“Nise – O Coração da Loucura” mostra que a comédia “Julio Sumiu” (2014) foi apenas um deslize na carreira de Roberto Berliner, que já tinha feito bons trabalhos como documentarista – em filmes como “A Pessoa É para o que Nasce” (2004), “Herbert de Perto” (2009) e “A Farra do Circo” (2014). Em sua segunda ficção, ele opta pelo uso da câmera na mão, característica de documentarista, para imprimir mais verdade à cinebiografia da Dra. Nise da Silveira, a psiquiatra que ousou tratar de pacientes de um hospício da década de 1940 de maneira digna, usando o afeto e a arte como objetos de trabalho.
Falando assim, pode parecer que “Nise” tende ao melodrama piegas, mas a sensibilidade do cineasta e o bom trabalho do elenco em momento nenhum prejudicam os aspectos dramáticos, sem falar que a obra também serve para apresentar, para muitos brasileiros que não conheciam, essa pessoa fantástica que foi Nise da Silveira (1905-1999). Além de estimular a tolerância e a criatividade de seus pacientes, ela levou as artes criadas em suas sessões de terapia ocupacional para museus, e chegou a trocar correspondência com Carl Jung, em um tempo em que a lobotomia e os eletrochoques eram considerados as técnicas mais avançadas e revolucionárias no tratamento dos doentes mentais.
A convivência do elenco e direção com pacientes esquizofrênicos e a conversa com uma das assistentes de Nise foram bastante importantes para a construção da personagem e do enredo. Mas não há como ignorar o destaque individual de Gloria Pires. A atriz que incorpora Nise tem seu melhor desempenho no cinema desde “É Proibido Fumar” (2009), de Anna Muylaert.
Um dos momentos mais intensos do filme, em seu terço inicial, é quando a Dra. Nise se apresenta aos seus clientes (é assim que ela prefere lhes chamar, demonstrando que estava ali para servi-los) e pede para que eles se sentem para conversar. A câmera rodopia ao seu redor, passando uma impressão de perda de controle, ao mesmo tempo em que começa a adaptar o olhar do público àquele caos cotidiano.
O trabalho de direção de arte da equipe de Berliner, ainda que muito discreto, é digno de nota, com uma opção pela predominância da cor marrom impessoal na apresentação do local de trabalho, que aos poucos se torna ensolarado e em um lugar de harmonia para os pacientes, que antes eram tratadas com frieza e crueldade.
Quando exibido no Festival do Rio no ano passado, “Nise – O Coração da Loucura” teve em sua plateia ex-pacientes da verdadeira Nise, que se emocionaram com suas representações na tela. O filme acabou ovacionado e conquistando o prêmio do público do festival.
A história de “Nise” também permite refletir que, apesar de as técnicas cruéis daqueles tempos já serem consideradas ultrapassadas, o tratamento mais humano de pessoas confinadas, sejam elas doentes mentais ou sadias, continua enfrentando resistência e preconceito até hoje, por quem as considera inferiores ou indignas da mínima consideração.
É um ótimo filme, mas mais que isso, “Nise – O Coração da Loucura” faz o espectador sair do cinema com fé restaurada na humanidade.