Netflix investe na Argentina com novos filmes com Ricardo Darín e Juan José Campanella
Plataforma reforça produções argentinas com elencos e direção de destaque após sucesso de "O Eternauta"
A Odisseia dos Tontos envolve com humor politizado de revanche popular
Na América Latina, os planos econômicos que visam a salvar a economia acabam sempre estourando do lado dos mais fracos e que já estariam acostumados a serem ludibriados, como tontos. Aqui no Brasil, o plano Collor foi um exemplo dramático de situações terríveis, provocadas pelo confisco do dinheiro poupado pelo cidadão. Na Argentina, em 2001, houve o corralito, que segurou os dólares, limitando drasticamente o seu uso e transformando-os em pesos, que perdiam valor. Como também aconteceu – e acontece – por aqui, informações privilegiadas de pessoas poderosas e dos bancos favoreceram uns e acabaram com a vida de outros. É nesse contexto de crise econômica que desempregados e subempregados do filme “A Odisseia dos Tontos”, em busca de sobrevivência, conseguem juntar dólares para reformar e reavivar uma cooperativa agrícola, até que o corralito, associado a uma manobra bancária escusa, acabou com a economia deles de vez. Só que eles dizem “Chega!” e prometem fazer de tudo para encontrar o dinheiro que lhes foi roubado, arquitetando uma revanche dos perdedores, os tontos. Se o filme começa bem político, acaba se transformando em uma aventura em forma de comédia. Mas que mantém o espírito crítico e a ironia, associados a uma forte raiva de se sentir, mais uma vez, passado para trás. Tudo acontece numa pequena vila da província de Buenos Aires, onde afinal todo mundo acaba se conhecendo e sabendo de tudo que se passa. Desse modo, as estratégias possíveis são ampliadas e viabilizadas, embora as consequências também o sejam. A trama é muito bem construída, revelando, uma vez mais, que a Argentina tem escritores e roteiristas muito bons para relatar histórias e relacioná-las ao ambiente social, econômico e político do país. O diretor Sebastián Borensztein já tinha realizado o delicioso “Um Conto Chinês”, em 2011, e dirigiu também um episódio de “Relatos Selvagens”, de 2014, enquanto o roteirista Eduardo Sacheri, em cujo livro o filme é baseado, também escreveu “O Segredo dos Seus Olhos”, vencedor do Oscar de Melhor Filme em Língua Estrangeira de 2010. Sucessos de público no Brasil. Aqui, eles trabalham com um elenco magnífico, liderado por Ricardo Darín (que estrelou os três filmes citados), com participação de seu filho, Chico Darín, e que tem Luis Brandoni, Andrés Parra, Verónica Llinás e muitos outros bons atores e atrizes. Isso resulta num filme bem equilibrado, convincente nas atuações e com um bom ritmo, capaz de envolver o espectador na história. “A Odisseia dos Tontos” teve sua première nacional na Mostra de São Paulo e foi escolhido pela Argentina para representar o país na disputa pelo Oscar de filme internacional. A Argentina costuma indicar produtos fortes nessa disputa, desta vez, porém, por melhor que seja o longa, é difícil que obtenha êxito, porque há grandes filmes na competição, inclusive o brasileiro “A Vida Invisível”, de Karim Ainöuz.
A Grande Dama do Cinema é homenagem surpreendente a Crepúsculo dos Deuses
O título em português de “A Grande Dama do Cinema”, que batiza o filme argentino “El Cuento de las Comadrejas”, enfatiza uma das características do novo trabalho de Juan José Campanella: a homenagem ao clássico de Billy Wilder “Crepúsculo dos Deuses” (Sunset Boulevard, 1950). Esse filme seminal de Wilder é sempre lembrado como referência ou reencenado, como é o caso do musical teatral que está em cartaz em São Paulo. “A Grande Dama do Cinema” retoma essa história. Mas não se limita a trazê-la para a Argentina atual com seus personagens – a atriz, o diretor, o roteirista, agora envelhecidos, que perderam o sucesso nos anos 1970, quando vigorava a ditadura militar no país – , como acrescenta inúmeros outros elementos e situações. O marido aparece como ator e em cadeira de rodas, como um novo personagem, o quarto da trama. E, para abordar a questão da diferença geracional, um casal de jovens entra nas relações, trazendo os conceitos capitalistas de lucro máximo e ética mínima, ou nenhuma, ao contexto. Ou seja, o ponto de partida é claro, o de chegada, não. O filme de Campanella surpreende em muitos aspectos. Faz um passeio pelos gêneros cinematográficos, de forma muito competente e segura. Com muito ritmo, passa da comédia ao drama e ao suspense, com um roteiro muito rico e bem engendrado. Os diálogos, que compõem um relacionamento corrosivo, sarcástico e competitivo entre os personagens, são admiráveis, inteligentes, divertidos, tocam nas feridas, provocam e, ao mesmo tempo, esclarecem os fatos. As artimanhas dos personagens fazem jus ao seu passado glorioso, jogos exigem planejamento, ensaios e atuações para enfrentar a situação-problema que vivem no momento. O final “natural” versus o final concebido para virar o jogo é um dos grandes trunfos do filme. Há muitas sequências interessantes para se apreciar. Em uma delas, Mara fala, enquanto um filme, com seu rosto jovem, aparece projetado, os rostos e lábios se superpõem e se descolam, unindo passado e presente. A forma como se constrói a narrativa que resulta em um assassinato e a disputa por um antídoto para um veneno é realizada com perfeição. O cineasta Juan José Campanella já é bem conhecido e faz sucesso no Brasil há um bom tempo. Quem não viu “O Filho da Noiva”, de 2001, “Clube da Lua”, de 2004, e o fabuloso “O Segredo dos Seus Olhos”, de 2009? Ele é um grande talento do cinema contemporâneo de nossos hermanos, com quem rivalizamos tanto no futebol, mas de quem gostamos muito no cinema. No caso deste filme, é importante destacar o incrível trabalho do elenco, brilhante, e de quem Campanella extraiu o melhor. A grande atriz Graciela Borges vive Mara Ordóz, uma antiga diva das telas, que vive de lembranças e objetos de seu sucesso, em que se destaca um “Oscar”, pesado a ponto de ser responsável por uma morte (lembremos que Campanella levou o Oscar de filme estrangeiro por “O Segredo dos Seus Olhos”). A escadaria que notabilizou Gloria Swanson como Norma Desmond, em “Crepúsculo dos Deuses”, é coadjuvante do notável desempenho de Graciela. Mas seus parceiros de cena alcançam também grandes performances: Luis Brandoni, como Pedro, o marido de Mara, Oscar Martinez, como Norberto, o diretor, com quem ela sempre trabalhou. E o roteirista desta história passada de êxito, Martin, é vivido pelo grande Marcos Mundstock. Talvez nem todo mundo saiba que Marcos Mundstock é um multiartista, músico, escritor e comediante, um dos fundadores de um grupo extraordinário de música e humor, chamado Les Luthiers, que encanta as plateias de língua espanhola, por toda a América e Espanha, há 40 anos. Infelizmente, é pouco conhecido no Brasil. Mas seu humor sarcástico, muito característico no Les Luthiers, está magnificamente bem aproveitado em “A Grande Dama do Cinema”. Além deles, o casal de jovens atores, Clara Lago, como Bárbara, e Nicolás Francella, como Fernando, não se intimida diante dos veteranos talentos com quem contracenam, dando conta do recado muito bem.


