O presidente Jair Bolsonaro confirmou que pode fechar a Ancine (Agência Nacional do Cinema), após transferir o Conselho Superior de Cinema da Secretaria da Cultura para o Ministério Civil.
Bolsonaro assumiu-se insatisfeito com a atual política de fomento ao cinema e pretende fazer alterações profundas. Além da transferência do órgão colegiado para Brasília, para ter mais influência sobre ele, o presidente mencionou a criação de “filtros” para aprovação de projetos, durante uma solenidade sobre o Dia Nacional do Futebol, no Ministério da Cidadania, em Brasília.
“Pretendemos, sim, mexer, [para a Ancine] deixar de ser uma agência e passar a ser uma secretaria subordinada a nós”, disse o presidente, adiantando que sujeitará a pasta a filtro ideológico (eufemismo para censura).
“Vai ter filtro, sim, já que é um órgão federal. Se não puder ter filtro, nós extinguiremos a Ancine. Privatizaremos ou extinguiremos. Não pode é dinheiro público ficar usado para filme pornográfico”, afirmou.
No dia anterior, ele tinha feito uma referência ao filme “Bruna Surfistinha” em termos parecidos. “Eu não posso admitir que com o dinheiro público se faça um filme como ‘Bruna Surfistinha’. Não temos problema com essa opção ou aquela. O ativismo que não podemos permitir, em respeito com as famílias”, disse.
Apesar da citação a “Bruna Surfistinha”, filme premiado e de grande popularidade no país, o problema de Bolsonaro seria com outra produção, segundo apurou a colunista da Folha de S.Paulo Mônica Bergamo. A encrenca é a mesma que levou à demissão de um diretor de marketing do Banco do Brasil após publicidade com transexual. A insatisfação de Bolsonaro viria de projetos aprovados pela Ancine que ele entende como absurdos, como o reality “Born to Fashion”, cuja premissa é revelar modelos trans.
O presidente confunde projetos LGBTQ+ com pornografia. É o que se pode perceber pelo discurso público que proferiu na quinta-feira, ao dizer que não sabia o que era “não-binário”, foi pesquisar, mas não ia comentar “em respeito aos presentes”.
Nesta sexta, Bolsonaro destacou, novamente, que não vai permitir financiamento estatal de “pornografia”. “Não pode dinheiro público ser usado para filmes pornográficos, só isso. Culturais, pô. Temos tantos heróis no Brasil. E a gente não fala dos heróis no Brasil, não toca no assunto. Temos que perpetuar, fazer valer, dar valor a essas pessoas que no passado deram sua vida, se empenharam para que o Brasil fosse independente lá atrás, fosse democrático e sonhasse com um futuro que pertence a todos nós”.
A discussão é igual à travada há 30 anos nos Estados Unidos, quando uma mostra do fotógrafo Robert Mappelthorpe foi cancelada ao ser considerada pornográfica e acontecer numa instituição que recebia financiamento público. Na ocasião, discutiu-se até que ponto a liberdade de expressão, garantida pela constituição americana, poderia ser censurada pelo governo com a desculpa de impedir verbas federais de financiar “pornografia”. Exatamente a mesma polêmica levantada por Bolsonaro.
A maior diferença entre os dois momentos é que o presidente dos Estados Unidos se manteve neutro nesta discussão, levada adiante pelo Congresso, com direito a argumentações dos dois lados. Um projeto com “filtros” para incentivos federais chegou a ser criado, mas artistas entraram com processos milionários e venceram, derrubando as restrições.
Outro detalhe é que, em comemoração aos 30 anos da censura, a mesma exposição considerada “pornográfica” foi finalmente realizada no local que aceitou a pressão pelo cancelamento original, desta vez sem nenhum protesto. Isto é, sem protesto contra, já que o evento foi um ato político contra a censura, inaugurado poucos dias antes do presidente do Brasil optar por “filtrar” os projetos culturais que podem ser feitos neste país.
O contraste entre as posições diz muito sobre a diferença (atraso de 30 anos) entre o que Brasil e Estados Unidos entendem como produção cultural de uma sociedade democrática.
Por impulso (isto é, sem estudar o impacto das medidas), Bolsonaro já extinguiu o Ministério da Cultura, proibiu que as estatais patrocinem eventos culturais, colocando em risco os festivais de cinema e outros eventos do país, e impôs limites mais restritos aos tetos de projetos que podem ser aprovados via Lei de Incentivo à Cultura (antiga Lei Rouanet).
Se extinguir a Ancine, será o apocalipse do cinema brasileiro. Ato que tende a agravar (mais) a crise econômica do país.
Mas se Bolsonaro se importasse com isso, teria usado sua caneta Bic para tirar o setor da paralisação imposta por seu governo. Desde janeiro, aguarda-se a publicação do decreto da Cota de Tela, que estipula um determinado número de dias obrigatórios para que os cinemas exibam filmes brasileiros. O ministro Osmar Terra assinou o decreto há dois meses, mas sua publicação no Diário Oficial da União depende da assinatura presidencial.
Da mesma forma, o Comitê Gestor do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), que decide como alocar os recursos arrecadados, aguarda a escolha de novos nomes. E até uma das quatro cadeiras da diretoria da Ancine está vaga.
Bolsonaro resolveu não resolver nada disso.
Ao contrário, ameaça paralisar de vez o setor, ponderando extinguir a agência criada para ampliar a produção do cinema nacional ou jogar “filtros” nas regras criadas para não favorecer ninguém – como, por exemplo, um filho de presidente – , em franca atitude de intervenção no mercado.
É bom lembrar que as regras de fomento garantem a competitividade natural do mercado ao incluírem a proibição de barreiras temáticas ou julgamento de conteúdos.
Em 201 dias de governo, Bolsonaro ainda não propôs nenhuma medida de incentivo à economia e combate ao desemprego, mas tirou “dinheiro público” de verdade da Educação e outras pastas, paralisou várias atividades do governo e colocou em risco o financiamento bilionário de parceiros estrangeiros contra o desmatamento da Amazônia.
Só não é o pior começo de governo desde a redemocratização por causa do Plano Collor.