Um dos maiores eventos de cinema alternativo de Portugal, o festival IndieLisboa terminou este final de semana sua 15ª edição. Entre curtas e longas-metragens, foram exibidos quase 300 filmes ao longo de 11 dias e em quatro espaços principais. O prêmio principal do júri coube ao filme chinês “The Family”, de Shumin Liu, uma obra com mais de quatro horas de duração que tem sido descrita com uma espécie de versão do clássico de Yasujiro Ozu “Era uma vez em Tóquio”. O brasileiro “Mate-me por Favor”, de Anita Rocha da Silva, também concorria à distinção.
Ao longo de 15 anos, o festival deixou para trás sua origem humilde, de pequenos ciclos de cinemas de autor entre entusiastas, organizados num mítico e bolorento espaço hoje desaparecido da capital portuguesa – o Cine Estúdio 222. Hoje, segundo dados de um dos diretores e programadores, Carlos Ramos, o IndieLisboa reúne anualmente entre 30 e 40 mil espectadores, gozando de um hype único na cidade.
A homenagem principal, na seção Herói Independente, coube ao holandês Paul Verhoeven, de prestígio recentemente “recuperado” pela (ainda) influente revista Cahièrs du Cinema. Já não era sem tempo: Verhoeven, cujo novo filme terá première mundial no Festival de Cannes, beneficiou-se de uma retrospetiva completa onde se puderam visualizar as ousadias temáticas de um cineasta que nunca deixou de ser “indie”, mesmo com grandes sucessos no mainstream. Mas dada a idade avançada (77 anos) e a estreia de “Elle” em Cannes, que inicia em dez dias, ele não pôde comparecer ao evento.
O outro homenageado foi o ator francês Vincent Macaigne, presença assídua na produção alternativa do seu país.
Já entre as obras mais “midiáticas” e fora de competição estiveram filmes como a aventura militante-feminista de Mia Hansen-Love “L’Avenir” (filme de encerramento) e uma comédia de época de um dos darlings indies, Whit Stilman, “Love & Friendship” (sessão de abertura).
O cinema brasileiro teve boa presença: além do filme citado, os lisboetas lotaram a sala para ver “Boi Neon” (exibido fora de competição), mais um ponto para o espantoso currículo do filme de Gabriel Mascaro estreado em Veneza (setembro de 2015). As coproduções também apareceram, seja em bom nível – com o novo filme de Petra Costa (realizado em parceria com Lea Glob), “O Olmo e a Gaivota” – ou nem tanto, como com “Eu Estive em Lisboa e Lembrei de Você”, de José Barahona, filme com vários momentos de amadorismo.
De uma maneira muito geral, as misturas de documentário e ficção (ou “ficção do real”, como chamam alguns por aqui) mostram-se uma das abordagens preferidas do festival – seguindo tendências dos eventos internacionais por onde passaram muitas das obras exibidas – caso de Veneza, Sundance e Berlim (particularmente a seção Fórum). A competição internacional do festival não faz distinção entre ficção e documentário, o que cada vez mais se justifica com a predominância dos docudramas nos últimos anos.
Houve obras de não-ficção mais tradicionais: em “Flotel Europa” o bósnio Vladimir Tomic faz uma reconstituição da dramática crise de refugiados da guerra do seu país, em 1992, através das filmagens em VHS utilizadas pelos seus amigos e familiares quando foram alojados pelos dinamarqueses no navio que dá nome ao filme.
Já em “Kate Plays Christine”, de Robert Greene, que venceu o Prêmio Especial do Júri, é o próprio trabalho de criação que está em questão, mostrando uma atriz preparando-se para viver a trágica figura de uma apresentadora que se suicidou em pleno ar, em 1974. O filme é feliz no retrato do trabalho da construção de uma personagem, mas falha ao dar enorme tempo a pessoas que não fazem a menor ideia de sobre o que estão falando.
A mistura de formatos é mais notória em “O Olmo e a Gaivota”, filme que, curiosamente, recebeu o prêmio de Melhor Documentário no Festival do Rio – quando traz, manifestamente, várias situações e diálogos “inventados” para mostrar os desafios da maternidade da sua protagonista. O fato só demonstra o grande embaralhamento dos formatos. Este retrato agridoce da gravidez ficou na lista final como um dos prediletos do público.
Em outro destaque da tendência, “In the Last Days of the City”, o egípcio Tamer el Said filmou os tempos antes, durante e depois a Primavera Árabe no Cairo, misturando memória coletiva com invenção, na trajetória de um diretor que tenta fazer um filme sobre a sua família.
Por sua vez, o cineasta Roberto Minervini já anda há muito nesta fronteira – desde seu primeiro filme, o belo “Low Tide” (2012). Em “Lousiana – The Other Side” ela volta a um registo semi-documental mostrando o lado negro da América profunda com os seus junkies e chauvinistas políticos do sul. O resultado é intenso.
Os ciganos, uma das minorias étnicas mais excluídas da Europa, surgem também no limite da ficção no drama austríaco “Brüder der Nacht” (os protagonistas são reais) e no registro humorístico “Balada de um Batráquio”, curta-metragem documental de “ação” (os “protagonistas” saem invadindo lojas e quebrando sapos de porcelana, símbolo do preconceito, pelas ruas de Lisboa) que rendeu o Urso de Ouro na categoria na última edição do Festival de Berlim.
O prêmio da crítica, porém, foi para o norte-americano “Short Stay”, do estreante Ted Fendt, que repesca as noções do “mumblecore”, um dos patriarcas destas tendências de mesclagem de gêneros (o primeiro filme é de 2002), com pobreza de recursos total e atores não profissionais
O IndieLisboa também fez um belo apanhado das novas tendências do terror. Há quem associe cinema de terror com execráveis franquias sem qualquer interesse ou qualidade. Mas os não-neófitos bem sabem que muita coisa de valor pode ser feita sob a gigantesca capa do selo “horror”.
Não muito respeitosamente, Anita Rocha foi buscar elementos dos slashers mas, menos obviamente, em filmes de terror onde os signos visuais agressivos (sangue, cadáveres) são espelhos do mundo interior para o seu “Mate-me por Favor” – onde o simbolismo serve para retratar o tumultuado processo de coming-of-age da sua protagonista. Mais sutil é “Evolution”, aliás um filme tão etéreo que beira a evanescência. Aqui a francesa Lucille Hadzihalilovic recupera histórias de crianças sinistras e ilhas semi-desertas para fazer um comentário, justamente, sobre a evolução.
“A Bruxa”, de Robert Eggers, há pouco tempo estreado no Brasil, investe pelo caminho da reconstituição histórica e no mergulho na mentalidade de uma época, com cuidados redobrados no trabalho de décor deste antigo diretor de arte. Deu certo: do burburinho de Sundance, a bruxa segue assombrando salas e festivais ao redor do mundo…
Uma última menção ainda vale para “Sociedade Indiferente” (título que no Brasil se achou mais interessante que “Um Monstruo de Mil Cabezas”), de Rodrigo Plá: somado a outros filmes, fez parte de uma das sessões mais originais e instigantes do IndieLisboa: a Boca do Inferno!
Confira abaixo a lista completa dos filmes premiados
Vencedores do IndieLisboa 2016
Grande Prêmio de Longa Metragem Cidade de Lisboa
Jia/The Family, de Shumin Liu (Austrália, China)
Prêmio Especial do Júri
Kate Plays Christine, de Robert Greene (EUA)
Prêmio do Público de Longa Metragem
Le Nouveau, de Rudi Rosenberg (França)
Grande Prêmio de Curta Metragem
Nueva Vida, de Kiro Russo (Argentina, Bolívia)
Prêmio do Público – Curta Metragem
Small Talk, de Even Hafnor, Lisa Brooke Hansen (Noruega)
Menção Especial de Animação
Velodrool, de Sander Joon (Estônia)
Menção Especial de Documentário
La Impresión de una Guerra, de Camilo Restrepo (Colômbia, França)
Menção Especial de Ficção
Another City, de Lan Pham Ngol (Vietnã)
Melhor Longa Metragem Português
Treblinka, de Sérgio Tréfaut (Portugal)
Melhor Curta Metragem Português
The Hunchback, de Gabriel Abrantes, Ben Rivers (Portugal, França)
Prêmio Novo Talento Fnac – Curta Metragem
Campo de Víboras, de Cristèle Alves Meira (Portugal)
Menção Honrosa
Viktoria, de Mónica Lima (Alemanha, Portugal)
Prêmio FCSH/NOVA para Melhor Filme na secção Novíssimos
Maxamba, de Suzanne Barnard, Sofia Borges (Portugal, EUA)
Prêmio RTP para Longa Metragem na Secção Silvestre
Eva no Duerme, de Pablo Agüero (França)
Prêmio FIPRESCI (Primeiras Obras)
Short Stay, Ted Fendt (EUA)
Prêmio Format Court (Silvestre Curtas)
World of Tomorrow, de Don Hertzfeldt (EUA)
Prêmio Árvore da Vida para Filme Português
Ascensão, de Pedro Peralta, Portugal
Prêmio Árvore da Vida – Menção Honrosa
Jean-Claude, de Jorge Vaz Gomes (Portugal)
Prêmio IndieJúnior
Le Nouveau, Rudi Rosenberg (France)
Prêmio do Público – IndieJúnior
The Short Story of a Fox and a Mouse, de Camille Chaix, Hugo Jean, Juliette Jourdan, Marie Pillier, Kevin Roger (França)
Prêmio Amnistia Internacional
Flotel Europa, de Vladimir Tomic (Dinamarca, Sérvia)
Prêmio Amnistia Internacional – Menção Honrosa
Balada de Um Batráquio, de Leonor Teles (Portugal)
Prêmio Culturgest Universidades
Flotel Europa, de Vladimir Tomic (Dinamarca, Sérvia)
Prêmio Culturgest Escolas
Le Gouffre, de Vincent Le Port (França)
Prêmio IndieMusic Schweppes
Sonita, de Rokhsareh G. Maghami (Alemanha, Suíça, Irã)