Martin Scorsese está transformando sua crítica sobre como a Marvel reduz o cinema a franquias de parques temáticos numa franquia em si mesma. O novo capítulo dessa guerra infinita foi publicado na segunda-feira (4/11) na forma de um artigo opinativo no jornal The New York Times, que não acrescenta elementos novos na discussão, mas reforça tudo o que diretor já disse.
Enquanto a manchete do ensaio (“Martin Scorsese: Eu disse que os filmes da Marvel não são cinema. Deixe-me explicar”) parece potencialmente conciliatória, o texto do cineasta só oferece desdém à Marvel Studios. Seu alvo principal é a mitologia abrangente dos filmes e sua abordagem formulística.
“Alguns dizem que as filmes de Hitchcock eram todos parecidos, e talvez isso seja verdade – o próprio Hitchcock se questionou sobre isso. Mas a mesmice dos filmes de franquia de hoje é outra coisa diferente. Muitos dos elementos que definem o cinema como eu o conheço estão nos filmes da Marvel. O que não existe é revelação, mistério ou perigo emocional genuíno. Nada está em risco. Os filmes são feitos para satisfazer um conjunto específico de demandas de consumo e projetados como variações em um número finito de temas”.
“Muitos filmes de franquia são feitos por pessoas de considerável talento e arte. Você pode ver isso na tela. O fato de os filmes em si não me interessarem é uma questão de gosto e temperamento pessoal. Sei que, se eu fosse mais jovem, se tivesse amadurecido mais tarde, ficaria empolgado com esses filmes e talvez até quisesse fazer um. Mas eu cresci quando cresci e desenvolvi um senso de cinema – do que é cinema e do que poderia ser – que passa tão longe do universo Marvel quanto nós, na Terra, de Alpha Centauri.”
Vale considerar que, se fosse mais velho, Scorsese também não teria problema em se empolgar com a Marvel, já que teria crescido em meio aos seriados de aventura, que inventaram o termo “cliffhanger” e a falta de perigo emocional genuíno. Seu contemporâneo George Lucas é o primeiro a admitir ter se inspirado nos seriados dos anos 1930 e 1940, em particular “Flash Gordon” (por sinal, também uma adaptação de quadrinhos), para criar “Star Wars”.
E, de fato, é muito interessante que Scorsese reclame da Marvel, mas silencie sobre “Star Wars”, de seu amigo Lucas, ou sobre outras franquias de colegas prestigiados, como “Jurassic Park”, de Steven Spielberg, “Aliens”, de Ridley Scott, “O Senhor dos Anéis”, de Peter Jackson, e “O Exterminador do Futuro”, de James Cameron. Até Francis Ford Coppola, que ecoou seus ataques contra a fábrica de franquias da Marvel, desenvolveu seu próprio universo cinematográfico com três “O Poderoso Chefão”.
Para Scorsese, o problema é amplificado pela natureza interconectada dos filmes da Marvel e o uso de personagens arquetípicos, enredos melodramáticos e riscos supostamente sem consequências, que reduziriam os filmes de super-heróis a algo artisticamente estridente e economicamente perigoso para o futuro do cinema.
“Eles são sequências no nome, mas remakes em espírito, e tudo neles é oficialmente sancionado porque não pode realmente ser de outra maneira. Essa é a natureza das franquias modernas de cinema: pesquisadas no mercado, testadas pelo público, avaliadas, modificadas, reavaliadas e refeitas novamente até estarem prontas para o consumo. Outra maneira de dizer seria que eles são tudo o que os filmes de Paul Thomas Anderson ou Claire Denis ou Spike Lee ou Ari Aster ou Kathryn Bigelow ou Wes Anderson não são. Quando assisto a um filme de qualquer um desses cineastas, sei que vou ver algo absolutamente novo e ser levado a áreas de experiência inesperadas e talvez até inomináveis. Meu senso do que é possível ao contar histórias com imagens e sons em movimento será expandido.”
A visão de Scorsese reflete uma escola de cinema que busca pensar o diretor como autor de obras de identidades claramente definidas. Para ele, os filmes da Marvel são produções de comitê, mais criação de um produtor, no caso Kevin Feige, do que de cineastas e, portanto, seriam todos iguais. Mas é importante lembrar que essa mesma escola de pensamento, desenvolvida entre os anos 1950 e 1960 na revista francesa Cahiers do Cinema, destacava que diretores como Hitchcock, John Ford e outros mestres de Hollywood criaram obras autorais num sistema de estúdio muito mais opressivo que o atual, que os tratava como meros funcionários de projetos encomendados.
Se algum dia assistir aos filmes da Marvel, Scorsese perceberá que deve desculpas a colegas de profissão por usar esse argumento. “Guardiões da Galáxia” de James Gunn, “Thor: Ragnarok”, de Taika Waititi, e “Pantera Negra”, de Ryan Coogler, são tão autorais quanto os títulos de qualquer um dos cineastas citados por ele. Além disso, as produções são muito diversas entre si. O tom de espionagem setentista de “Capitão América: Guerra Civil” não tem nada a ver com o humor escrachado de “Homem-Formiga e a Vespa”. E há, sim, um envolvimento emocional genuíno do público em relação ao destino dos personagens. A morte do Tony Stark, de Robert Downey Jr., em “Vingadores: Ultimato”, gerou comoção tão grande quanto o destino de Jack, de Leonardo DiCaprio, em “Titanic”, filme vencedor de 11 Oscars.
Mas, para Scorsese, a abordagem de franquia dos filmes da Marvel estaria sufocando o cinema “de verdade”.
“Há entretenimento audiovisual mundial e há cinema. Eles ainda se sobrepõem de tempos em tempos, mas isso está se tornando cada vez mais raro. E temo que o domínio financeiro de um esteja sendo usado para marginalizar e até menosprezar a existência do outro. Para quem sonha em fazer filmes ou está apenas começando, a situação neste momento é brutal e inóspita para a arte. E o simples ato de escrever essas palavras me enche de uma tristeza terrível. ”
A frase final revela que o problema, na verdade, pode ser outro. “Pantera Negra”, por exemplo, foi considerado cinema, no sentido mais artístico possível, pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas dos Estados Unidos, tornando-se o primeiro lançamento do gênero indicado ao Oscar de Melhor Filme. Não apenas isso. “Coringa” venceu o Festival de Veneza, reduto tradicional do cinema de arte. E agora Scorsese encara a possibilidade concreta de a adaptação de quadrinhos de Todd Phillips disputar o Oscar 2020 como favorito contra, vejam só, seu novo filme, “O Irlandês”.
Ele desqualifica o gênero “filmes de super-heróis” como um todo, no momento que seus pares valorizam cada vez mais os aspectos artísticos desse mesmo gênero.
Não só isso. A insistência de Scorsese com o assunto Marvel não deixa de ser um estratagema para desviar atenção de seu problema particular com a questão. Afinal, seu novo filme é uma produção da Netflix, que foi boicotada pelos donos das salas de cinemas. Para os exibidores, “O Irlandês” não seria cinema “de verdade”.
Ao polemizar de forma gratuita com o estúdio dos super-heróis, o cineasta busca claramente mudar de assunto e evitar a polêmica que o envolve. A estridência de Scorsese contrasta com que sua turnê de divulgação de “O Irlandês” não aborda de jeito nenhum.
Afinal, “O Irlandês” é cinema ou filme para ver no celular? Netflix é cinema? A Academia deve premiar filmes feitos para streaming? Spielberg já disse que não, que filmes da Netflix, como “O Irlandês”, são telefilmes e deveriam concorrer ao Emmy. Qual a opinião de Scorsese sobre isso? O que ele tem a dizer sobre o tema, contribuindo para uma discussão que pode realmente definir os rumos da arte cinematográfica? Nada. Absolutamente nada.
Ou melhor, diz que tanto faz. “Não importa com quem você faça seu filme, o fato é que as telas na maioria dos multiplex estão repletas de filmes de franquias”. E, de fato, tem sido assim… por toda a História do cinema – ou, pelo menos, desde 1916, quando a sequência do infame “O Nascimento de uma Nação” entrou em cartaz.