosso norte. Fui ‘filha’ de Milton em três novelas e um filme, não poderia ter um mestre melhor. Ele segue sendo minha bússola e jamais deixará de ser um dos faróis de nossa arte com seu talento e por ter aberto tantos caminhos”.

“Quando alguém de tanta importância se despede de nós, sempre me faltam muitas palavras, como agora…”, postou Zezé Motta nas redes sociais. “Milton Gonçalves era dos mais importantes atores que este país já teve. Milton faz parte da história da TV brasileira. Um gênio, elegante, brilhante profissional. Foram muitos sets juntos, muitas histórias, muitas famílias… Nosso último trabalho juntos foi no especial ‘Juntos a Magia Acontece’, que ganhou prêmio em Cannes. Descanse em paz meu querido colega. Obrigada por tanto, você é eterno. Você é referência.”