Estou Me Guardando para quando o Carnaval Chegar tem dimensão reflexiva surpreendente
“Cinema, Aspirinas e Urubus” (2005), primeiro longa-metragem do diretor pernambucano Marcelo Gomes, está entre as melhores produções brasileiras do século 21. “Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo” (2009), dirigido por Gomes e Karim Ainouz, é um filme experimental brilhante e um dos produtos mais criativos da nossa filmografia recente. O que recomenda vivamente o trabalho do cineasta. Marcelo Gomes fez ainda “Era uma Vez Eu, Verônica” (2012) e “Joaquim” (2017), e codirigiu com Cao Guimarães “O Homem das Multidões” (2013). Uma trajetória bastante sólida e consistente. Seu novo trabalho, “Estou Me Guardando para quando o Carnaval Chegar” tem título quilométrico, que remete a uma música de Chico Buarque. No entanto, é um documentário com uma abordagem simples, clara e direta, que dá conta de uma realidade bem mais complexa do que a sua aparência faria supor e alcança uma dimensão reflexiva surpreendente. Como um filme que se constrói ao caminhar sobre o tema e ao encontrar elementos novos a cada passo, a narrativa se estabelece à medida em que é capaz de ouvir o outro com atenção e, de algum modo, interagir, participar e intervir no seu objeto de estudo. O personagem do documentário é a cidade de Toritama, no Agreste de Pernambuco, que era uma localidade pacata, que Marcelo Gomes conheceu quando criança, acompanhando seu pai em visitas de trabalho. Era, não é mais. Foram justamente a agitação e as mudanças em Toritama, visíveis ao passar pelas estradas locais, que chamaram a atenção dele. Agora Toritama se define como a capital do jeans. 20% de toda a produção de jeans do Brasil vem de lá, cerca de 20 milhões de peças por ano produzidas em fábricas de fundo de quintal, que são chamadas de facções. É surpreendente que uma cidade com 40 mil habitantes tenha uma produção assim tão grande para ostentar. E por que isso acontece? Em síntese, porque tudo que se faz lá, o tempo inteiro, é trabalhar. Cada casa ou conjunto delas vira uma oficina de costura individual ou coletiva. Quase todos parecem preferir trabalhar por sua conta e risco, como e quando quiser, sem carteira assinada na fábrica. Com a certeza de que o que produzirem vai ser comprado. Ou porque já foi combinado ou porque vai ser vendido nas grandes feiras que atraem público de todos os cantos. Como mais peças ou partes de peças costuradas resultam em pequenas quantidades de dinheiro, quanto mais se faz mais se ganha. Conclusão, a maioria dos moradores/produtores da cidade trabalha continuamente desde cedo até tarde da noite. Em casa mesmo, sem horário. Ou melhor, sem horário para viver, só para trabalhar, comer e dormir, com direito a uma hora de TV, provavelmente para ver a novela. Uma espécie de escravidão não só consentida, mas buscada pela população. Que dela não se queixa, com poucas exceções. Acha que está muito bom assim, sente-se livre e dona do seu nariz. Ou melhor, do seu negócio. Muito curioso esse microcosmo do capitalismo que toma de assalto e transforma radicalmente uma pequena localidade, que já não tem espaço nem para criar galinhas ou fazer caminhar os bodes que restaram pela cidade, cruzando a rodovia. Se isso parece estranho e surpreendente, o que dizer da obsessão absoluta de toda a população em, obrigatoriamente, passar o Carnaval na praia? Custe o que custar, ninguém fica, todos saem para tomar banhos de mar, beber, fazer alguma fantasia, batucar e dançar no Carnaval. Se não tiver dinheiro, vende o que tem – fogão, geladeira – ou toma emprestado, para depois pagar ou recomprar o que vendeu. O que não pode é perder o Carnaval. Marcelo Gomes filmou a cidade nos dias de Carnaval e só então reencontrou o silêncio e as ruas vazias do seu tempo de criança. O mundo do trabalho e o do lazer (ou férias) se colocam em oposição. Oposição não é bem a palavra. Talvez espaço e tempo estanques, separados. Trabalho todo o tempo. Parada no Carnaval, fora da cidade, como obrigação incontornável. Trabalho parece ser só dinheiro e o dinheiro vira uma dependência, é só ele que importa. Prazer no período mágico do Carnaval, tratado como obrigação tanto quanto a atividade produtiva. Mas há também prazer no trabalho e nos resultados obtidos. Por que não é possível integrá-los, mesclá-los, equilibrar algumas coisas, diante da obsessão em fabricar cada vez mais e mais e obter o dinheiro desejado? Fico pensando nos mecanismos da Internet – e-mails, WhatsApp, outras redes sociais – nos tomando um tempo absurdo de trabalho não remunerado, quando a tecnologia teria de ter vindo para nos poupar tempo e permitir o ócio criativo. Parece que também nos deixamos escravizar com gosto, ou simplesmente o esquema nos engole. Isso também tem a ver com abdicar da liberdade para seguir um salvador da pátria, um mito qualquer? O ótimo documentário de Marcelo Gomes nos faz pensar em muitas coisas como essas, que não estão no filme, mas na minha cabeça, nesse momento. A música do Chico Buarque, que está no filme, e tem como estribilho “Estou Me Guardando para quando o Carnaval Chegar” fazia alusão á liberdade que o sujeito viveria com o fim da ditadura militar opressora, restritiva de todas as liberdades e que tinha como oposição o Carnaval libertador. Não é o sentido, aqui, o Carnaval, no caso, é uma liberação momentânea de um trabalho que, no fim das contas, embora não pareça, é também opressivo, mas que dura pouco e nada muda. O filme ganhou o prêmio do Júri e da Abraccine (Associação Brasileira dos Críticos de Cinema) no festival É Tudo Verdade 2019. E está sendo exibido na sessão Vitrine, com preço reduzido, em grande número de cidades brasileiras.
Relançamento de Vingadores: Ultimato joga estreias da semana no circuito limitado
O relançamento de “Vingadores: Ultimato” é a estreia mais ampla desta quinta (11/7), um caso nunca visto antes de filme que volta sem nunca ter saído de cartaz e de versão estendida que não estende um segundo sequer da trama. Mas graças a esse caça-níquel e aos blockbusters em exibição, as verdadeiras estreias da semana foram praticamente restritas ao circuito limitado. Entre as novidades, “Atentado ao Hotel Taj Mahal” tem o maior lançamento. Conhecido no resto do mundo como “Hotel Mumbai”, o longa transforma em suspense a reconstituição dramática de um ataque terrorista que aconteceu em 2008 num dos hotéis mais luxuosos da Índia, repleto de estrangeiros. O bom elenco internacional destaca Dev Patel (“Lion”), Armie Hammer (“Me Chame pelo Seu Nome”) e Nazanin Boniadi (“Counterpart”). Elogiado pela crítica americana, tem 76% de aprovação no Rotten Tomatoes. O resto da programação se restringe a três lançamentos europeus e um documentário brasileiro, que é, na verdade, o melhor da lista. “Estou me Guardando para Quando o Carnaval Chegar”, do veterano cineasta pernambucano Marcelo Gomes, retrata a rotina de uma cidadezinha no agreste conhecida por suas confecções de jeans, onde todos são obcecados pelo trabalho. Por vezes, parece uma obra de ficção. Mas seus personagens são reais. Exibido no Festival de Berlim, foi premiado no recente É Tudo Verdade. Outro lançamento premiado, o drama francês “Inocência Roubada”, reflete sobre o trauma do abuso infantil numa mulher adulta. Estreia do casal de diretores Andréa Bescond e o ator Eric Métayer, venceu o César de Melhor Roteiro e Atriz Coadjuvante (Karin Viard). Entretanto, é o outro francês, “Amor à Segunda Vista”, que tende a conquistar mais público. A história do homem que vai parar numa realidade paralela, em que o amor de sua vida nem sabe que ele existe, é uma comédia romântica fantasiosa. O estilo tem dominado produções nacionais recentes, mas o diretor Hugo Gélin (de “Uma Família de Dois”) evita clichês para divertir com criatividade. Por fim, o infantil alemão “A Pequena Travessa” é a última opção. Literalmente. Confira abaixo a lista completa das estreias da semana com suas sinopses e trailers. Atentado ao Hotel Taj Mahal | EUA | Thriller Mumbai, Índia, 2008. Um grupo de terroristas chega à cidade de barco, disposto a promover uma série de ataques em locais icônicos da cidade. Um deles é o luxuoso hotel Taj Mahal, bastante conhecido pela quantidade de estrangeiros e artistas que nele se hospedam. Quando os ataques começam, o humilde funcionário Arjun (Dev Patel) tenta ajudar todos a se protegerem, enquanto David (Armie Hammer) e Zahra (Nazanin Boniadi) buscam algum meio de retornar ao quarto em que estão hospedados, já que nele está seu bebê e Sally (Tilda Cobham-Hervey), sua babá. Amor à Segunda Vista | França | Comédia Do dia para a noite, Raphael (François Civil) acorda em um universo paralelo onde ele nunca conheceu Olivia (Joséphine Japy), o amor da sua vida. Agora ele precisa reconquistar a sua esposa, mesmo sendo um completo estranho para ela. Enquanto Raphael tenta entender exatamente o que aconteceu, ele corre contra o tempo para não perdê-la. Inocência Roubada | França | Drama Aos oito anos, Odette (Andréa Bescond) gostava de pintar e desenhar, como todo criança inocente. Eventualmente, ela também brincava com os adultos, por isso não recusou participar de uma “guerra de cócegas” com um homem mais velho, amigo de seus pais. Anos depois, Odette é uma adulta assombrada pelos traumas da infância, algo que ela vem tentando esquecer através da dança, atividade que ela pratica profissionalmente. A Pequena Travessa | Alemanha | Infantil Lilli Susewind (Malu Leicher) tem a habilidade de falar com animais, mas, fora seus pais, ninguém sabe deste segredo. Quando ela conhece Jess (Aaron Kissiov), um menino divertido e misterioso de sua nova escola, decide contar para ele. Juntos, os dois precisam achar um filhote de elefante que foi roubado do zoológico da cidade. Estou me Guardando para Quando o Carnaval Chegar | Brasil | Documentário Na cidade de Toritama, considerada um centro ativo do capitalismo local, mais de 20 milhões de jeans são produzidas anualmente em fábricas caseiras. Orgulhosos de serem os próprios chefes, os proprietários destas fábricas trabalham sem parar em todas as épocas do ano, exceto o carnaval: quando chega a semana de folga, eles vendem tudo que acumularam e descansam em praias paradisíacas.
Documentário sobre ocupação do Cine Marrocos vence festival É Tudo Verdade
O filme “Cine Marrocos”, de Ricardo Calil, foi o vencedor da competição de longas-metragens brasileiros do festival É Tudo Verdade, o mais importante do gênero documental no país. O anúncio foi feito no domingo (14/4), em São Paulo. O segundo longa do diretor de “Uma Noite em 67” aborda a ocupação do antigo cinema Marrocos, que já foi um dos mais luxuosos do centro de São Paulo, por um grupo de sem-tetos, refugiados e imigrantes. Ótimo jornalista que virou excelente cineasta, Calil convida os atuais moradores do local a reencenar trechos dos filmes que foram exibidos ali, décadas antes. O resultado conquistou notas máximas de várias publicações que cobriram o festival. Já a Abraccine preferiu “Estou Me Guardando para Quando o Carnaval Chegar”, de Marcelo Gomes, que também ganhou menção honrosa do juri oficial. O documentário do veterano cineasta pernambucano retrata a rotina de uma cidadezinha no agreste conhecida por suas confecções de jeans. A competição internacional premiou “O Caso Hammarskjöld”, de Mads Brügger, que acompanha a reabertura das investigações sobre a morte do secretário-geral das Nações Unidas que sofreu um acidente de avião enquanto negociava um cessar-fogo na Zâmbia. O júri ainda concedeu prêmio especial a “Meu Amigo Fela”, do brasileiro Joel Zito Araújo, sobre o ídolo pop nigeriano Fela Kuti, e menção honrosa a “Hungria 2018”, de Eszter Hajdu, que cobre a ascensão da extrema direita ao poder na Hungria. Além destes, também foi premiado “Piazzolla: Anos do Tubarão”, de Daniel Rosenfeld, como Melhor Longa Latino-Americano, por seu retrato de Astor Piazzolla, um dos grandes mestres do tango. Por fim, os melhores curtas foram o brasileiro “Sem Título # 5: A Rotina Terá Seu Enquanto”, de Carlos Adriano, que combina imagens de uma viagem de trem a trechos de um filme de Yasujiro Ozu, e o chileno “Nove Cinco”, de Tomás Arcos, sobre o terremoto que sacudiu o Chile em 1960. Os vencedores do É Tudo Verdade, “Cine Marrocos” e “Sem Título # 5: A Rotina Terá Seu Enquanto” estão automaticamente qualificados para tentar uma vaga no Oscar nas categorias de Melhor Documentário e Melhor Documentário em Curta-metragem, respectivamente. Confira abaixo a lista completa dos filmes premiados. COMPETIÇÃO BRASILEIRA “Cine Marrocos”, de Ricardo Calil (SP) – Melhor Filme “Estou Me Guardando para Quando o Carnaval Chegar”, de Marcelo Gomes (PE) – Prêmio da Crítica (Júri Abraccine), Menção Honrosa do Juri Oficial, Menção Honrosa do Júri ABD-SP (Associação Brasileira de Documentaristas e Curta-Metragistas) “Soldados de Borracha”, de Wolney Oliveira (CE) – Prêmio ABD-SP de Melhor Longa “Sem Título #5: A Rotina Terá seu Enquanto”, de Carlos Adriano (SP) – Melhor Curta e Prêmio Mistika “A Primeira Foto”, de Tiago Pedro (CE) – Prêmio Aquisição Canal Brasil “Planeta Fábrica”, de Julia Zakia (SP) – Prêmio da Crítica (Júri Abraccine) e Menção Honrosa no Prêmio ABD-SP “Vento de Sal”, de Anna Azevedo (RJ) – Prêmio ABD-SP de Melhor Curta COMPETIÇÃO INTERNACIONAL “O Caso Hammarskjöld”, de Mads Brügger (Dinamarca/Noruega/Suécia) – Melhor Longa “Meu Amigo Fela”, de Joel Zito Araújo (Brasil) – Prêmio Especial do Júri “Hungria 2018: Bastidores da Democracia”, de Eszter Hajdú (Hungria) – Menção Honrosa “Nove Cinco”, de Tomás Arcos (Chile) – Melhor Curta “Lily”, de Adrienne Gruben (EUA) – Menção Honrosa COMPETIÇÃO LATINO-AMERICANA “Piazzolla: Os Anos do Tubarão”, de Daniel Rosenfeld (Argentina) – Melhor Longa “Maricarmen”, de Sérgio Morkin (México) – Menção Honrosa
Festival de Berlim 2019 seleciona dois filmes brasileiros
O Festival de Berlim 2019 começou a divulgar a lista dos longas selecionados para sua programação. E nesta terça (18/12), a prestigiosa mostra Panorama revelou a inclusão de dois longas brasileiros: o documentário “Estou me Guardando para Quando o Carnaval Chegar”, de Marcelo Gomes, e a ficção “Greta”, de Amando Praça. O documentário de Marcel Gomes conta a história dos trabalhadores de Toritama, município da Paraíba que se autointitula a capital do jeans, e como eles aproveitam a folga do carnaval uma vez por ano. O diretor já competiu pelo Urso de Ouro em Berlim com o drama histórico “Joaquim” (2017), sobre Tiradentes. “Greta”, por sua vez, acompanha um enfermeiro que leva um de seus pacientes para casa, onde recebe ajuda da vizinha, uma mulher trans. O longa é estrelado por Marco Nanini e marca a estreia na direção de Amando Praça. Ao todo, 22 títulos foram divulgados na mostra Panorama. Entre eles estão “Mid90s”, estreia do ator Jonah Hill na direção de longa-metragem, e “The Souvenir”, estrelado por Tilda Swinton. A edição de 2019 do Festival de Berlim vai acontecer entre os dias 7 e 17 de fevereiro. Confira abaixo a lista dos filmes selecionados para a mostra Panorama. “37 Seconds” (Japão), de Hikari “Dafne” (Itália), de Federico Bondi “The Day After I’m Gone” (Israel), de Nimrod Eldar “A Dog Called Money” (Irlanda, Reino Unido), de Seamus Murphy “Estou me Guardando para Quando o Carnaval Chegar” (Brasil), de Marcelo Gomes “Chained” (Israel, Alemanha), de Yaron Shani “Flatland” (África do Sul, Alemanha, Luxemburgo), de Jenna Bass “Greta” (Brasil), de Armando Praça “Hellhole” (Bélgica, Holanda), de Bas Devos “Jessica Forever” (França), de Caroline Poggi e Jonathan Vinel “Acid” (Rússia), de Alexander Gorchilin “Mid90s” (Estados Unidos), de Jonah Hill “Los Miembros de la Familia” (Argentina), de Mateo Bendesky “Monos” (Colômbia, Argentina, Holanda, Alemanha, Dinamarca, Suécia, Uruguai), de Alejandro Landes “O Beautiful Night” (Alemanha), de Xaver Böhm “Selfie” (França, Itália), de Agostino Ferrente “Shooting the Mafia” (Irlanda, Estados Unidos), de Kim Longinotto “Skin” (Estados Unidos), de Guy Nattiv “The Souvenir” (Reino Unido), de Joanna Hogg “Tremblores” (Guatemala, França, Luxemburgo), de Jayro Bustamante “The Miracle of the Sargasso Sea” (Grécia, Alemanha, Holanda, Suécia), de Syllas Tzoumerkas “What She Said: The Art of Pauline Kael” (Estados Unidos), de Rob Garver



