Pássaros de Verão conta a origem indígena do tráfico colombiano
Assim como em “O Abraço da Serpente” (2015), o novo filme de Ciro Guerra, codirigido por Cristina Gallego, põe o espectador em contato com uma cultura colombiana indígena. No caso deste “Pássaros de Verão”, é a comunidade Wayuú, mostrada por meio de uma aldeia a partir da família wayuunaiki, em cujo idioma o filme é falado, além do espanhol e do inglês. O inglês, por conta dos turistas norte-americanos que aparecem por lá, em busca de maconha. O que se vê, então, é um choque cultural, que põe em guerra a família indígena com o que ficou conhecido como la bonanza marimbera, o lucrativo comércio ilegal da maconha para os Estados Unidos, no decorrer dos anos 1970, que tem a ver com um ciclo que colocou a droga no centro das questões políticas do próprio país. O que seria uma questão local, de pequena dimensão, tornou-se base de uma guerra que alcançou grandes proporções, como mostra a história recente da Colômbia. O filme tem um enfoque diferente para a questão das drogas e dos crimes que a acompanham: a descoberta de um caminho produtivo, relativamente fácil e altamente lucrativo, que poderia ser a redenção econômica daquela comunidade, transformando-se numa guerra familiar muito sangrenta. A ambição e a tradicional defesa da honra e dos hábitos ancestrais da comunidade convivem com o mercado que se conduz por outros padrões, o das economias capitalistas, em que oferta e procura determinam ações, preços, e trazem consequências que escapam inteiramente ao controle da cultura local, acabando por praticamente destruí-la, descaracterizando-a, gerando a cizânia. “Pássaros de Verão” mostra a riqueza cultural tradicional do povo Waiuú, seus rituais religiosos e de acasalamento, suas danças, oferendas, princípios de relacionamento e inserção familiar. As drogas até fazem parte da comunidade, como costuma acontecer com quem está mais próximo das plantas e do uso medicinal delas. Mas se torna mais difícil de compreender e lidar quando o produto assume a condição de mercadoria, reverenciada e consumida com avidez e a preços vantajosos pelos forasteiros. Elas são fontes de riqueza, por um lado, e uma espécie de força do demônio, por outro. O filme é muito bem feito, instigante, original na abordagem, reafirmando os realizadores colombianos como cineastas de peso, o que está sendo reconhecido em festivais importantes, como o de Cannes. Ciro Guerra (com produção da atual codiretora Cristina Gallego) concorreu ao Oscar de filme estrangeiro com “O Abraço da Serpente”. Aquele filme foi também um dos grandes destaques da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e exibido no circuito comercial. “Pássaros de Verão” está seguindo trilha semelhante, incluindo a seleção para buscar uma indicação ao Oscar, e firmando uma filmografia muito interessante, com base na Antropologia, O tema de Guerra é a identificação dos elementos culturais ancestrais, postos em contato com elementos contemporâneos que os modificam e transformam, mas que também podem transformar, de algum modo. Via uma consciência ecológica, por exemplo, que tem muito a aprender com as culturas mais tradicionais. Também é muito relevante seu papel ao registrar os encontros e desencontros culturais de diferentes mundos que coexistem.
Simonal desmistifica história do primeiro astro pop negro do Brasil
Wilson Simonal tem uma história obtusa, com reveses duvidosos e meandros complexos, isso é fato. A música de Simonal, por sua vez, é leveza, sorriso e diversão pura, de um balanço e um swing únicos. O longa “Simonal”, de Leonardo Domingues, tenta mais uma vez resgatar e desmistificar tudo que ronda a história daquele que foi o primeiro grande astro pop negro do Brasil. O resultado final é uma cinebiografia bem acima da média da maioria lançada nos últimos anos em nosso cinema: ritmo coeso, bom recorte temporal, atuações certeiras e uma direção firme fazem do filme uma sessão imperdível. “Simonal – Ninguém Sabe o Duro que Dei” (2009), documentário dirigido por Micael Langer, Calvito Leral e Cláudio Manoel, deu nova luz à história de Wilson Simonal dez anos atrás, quando o artista passou por redescoberta de público e mídia. “Simonal”, o novo longa, busca levar essa redescoberta a um público ainda maior, expandindo esse resgate com uma história cheia de complexidades. Simonal era astro gigante, do tipo que carregava multidões com hits geniais, porém em um jogo perigoso que envolvia ego elevado e gastos exacerbados, o artista entrou em uma espiral negativa, que o fez ter envolvimentos escusos com os militares da época. Em tempos espinhosos de ditadura militar, alimentou-se a história de que o músico era uma espécie de informante dos milicos. Pronto, estava formada a fogueira de Simonal, o “grande dedo duro dos anos 1970”. Até sua morte, em 2000, o músico viveu na obscuridade, tentando repetidamente provar que nunca dedurou ninguém. O longa de estreia de Leonardo Domingues busca reconstruir a ascensão e queda de Simonal em um arco bem definido, que começa com o encontro do músico com Carlos Imperial, passa pelo seu sucesso comercial e esmiúça a derrocada com olhar sincero. Sinceridade é uma palavra-chave em “Simonal”, já que estamos mergulhados em um mar de cinebiografias que são chapas-brancas e buscam mais contar os louros de seus biografados do que realmente uma história com vieses. O roteiro de Victor Atherino não busca pintar um Simonal perfeito e imaculado, que sofreu nas mãos de algozes, pelo contrário, apresenta um personagem extremamente humano, cheio de falhas, defeitos e erros, mas que sabia bem o afronte que era ser um astro negro e rico em um país racista como o Brasil. O personagem ganha vida nas telas por Fabrício Boliveira, que consegue captar o charme e todas as dualidades do artista. Ísis Valverde é sua principal parceria de cena, interpretando a esposa Teresa em atuação segura e convincente, apesar do mar de perucas ruins de sua caracterização (os dois já tinham trabalho juntos em “Faroeste Caboclo”, do mesmo roteirista). Há outros destaques no elenco, como a incrível personificação de Miele por João Velho, ou mesmo Mariana Lima como Laura Figueiredo. Por outro lado, Carlos Imperial, personagem fundamental do universo pop na década de 1960, é interpretado de forma canastrona por Leandro Hassum, que, mesmo ruim, ainda consegue ser menos pior que a vergonhosa interpretação do personagem feita por Bruno de Luca no recente “Minha Fama de Mau” (Lui Farias, 2019). As reconstruções de época dão o clima de ostentação e charme que rodeavam Simonal, com seus looks espalhafatosos; além disso, há charmosas inserções de letreiros e cartazes na tela, incluindo aí joguetes onde o rosto de Simonal aparece meio que confundido com o do ator Fabrício Boliveira, que refez capas e fotos icônicas do músico. Em um dos momentos mais emocionantes do filme, o diretor se vale de material documental e reexibe uma apresentação histórica de Simonal no Maracanãzinho, no Rio de Janeiro, com uma plateia alucinada – ver essas imagens restauradas é de arrepiar! Em tempos de artistas “cancelados”, de discussões sobre erros e perdões, é interessante refletir sobre como Simonal pagou caro demais por um erro que, aparentemente, nunca cometeu. Há uma boa lista de artistas que defenderam ao seu modo a Ditadura Militar ou mesmo que ficaram sobre o muro de forma melindrosa e nem por isso sofreram o backlash que Simonal sofreu. “Simonal”, o filme, coloca como importante pano de fundo uma questão racial que não pode ser ignorada nesse cenário. Em cena simbólica, Simonal conversa com Elis Regina, que diz “eles me perdoaram quando eu cantei o Hino, irão te perdoar agora”, no que ele responde “eles te perdoaram, mas não vão me perdoar e você sabe o porquê”. “Simonal” é filme histórico, de rememoração, mas que fala muito sobre o nosso tempo, que nos diz muito sobre raça, força e arte em 2019, por isso precisa ser visto e debatido o quanto antes.
Bloqueio revela ideologia de extrema direita por trás da greve dos caminhoneiros
Quentin Delaroche já havia dirigido um ótimo filme sobre o cenário político recente do Brasil, “Camocim” (2017), que funcionou como uma espécie de espelho da sociedade brasileira. Em “Bloqueio” (2018), somos reapresentados a um caso que aconteceu no ano passado e que gerou uma forte repercussão, a paralisação nacional dos caminhoneiros. E tem acontecido tanta coisa de 2018 para cá que quase esquecemos este momento em que o Brasil parou. Assinado por Delaroche e por Victória Álvarez, o filme tem uma estrutura bastante simples: os diretores, ao verem que aquela situação poderia ser interessante o suficiente para gerar um filme, dirigiram-se até um dos locais de concentração dos caminhoneiros. Como o documentário é o gênero cinematográfico que mais depende do acaso para seu sucesso, podemos dizer que um dos problemas de “Bloqueiro” está na ausência de personagens marcantes. Mas nem por isso deixa de ser instigante. O filme mostra que o comportamento de boa parte dos grevistas se aproximou do bolsonarismo, como se aquela ação, de modo não deliberado, tivesse ajudado a chocar o ovo da serpente. O documentário enfatiza, em meio à luta dos caminhoneiros por melhores condições de trabalho, o que há de mais controverso em seu discurso: a defesa de uma intervenção militar. E isso acaba se mostrando ridículo quando eles são forçados a encerrar a greve devido à chegada da polícia do exército. O próprio diretor pergunta a um deles, que é maltratado por um dos militares: mas não é a eles que vocês estão pedindo socorro? Depois de discursos nacionalistas e orações de grupos evangélicos, um sopro de sobriedade surge quando dois professores chegam para discutir com o grupo, tratando justamente da questão da intervenção militar como solução para todos os problemas do Brasil, para o fim da corrupção etc. Ordem e progresso, a bandeira do Brasil, o Hino Nacional, todos esses símbolos que acabaram sendo apropriados pela extrema direita, são abraçados pelos grevistas. O que gera um sentimento misto na cena em que eles cantam o Hino Nacional. Que momento esse em que vivemos, hein?
A Última Loucura de Claire Darling reúne Catherine Deneuve e sua filha Chiara Mastroianni
Ver Catherine Deneuve e Chiara Mastroianni, mãe e filha na vida real, e grandes atrizes da telona, atuando juntas no mesmo filme, já é um bom motivo para ir ao cinema. “A Última Loucura de Claire Darling”, porém, tem algo mais a oferecer. A história de Claire, que decide que sua vida chegou ao fim e resolve se desfazer de todos os seus ricos, artísticos e sofisticados pertences, a preços meramente simbólicos, tratada aqui como loucura, pode trazer algumas reflexões interessantes. Sabe-se que com o avanço da idade ocorrem algumas perdas mentais, lapsos de memória, esquecimentos, o presente fugidio, aspectos do passado que se borram, coisas assim. Não se trata de diagnóstico de Alzheimer ou similar. É a perda natural da vida, que o passar do tempo cobra. No entanto, a personagem do filme é uma pessoa lúcida, mais do que isso, inteligente, instruída, de gostos altamente sofisticados. O que ocorre é que essa lucidez acaba sendo parcial. Ou seja, parte dela se perde nesse processo de deterioração natural. O uso inadequado e a percepção do valor do dinheiro é um bom exemplo. Coisas são supervalorizadas e pagas regiamente. Ou bens e valores são esbanjados sem motivo, ou a partir de uma avaliação precária e imediata, ou, ainda, por adesão a uma causa, por exemplo, religiosa, discutível. No caso do filme da diretora Julie Bertuccelli, é a ideia de que se possa conhecer o dia ou o momento da própria morte. Antevê-lo sem estar vivendo nenhuma situação de doença ou dor extremas é, evidentemente, um delírio, que gera comportamentos extravagantes, capazes de trazer de volta à pequena aldeia, onde vive a mãe, uma filha distante, um vínculo complicado. Mãe e filha, belas mulheres, grandes atrizes, que encarnam com brilho esses papéis.
Rafiki mostra amor proibido em país que reprime LGBTQs
Kena (Samantha Mugatsia) e Ziki (Sheila Munyiva) se sentem atraídas uma pela outra e se tornam as “amigas” do título original de “Rafiki”, primeiro e premiado longa da cineasta queniana Wanuri Kahiu. As protagonistas são filhas de dois políticos locais, de uma região de Nairobi, no Quênia, que estão em disputa na eleição municipal com posicionamentos políticos diferentes. Só por isso, já não seria muito adequada essa aproximação. Fica mais complicada a situação, considerando-se que, apesar de o casamento gay entrar nas cogitações políticas, no Quênia a homossexualidade é ilegal e pode ser penalizada com prisão. Além disso, é fortemente rejeitada e hostilizada pela religião. Não há garantia dos direitos dos LGBTs. Tudo isso faz com que o amor entre Kena e Ziki, que se dá de forma quase instantânea – amor à primeira vista? – se torne um drama, impedindo que elas possam experimentar um envolvimento amoroso que escapa dos padrões e expectativas dessa sociedade muito conservadora. “Rafiki” trabalha essas questões com sutileza, numa produção bem cuidada, e escorando-se no admirável talento da jovem atriz Samantha Mugatsia, que conquista desde os primeiros planos do filme. Sua parceira explora mais a aparência e a feminilidade, mas não tem o mesmo carisma. O resultado geral é muito bom. O filme da diretora Wanuri Kahiu merece ser conhecido e apreciado. Não precisa nem dizer que a exibição de “Rafiki”, que tem coprodução da África do Sul e França e foi bem recebida nos festivais internacionais de cinema, teve sua exibição proibida no Quênia, por supostamente promover o lesbianismo. Em pleno século 21, há países e governos que querem impedir que a diversidade humana exista. Mostrá-la se confunde com propagá-la. Temos muito ainda para evoluir, até que o mundo como um todo possa ser um lugar habitável para todos os humanos.
Histórias Assustadoras para Contar no Escuro exibe terror infantil proibido para crianças
Alvin Schwartz escreveu seus contos de horror na mesma época em que o nome de Stephen King tomou conta do mundo. Ambos ajudaram a desenvolver o terror que concentra suas doses de pesadelos em jovens e até mesmo crianças. Cerca de três décadas depois, Guillermo del Toro, o visionário cineasta que ama monstros (vide “O Labirinto do Fauno” e “A Forma da Água”), resolveu levar às telas “Histórias Assustadoras para Contar no Escuro”, a famosa antologia de contos de Schwartz, feita para tirar o sono da garotada – o que ele conseguia com a ajuda das ilustrações diabólicas de Stephen Gammel, praticamente convidando seu público-alvo para uma leitura “proibida”. Del Toro produziu e colaborou com o roteiro, mas a direção é de André Øvredal (de “O Caçador de Troll”) e, talvez, isso faça toda a diferença. “Histórias Assustadoras para Contar no Escuro” não é tão bem-sucedido quanto “It: A Coisa” (um filme que lembramos de imediato) na hora de envolver adultos, jovens e crianças na mesma proporção na plateia. Além dos quarentões em busca de nostalgia, o filme foi pensado para honrar o legado de Schwartz, logo é bem mais impressionante para um público infantil – isto é, mais leve que os terrores viscerais atuais. O problema é que as crianças não podem ir ao cinema devido à classificação para maiores de 14 anos. Ou seja, a tal leitura “proibida”. Elas precisam dar um jeito de ver esse filme na companhia de responsáveis mais velhos ou, sei lá, esperarem até a produção ir para a TV. A trama explora um tema recorrente em Hollywood, que é o poder da leitura para o bem ou para o mal. O que deve ser mais poderoso para as crianças. Há histórias escritas com sangue e ódio que dão vida a terríveis bichos papões, incluindo seus próprios autores. Mas também a fagulha de esperança depositada numa nova geração, capaz de contar as histórias de forma justa e dando nomes aos seus verdadeiros monstros. Imaginem se Guillermo del Toro fosse o diretor desse mesmo material. Até as mensagens críticas nas entrelinhas, sobre racismo, Nixon e a Guerra do Vietnã, teriam um efeito mais forte – o ano em que se passa a trama é 1968 e o clima negativo do período foi inspiração para o clássico “A Noite dos Mortos-Vivos”. É só relembrar o que Del Toro fez em “O Labirinto do Fauno” e “A Espinha do Diabo”, filmes de horror protagonizados por crianças, mas que não foram feitos exatamente para elas, com roteiros onde o ser humano é claramente o monstro mais perigoso e as criaturas que surgem nos pesadelos são consequências e reflexos de seus atos. De positivo, Øvredal acerta na ambientação. “Histórias Assustadoras” tem tensão e as caracterizações dos monstros, inspiradas nas gravuras de Gammel, são sensacionais. Além disso, o elenco de jovens é um achado, especialmente a menina Zoe Margaret Colletti. Pena que o público fica sem saber muito sobre seus personagens, a não ser seus maiores medos (outra semelhança com “It”), para que eles se materializem. Em “Histórias Assustadoras”, os filhos sofrem com os erros dos pais, mas é um contexto quase escanteado porque as partes entre os contos são intercaladas de forma um tanto superficial. A ambição constante em Hollywood de gerar mais uma franquia para o cinema (o finalzinho acelerado para provar que tem gancho para mais filmes é bem safado) impede maior reflexão.
Hobbs & Shaw é veloz, furioso e bobo
Nenhuma franquia atual se reinventou tanto com sucesso no cinema quanto “Velozes e Furiosos”. Eis que chegou a hora de seu primeiro spin-off, “Velozes e Furiosos: Hobbs & Shaw”. A trama explora a tradicional dupla que se odeia, mas precisa unir forças para salvar o mundo de um inimigo em comum. E depois de oito filmes, é possível dizer que os personagens de Dwayne Johnson e Jason Statham são mais divertidos e carismáticos que o já cansado e inexpressivo Vin Diesel. Mas o filme acelera tanto que passa do ponto. “Hobbs & Shaw” resulta veloz, furioso e… bobo. O estilo do diretor (e ex-dublê) David Leitch combina com o clima besteirol,. Não falta pancadaria como em seus outros trabalhos, especialmente “John Wick” e “Atômica”, ou humor como em “Deadpool 2”. Mas o espetáculo de “Hobbs & Shaw” só é bom enquanto dura, como fast-food. Depois que as luzes se acendem, é difícil guardar até mesmo as sequências mais absurdas, que fazem perguntar “Como eles fizeram isso?” David Leitch já foi dublê e os melhores momentos de sua carreira como diretor ainda são as cenas de luta, que valorizam coreografias e atuações físicas. Mesmo em “Hobbs & Shaw”, é possível sentir que os atores suaram a camisa para que as lutas funcionassem. Entretanto, as sequências de perseguição não buscam o mesmo realismo, rendendo-se a um exagero cartunesco e artificial. Ou será que houve uma intenção de aproximar a ação do estilo dos games? Se for o caso, os games atuais estão bem à frente disso. O resultado acaba parecendo mais um desenho animado, não um filme live-action. Cinema de ação não precisa ser tão artificial e descartável. Veja-se a alta velocidade de “Mad Max: Estrada da Fúria”, que criou cenas inesquecíveis, e a audácia de “Missão: Impossível – Efeito Fallout”, inteiramente desenvolvida com efeitos visuais práticos, resultando em um show visceral, que agarra os espectadores pela jugular e o deixa exausto, mas comentando muito ao fim da sessão. Não é o caso de “Hobbs & Shaw”, que mira muito mais nos filmes de super-heróis que em seus colegas de gênero, com uma história que até um supervilão (vivido por Idris Elba) declarando-se o “Superman negro”. História? O roteiro de Chris Morgan e Drew Pearce não serve para nada. Nem mesmo para justificar as participações especiais – há alguns famosos escalados em segredo – , que se revelam 100% gratuitas. É uma historinha rala para dar espaço a um espetáculo visual, barulhento, que investe em aprofundar a visão que Dwayne Johnson vende de si mesmo em todos os seus filmes – que ele é um super-herói invencível. É só notar onde a trama vai parar. Fica claro que Dwayne Johnson e Jason Statham querem representar o tipo de herói machão que fazia sucesso nos anos 1980, mas Stallone levava Rambo a sério, assim como Schwarzenegger como o Exterminador do Futuro. Johnson e Statham assumem que não se importam em passar qualquer credibilidade. Eles são menos críveis que um robô vindo do futuro, tratando tudo como uma grande brincadeira. Depois de 2h17 minutos de falta de seriedade, o público pode não achar tão divertido.
No Coração do Mundo é ponto alto do ótimo cinema feito em Contagem
Se há uma cidadezinha que se tornou presente com bastante frequência no cinema brasileiro contemporâneo é Contagem, localizada próximo a Belo Horizonte. E não à toa. É lá que se localiza produtora Filmes de Plástico, que rendeu obras importantes como “Ela Volta na Quinta” (2015), “Temporada” (2018) e vários curtas de sucesso de crítica, com participação em festivais nacionais e internacionais. Neste ano, a produtora está comemorando uma década de existência. E o filme de comemoração desses 10 anos é um dos melhores da safra da turma de Contagem. “No Coração do Mundo”, da dupla Gabriel Martins e Maurílio Martins, parece um trabalho de cineastas veteranos, tal a segurança narrativa. E não é fácil ter que dar conta de tantos personagens, lhes dar dimensões suficientemente profundas, trabalhando tanto com atores experientes quanto com iniciantes. Mas “No Coração do Mundo” vai além de ser apenas um filme bem-feito. É um trabalho que lida com questões sociais, econômicas e existenciais dos moradores de uma pequena cidade, feito por gente com intimidade na geografia humana do local. Até temos alguns momentos em que o sotaque e o jeito naturalista com que os atores/personagens dialogam soam um pouco difícil para ouvidos não-mineiros, mas aos poucos nos acostumamos. A trama básica gira em torno de um golpe – que até lembra um pouco “Como É Cruel Viver Assim”, de Julia Rezende – , mas o golpe em si não é o mais importante. O filme constrói bases firmes para que nos importemos com personagens, mesmo sabendo que estão fazendo uma burrada atrás da outra. Um personagem como Marcos (Leo Pyrata), por exemplo, é incrivelmente interessante, mesmo sendo questionável do ponto de vista de seu caráter. O filme começa com a comemoração do aniversário de Marcos. Sua noiva, a trocadora de ônibus Ana (Kelly Crifer), o surpreende com uma daquelas declarações de amor constrangedoras com carros de som. Isso já dá o tom do ambiente de periferia, que se explicita ainda mais quando adentramos as casas e os estabelecimentos comerciais daquelas pessoas. Todos os personagens vivem em função de trabalhos que rendem muito pouco para sua subsistência, enquanto outros tentam uma saída através de golpes, como é o caso do já citado Marcos. O grande golpe, no entanto, terá como mentor intelectual Selma (Grace Passô), que, consciente de sua condição de negra, acredita que, para o melhor sucesso de seu plano, será necessária a presença ativa de Ana, a namorada de Marcos, que até então nunca havia participado das tretas dele. As cenas de suspense da tal cena do golpe são de prender a respiração. No mais, como não destacar as cenas da cantora e ativista MC Carol, em suas conversas com Marcos, e a presença de personagens tão carismáticos como Beto (Renato Novaes), Miro (Robert Frank) e Rose (Bárbara Colen)? Não é todo dia que vemos um filme como este. Não é sempre que vemos o cinema brasileiro tão pulsante, surgindo em um momento de tanto desmanche cultural.
Tudo é feio, grotesco e violento em O Bar Luva Dourada
Um dos grandes méritos de “O Bar Luva Dourada”, o novo trabalho do alemão Fatih Akin (“Em Pedaços”), é conseguir contar a história de um psicopata levando o espectador para um universo que muito se assemelha a um inferno na Terra, ao mais fundo que um ser humano pode chegar. Não apenas o drama do assassino alemão Fritz Honka (Jonas Dassler, soterrado em uma camada de próteses para compor a figura disforme do personagem), mas também as figuras que frequentam o tal bar que dá título ao filme. A fotografia do filme, sem muitos filtros embelezadores, ajuda a tornar tudo muito feio. Assim, as mulheres que se prostituem no lugar são senhoras idosas dependentes de álcool que transam por uma ou mais doses. É assim que algumas delas vão parar na casa fétida de Honka. O mau cheiro se deve ao cheiro dos corpos das vítimas em estado de putrefação. Ele, por ser visto como um homem muito feio, é rejeitado por algumas mulheres. Outras não veem isso como um problema. O filme já começa com uma cena em que Honka tenta se desfazer do corpo de uma delas, cortando em pedaços com um serrote. As imagens não são muito gráficas como em “A Casa que Jack Construiu”, de Lars von Trier, ou outros filmes mais explícitos, mas o mal estar é constante devido ao caráter grotesco das cenas e principalmente do próprio personagem, que responde com ainda mais violência sempre que se mostra frustrado sexualmente. Importante lembrar que a única personagem que aparece em um registro de beleza de modelo é uma moça loira que Honka encontra e que passa a povoar os seus sonhos. Diferente do que acontece em um outro filme de serial killer recente, “Ted Bundy – A Irresistível Face do Mal”, de Joe Berlinger, que faz com que o público simpatize com o assassino, o psicopata de “O Bar Luva Dourada” é totalmente despido de glamour. É ridicularizado em sua busca por mulheres que não consegue ter, no seu físico corcunda e em seu estrabismo, nas suas tentativas de ter uma ereção com fotos de mulheres nuas estampadas na parede de sua casa para penetrar, em vão, suas clientes/vítimas, e no modo violento com que trata em especial uma das mulheres que chega em sua casa para trabalhar para ele. Ainda assim, há um olhar humano do diretor para o próprio Honka e principalmente para os outros personagens, todos eles solitários, desvalidos, alcoólatras, esquecidos pelo resto da humanidade. O Bar Luva Dourada parece uma espécie de oposto ao que se chama de oásis. Mesmo quando o filme muda de tom e Honka arranja um emprego de vigilante, as novas pessoas que se apresentam também são almas muito tristes, embora a ambientação mude positivamente, com uma luz mais clara no ambiente de trabalho. Fatih Akin havia filmado algumas cenas do passado de Honka, de modo a mostrar os abusos que ele sofreu na infância, mas depois resolveu retirar essas cenas da edição final por achar que isso soava como uma desculpa para uma pessoa se tornar um assassino serial. Assim, o filme não tem essa preocupação em contar uma história do personagem nos moldes tradicionais, mas apenas de um determinado recorte no tempo. Por mais que saiamos do cinema sem saber direito se gostamos ou não do filme, o importante é que suas imagens não sairão com muita facilidade da nossa memória.
Remake de O Rei Leão é tão realista que se torna sério demais
A obsessão da Disney em realizar remakes live-actions de suas animações chega ao maior clássico do estúdio nos últimos 25 anos, “O Rei Leão”. A escolha de Jon Favreau para dirigir o longa é óbvia, afinal ele fez um milagre com “Mogli, O Menino Lobo”. Não somente elevando a qualidade dos efeitos visuais com um realismo impressionante na renderização de seus animais, mas por atualizar o desenho de meio século sem se render à nostalgia. Os efeitos estão ainda melhores em “O Rei Leão”. Entretanto, o original ainda é relativamente atual e perfeito em sua forma original. Isto rendeu um remake mais reverente que “Mogli”, praticamente seguindo o roteiro do filme de 1994, numa recriação das cenas quadro a quadro. Sem nada para acrescentar à história, restou a Favreau concentrar toda sua energia na tecnologia. Ele é bom no que faz, tanto que a diferença entre “Mogli” e “O Rei Leão” é vista em cada frame. O nível alcançado pelo fotorrealismo faz cair o queixo com locações que parecem existir de verdade, embora inspiradas na animação clássica. Mas é tudo – menos uma cena – computação gráfica. Isso quer dizer que “O Rei Leão” atingiu o topo e, agora, o desafio é superar a qualidade de seus efeitos. Por outro lado, como os animais são realistas demais, essa versão se torna mais séria, o que prejudica um pouco o resultado. Nem é o caso de observar que os animais não apresentam expressões humanas como no desenho. Não é que falta alma, porque animais têm suas expressões e elas estão lá. O problema é outro. Em “Babe”, por exemplo, os animais falam, porém ninguém esperneou. Em “O Rei Leão”, eles ainda cantam. A diferença é que “Babe” era apresentado como uma fábula. “O Rei Leão” não. É para ser “real”. E aí entra um equívoco de premissa, porque animais não falam e, muito menos, cantam. Favreau foi ao limite de limar as coreografias do desenho, que não combinariam com o objetivo de tornar seu filme o mais realista possível. Então, não há elefantes e avestruzes em cima uns dos outros, para que Simba possa cantar lá no alto. Os bichinhos apenas andam e… cantam. As diferenças entre as histórias são mínimas. Ambas têm como base a jornada do herói, além de “Hamlet”, de William Shakespeare, e o evidente “Kimba, o Leão Branco”, de Osamu Tezuka. A versão CGI inclui leoas mais valentes e alguns detalhes escatológicos que não constam do original, mas a verdade é que só agrada porque o filme de 1994 tem uma uma história extraordinária. “O Rei Leão” clássico tornou-se uma influência tão grande que seu impacto pode ser traçado até “Pantera Negra”. Já a versão de Jon Favreu não deixará qualquer outro legado que não seja a evolução dos efeitos digitais. Não é pouca coisa. Mas também não é muita coisa.
Homem-Aranha se divide entre adolescência e heroísmo no divertido Longe de Casa
Uma bela surpresa este “Homem-Aranha: Longe de Casa”, segundo filme solo do Aranha com o jovem e talentoso Tom Holland. A produção não deixa dúvida que a versão adolescente do herói é mais atraente para o público mais jovem, que pode se identificar bem mais com seus problemas e com suas preocupações do que com as de um adulto milionário e cínico como Tony Stark. Desta vez, a principal preocupação do herói é conseguir se aproximar da garota por quem está apaixonado, a MJ (Zendaya). Aliás, a escalação de Zendaya como interesse amoroso é novidade em relação aos quadrinhos. Embora o nome da personagem seja Michelle, que não existe nos gibis da Marvel, ela passou a ser chamada de MJ no novo filme, como a ruiva Mary Jane que conquista o coração de Peter Parker e foi personificada por Kirsten Dunst nos três filmes de Sam Raimi. Aliás, há várias liberdades artísticas no filme em comparação com as HQs, mais do que na maioria das produções do Universo Cinematográfico Marvel. Mas não deixa de ser interessante, por exemplo, ver uma Tia May tão jovem como a interpretada por Marisa Tomei. Também é muito interessante a maneira como é introduzido Mysterio, que nas publicações da Marvel é um vilão de terceira categoria. O filme dá maior importância ao personagem, que não é apresentado exatamente como um vilão. E sua participação ajuda a tornar o filme muito maior do que o trailer dá a entender. Assim, todos aqueles monstros meio genéricos apresentados nas prévias acabam ganhando algum sentido. Mas o melhor do filme é mesmo como ele dá mais destaque a Peter Parker do que ao Homem-Aranha. É muito divertido vê-lo em um passeio com os colegas da escola por cidades da Europa. O melhor amigo dele, Ned (Jacob Batalon), é muito engraçado. Trata-se da influência da versão Ultimate, em que Miles Morales tem um amigo asiático gordinho (Ganke Lee). Isso faz bem ao filme. Assim como a bem-vinda presença da jovem Angourie Rice no papel de Betty Brant, que virou colega de Peter na escola. A questão “com grandes poderes, vem grandes responsabilidades” é introduzida de maneira gradual e de uma forma que reflete a origem do personagem, com Peter relutando, a princípio, largar sua vida normal de adolescente para vestir a roupa de super-herói numa nova missão de Nick Fury (Samuel L. Jackson). Além de ser um filme muito bem-humorado, que consegue superar a sombra da morte de Tony Stark em “Vingadores: Ultimate”, “Homem-Aranha: Longe de Casa” é melhor em diversos aspectos em relação ao anterior, “De Volta ao Lar”, mesmo sem ter cenas tão memoráveis quanto as ameaças do vilão Abutre (Michael Keaton) ao herói. Aqui temos Jake Gyllenhaal como o Mysterio e é bom não dizer mais do que isso para não estragar as surpresas, apenas ressaltar que o ator se sai muito bem. As cenas de ação são ok, sem muitas novidades. Mas há que se dizer que a cena pós-créditos deste filme é a mais importante de todas do Universo Cinematográfico Marvel, no sentido de não poder ser descartada do produto final.
Um Homem Fiel segue a tradição da nouvelle vague
“Um Homem Fiel”, de Louis Garrel (“Dois Amigos”), se inspira na tradição da nouvelle vague, lidando com um quarteto amoroso, formado por Abel (o próprio Garrel), Marianne (Laetitia Casta, mulher do ator), Paul (Joseph Engel) e Eve (Lily-Rose Depp, a filha de Johnny Depp). Envolve separações, perda da mulher para o amigo, retorno no tempo, expectativas amorosas que vêm desde a meninice, suas alternativas, possibilidades e impedimentos. Nada de tão novo, exceto o foco na fidelidade masculina, mas o filme flui bem, envolve e trata de gente real. As relações amorosas, sob os mais diversos ângulos, sempre foram o forte do cinema francês. O filme foi escrito pelo diretor e ator Louis Garrel, Florence Seyvos (“Camille Outra Vez”) e ninguém menos do que Jean-Claude Carrière (“A Bela da Tarde”, “A Piscina”, “A Insustentável Leveza do Ser”), um dos maiores roteiristas da história do cinema francês. E isso faz toda a diferença. O filme dá seu recado sem enrolar nem perder tempo, em apenas 75 minutos, bem aproveitados.
Estou Me Guardando para quando o Carnaval Chegar tem dimensão reflexiva surpreendente
“Cinema, Aspirinas e Urubus” (2005), primeiro longa-metragem do diretor pernambucano Marcelo Gomes, está entre as melhores produções brasileiras do século 21. “Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo” (2009), dirigido por Gomes e Karim Ainouz, é um filme experimental brilhante e um dos produtos mais criativos da nossa filmografia recente. O que recomenda vivamente o trabalho do cineasta. Marcelo Gomes fez ainda “Era uma Vez Eu, Verônica” (2012) e “Joaquim” (2017), e codirigiu com Cao Guimarães “O Homem das Multidões” (2013). Uma trajetória bastante sólida e consistente. Seu novo trabalho, “Estou Me Guardando para quando o Carnaval Chegar” tem título quilométrico, que remete a uma música de Chico Buarque. No entanto, é um documentário com uma abordagem simples, clara e direta, que dá conta de uma realidade bem mais complexa do que a sua aparência faria supor e alcança uma dimensão reflexiva surpreendente. Como um filme que se constrói ao caminhar sobre o tema e ao encontrar elementos novos a cada passo, a narrativa se estabelece à medida em que é capaz de ouvir o outro com atenção e, de algum modo, interagir, participar e intervir no seu objeto de estudo. O personagem do documentário é a cidade de Toritama, no Agreste de Pernambuco, que era uma localidade pacata, que Marcelo Gomes conheceu quando criança, acompanhando seu pai em visitas de trabalho. Era, não é mais. Foram justamente a agitação e as mudanças em Toritama, visíveis ao passar pelas estradas locais, que chamaram a atenção dele. Agora Toritama se define como a capital do jeans. 20% de toda a produção de jeans do Brasil vem de lá, cerca de 20 milhões de peças por ano produzidas em fábricas de fundo de quintal, que são chamadas de facções. É surpreendente que uma cidade com 40 mil habitantes tenha uma produção assim tão grande para ostentar. E por que isso acontece? Em síntese, porque tudo que se faz lá, o tempo inteiro, é trabalhar. Cada casa ou conjunto delas vira uma oficina de costura individual ou coletiva. Quase todos parecem preferir trabalhar por sua conta e risco, como e quando quiser, sem carteira assinada na fábrica. Com a certeza de que o que produzirem vai ser comprado. Ou porque já foi combinado ou porque vai ser vendido nas grandes feiras que atraem público de todos os cantos. Como mais peças ou partes de peças costuradas resultam em pequenas quantidades de dinheiro, quanto mais se faz mais se ganha. Conclusão, a maioria dos moradores/produtores da cidade trabalha continuamente desde cedo até tarde da noite. Em casa mesmo, sem horário. Ou melhor, sem horário para viver, só para trabalhar, comer e dormir, com direito a uma hora de TV, provavelmente para ver a novela. Uma espécie de escravidão não só consentida, mas buscada pela população. Que dela não se queixa, com poucas exceções. Acha que está muito bom assim, sente-se livre e dona do seu nariz. Ou melhor, do seu negócio. Muito curioso esse microcosmo do capitalismo que toma de assalto e transforma radicalmente uma pequena localidade, que já não tem espaço nem para criar galinhas ou fazer caminhar os bodes que restaram pela cidade, cruzando a rodovia. Se isso parece estranho e surpreendente, o que dizer da obsessão absoluta de toda a população em, obrigatoriamente, passar o Carnaval na praia? Custe o que custar, ninguém fica, todos saem para tomar banhos de mar, beber, fazer alguma fantasia, batucar e dançar no Carnaval. Se não tiver dinheiro, vende o que tem – fogão, geladeira – ou toma emprestado, para depois pagar ou recomprar o que vendeu. O que não pode é perder o Carnaval. Marcelo Gomes filmou a cidade nos dias de Carnaval e só então reencontrou o silêncio e as ruas vazias do seu tempo de criança. O mundo do trabalho e o do lazer (ou férias) se colocam em oposição. Oposição não é bem a palavra. Talvez espaço e tempo estanques, separados. Trabalho todo o tempo. Parada no Carnaval, fora da cidade, como obrigação incontornável. Trabalho parece ser só dinheiro e o dinheiro vira uma dependência, é só ele que importa. Prazer no período mágico do Carnaval, tratado como obrigação tanto quanto a atividade produtiva. Mas há também prazer no trabalho e nos resultados obtidos. Por que não é possível integrá-los, mesclá-los, equilibrar algumas coisas, diante da obsessão em fabricar cada vez mais e mais e obter o dinheiro desejado? Fico pensando nos mecanismos da Internet – e-mails, WhatsApp, outras redes sociais – nos tomando um tempo absurdo de trabalho não remunerado, quando a tecnologia teria de ter vindo para nos poupar tempo e permitir o ócio criativo. Parece que também nos deixamos escravizar com gosto, ou simplesmente o esquema nos engole. Isso também tem a ver com abdicar da liberdade para seguir um salvador da pátria, um mito qualquer? O ótimo documentário de Marcelo Gomes nos faz pensar em muitas coisas como essas, que não estão no filme, mas na minha cabeça, nesse momento. A música do Chico Buarque, que está no filme, e tem como estribilho “Estou Me Guardando para quando o Carnaval Chegar” fazia alusão á liberdade que o sujeito viveria com o fim da ditadura militar opressora, restritiva de todas as liberdades e que tinha como oposição o Carnaval libertador. Não é o sentido, aqui, o Carnaval, no caso, é uma liberação momentânea de um trabalho que, no fim das contas, embora não pareça, é também opressivo, mas que dura pouco e nada muda. O filme ganhou o prêmio do Júri e da Abraccine (Associação Brasileira dos Críticos de Cinema) no festival É Tudo Verdade 2019. E está sendo exibido na sessão Vitrine, com preço reduzido, em grande número de cidades brasileiras.












