A segunda edição virtual da Comic-Con começou nesta sexta-feira (23/7) não com um bang, mas com lamentos.
As muitas publicações em piloto automático sobre “painéis imperdíveis” não enterram a mudança de perspectiva trazida pelo tom de epitáfio do evento já tradicional de fãs, iniciado há meio século em San Diego, na Califórnia, para celebrar quadrinhos e que transformou o universo geek em cultura pop. Pois este é o ano em que as maiores produtoras de quadrinhos, Marvel e DC, viraram as costas para o evento, descartado da estratégia promocional de seus grandes lançamentos cinematográficos. E sem os filmes da Marvel e da DC, o que é a Comic-Con?
Ironicamente, o motor da mudança cultural, que alterou o status dos super-heróis de leitura barata de crianças para carros-chefes da indústria do entretenimento, foi ultrapassado pelo crescimento do mercado que ajudou a promover. O negócio de quadrinhos virou multibilionário e já não precisa mais de amadores – no sentido original da palavra: aqueles que se dedicam por amor.
A pandemia fortaleceu o streaming. E nesta nova era, a DC experimentou e lançou sua própria convenção virtual, a DC Fandome, enquanto a Disney transformou uma simples apresentação para investidores do final de 2020 num evento com mais engajamento, celebração e anúncios de projetos que a Comic-Con demonstrou ser capaz de realizar nos últimos anos. Sem ignorar que até a Netflix tem testado sua própria versão de convenção “geek” para promover seu nicho neste multiverso cada vez mais corporativo.
Como se não bastasse, a velha Comic-Con original ainda enfrenta a canibalização de concorrentes que avançam sobre seu legado, desde subsidiárias legítimas à apropriações de seu projeto, que se apresentam como Comic Cons sem hífen para pleitear suposta originalidade. Graças à covid-19, a distância regional que mantinha os frequentadores desses eventos separados se dissolveu no ciberespaço, aumentando a redundância e a diluição da importância de cada um deles. Afinal, quantas vezes alguém é capaz de ver painéis iguais enrolarem para não entregar nenhuma novidade sobre os mesmos projetos?
E neste ponto a Comic-Con implodiu a si mesma. Ao aceitar se vender para a indústria, recebendo dinheiro para exibir novidades, perdeu sua espontaneidade e capacidade de surpreender. Como sair do roteiro sem a autorização de quem está pagando para promover um press release em live-action?
A situação chegou a tal ponto que a indústria já vinha usando a Comic-Con só como uma oportunidade de calendário, aproveitando a atenção da mídia para lançar trailers e promover projetos. Era só o que mantinha a convenção relevante. Até que os trailers “exclusivos” começaram a aparecer simultaneamente nas redes sociais dos estúdios e as notícias ganharam textos oficiais nos e-mails das assessorias de imprensa.
Irrelevante até como fonte de notícias, o que restou da Comic-Con? Nem o Halloween dos super-heróis, em que fãs se vestiam como seus personagens favoritos, que a pandemia suspendeu.
Será que pelo menos isso volta no ano que vem, com a vacinação? Ou a Comic-Con, com a perda progressiva do investimento dos estúdios e relevância cultural, está realmente em seus lamentos finais?