Ridicularizado pelo presidente Jair Bolsonaro em uma live da quinta passada (15/8), o edital de chamamento de projetos para TVs públicas que tinha entre as categorias de investimento séries LGBTQ+ foi suspenso. Uma portaria assinada pelo Ministro da Cidadania Osmar Terra publicada no Diário Oficial da União (DOU) nesta quarta (21/8) oficializou a decisão.
“Fomos garimpar na Ancine filmes que estavam prontos para captar recurso no mercado”, disse Bolsonaro na live, passando a citar títulos e temas que considerava absurdos. “Um aqui se chama ‘Transversais”, disse, demonstrando horror ao citar que seu tema era transexualidade. “Conseguimos abortar essa missão aqui”, acrescentou. “Outro filme aqui, ‘Sexo Reverso'”, seguiu, dizendo que o “filme” abordava sexo grupal e oral com índios, concluindo é “um dinheiro jogado fora”. “Não tem cabimento fazer um filme com esse enredo, né?”
Outro nome que ele achou ofensivo foi o do curta-metragem universitário “Afronte”, de Marcus Azevedo e Bruno Victor, um docudrama sobre a realidade vivida por negros e homossexuais do Distrito Federal. “Mais um filme aí que foi para o saco”, decretou, de mentirinha. O filme não só não foi pro saco como passou no Festival Mix Brasil de Cultura da Diversidade e no Festival de Brasília… em 2017! Seu trailer pode ser visto aqui. O que estava na lista vetada por Bolsonaro era um projeto para transformá-lo em série.
Ele também lamentou “Religare Queer”, sobre uma “ex-freira lésbica”, que descreveu como um filme com “dez episódios”, ilustrando de forma didática o que é uma pessoa preconceituosa – aquela que ataca o que não entende.
“Confesso que não entendi por que gastar dinheiro público com um filme desses”, insistiu na famigerada live, sobre a série. “O que vai agregar?”, afirmou, considerando produções com temática LGBTQ+ “impróprias”. “Não estou perseguindo ninguém, cada um faça o que bem entender do seu corpo para ser feliz, agora, gastar dinheiro público para fazer esse tipo de filme [sim, é uma série]…”
Na verdade, os títulos citados, de filmes que Bolsonaro afirmou ter impedido de captar verbas pela Ancine, na verdade eram projetos de séries e foram selecionados por um edital do BRDE (Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul), com participação da Ancine e da EBC (Empresa Brasileira de Comunicação), que previa uma linha declarada de produções de temática LGBTQ+.
Os projetos estavam entre os finalistas da linha de “diversidade de gênero” da EBC, que visa selecionar séries para a programação da TV pública em canais como a TV Brasil. Os vencedores seriam financiados diretamente por meio do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) e não por autorização para captar incentivos. O FSA é formado pela taxa conhecida como Condecine, que incide sobre empresas de cinema, vídeo e telefonia.
O edital foi lançado durante o governo passado com regras claras, que foram cumpridas pelas produções inscritas. Além do tema da “diversidade de gênero”, o edital também contemplou séries nas categorias de “sociedade e meio ambiente”, “profissão”, “animação infantil” e “qualidade de vida”, entre outras.
Como o presidente diz que os projetos já estavam “prontos para captar”, a lista que ele atacou deve conter os vencedores do edital. Ele provavelmente gostaria de barrar apenas a linha de “diversidade de gênero”. Mas isto seria um ato arbitrário, configuraria prática de censura e criaria insegurança jurídica, levando à contestação na Justiça. A judicialização do caso poderia, inclusive, levar à abertura de um processo de Impeachment contra Bolsonaro por descumprir leis e atentar contra direitos de indivíduos.
Assim, ele decidiu suspender o edital inteiro, colocando na prática sua promessa de implantar um “filtro” cultural nos projetos aprovados pelo governo.
Com a suspensão do concurso por no mínimo seis meses, os projetos citados pelo presidente na live não serão os únicos prejudicados. Isso porque o edital ainda previa o financiamento de cerca de outras 70 iniciativas divididas em 12 categorias.
Com verbas de até R$ 1,5 milhão, cada uma das seções teria cinco vencedores, um para cada região do país.
Em entrevista ao jornal Folha de S. Palo, Émerson Maranhão, diretor de “Transversais”, especula que a suspensão temporária tenha sido a maneira que o Ministério da Cidadania encontrou de não pagar os recursos aos vencedores, já que não poderia modificar o edital.
“Éramos quatro realizadores [prejudicados], agora seremos 80”, diz o cineasta.
Ele e o produtor executivo de “Transversais” afirmam ter encaminhado ofícios questionando os pronunciamentos de Bolsonaro ao Ministério da Cidadania e à Agência Nacional de Cinema, a Ancine, que gere o Fundo Setorial de Audiovisual, no dia seguinte à live. Agora que a situação foi consumada, pretendem tomar ações jurídicas em relação à suspensão do edital.
Na portaria publicada no Diário Oficial, o Ministério da Cidadania dá como justificativa para o cancelamento temporário do concurso a necessidade de recomposição dos membros do Comitê Gestor do Fundo Setorial. Uma vez recomposto, ainda de acordo com a portaria, o comitê revisará os critérios e diretrizes para a aplicação dos recursos do fundo, assim como os parâmetros de julgamento dos projetos e seus limites de valor.
Podem até escolher filmes diferentes, o que dá margem para uma judicialização do edital, mas nem assim o comitê poderá alterar edital, publicado e cumprido por candidatos registrados, que prevê a produção de séries sobre “diversidade de gênero”. O entendimento do STF é que motivações como mudança de governo, alteração de estratégia governamental, cortes no seguimento de contratação de pessoal, não são justificativas razoáveis para a revogação de um direito adquirido, muito menos quando se dá em detrimento de toda confiança depositada pelos candidatos em um governo que planejou e deu início ao edital.
Como Bolsonaro, vulgo Johnny Bravo, comanda um governo beligerante, o impasse pode chegar a dois resultados possíveis e complementares. Em 1º lugar, aconteceria a suspensão do edital de forma indefinida. Em 2º lugar, para justificar o não cumprimento de sua obrigação, o governo jamais recomporia o comitê gestor do Fundo Setorial, citado como desculpa para congelar a aplicação do edital.
Nesse cenário, Bolsonaro e seu ministro optariam pela tática da paralisação para não cumprir a lei. E assim não seriam 80 realizadores, como disse Émerson Maranhão, mas milhões de pessoas de toda a indústria audiovisual, pois isso paralisaria o investimento em todo o setor. Não se faria mais séries nem filmes com o dinheiro arrecadado para este fim, abrindo a possibilidade, inclusive, de crime fiscal.
Caso o governo de extrema direita siga seu instinto natural para agir de forma extrema e sem respeito pela legislação, a única resolução possível para o caos seria um processo de Impeachment.