Wajib usa tradição de casamento para discutir a vida na Palestina
O filme se passa na Palestina, mas o hábito de entregar convites de casamento pessoalmente, envolvendo uma rápida visita a cada convidado, é algo que também foi, e é, bastante praticado no Brasil. Especialmente nas cidades menores. “Wajib” fala desse dever social (que é o que a palavra wajib significa) que tem de ser praticado pelos homens da família, geralmente pai e filho. Diante do casamento da jovem Amal (Maria Zreik), seu pai Abu (Mohammad Bakri), que sempre viveu em Nazaré e tem concepções tradicionais do mundo, e seu irmão Shadi (Saleh Bakri), arquiteto, que mora na Itália, assumem essa tarefa. Enquanto Abu desenvolveu uma espécie de resignação diante de condições de vida que impõem humilhações aos palestinos, por parte do Estado israelense, Shadi, que teve de sair de lá por razões “políticas”, adaptou-se à vida da Itália, mais livre e moderna. Isso é representado em “Wajib” a partir da sua aparência, usando uma calça vermelha, camisa rosa estampada sob um paletó escuro e cabelo amarrado numa espécie de rabo de cavalo. Dito assim, pode parecer ridículo, mas não é. Ele está bem vestido. Só que de uma forma que incomoda conservadores. Há, no entanto, muitas coisas comuns entre pai e filho, sobretudo sentimentos pouco ou nada explicitados. De qualquer modo, essa tarefa, que perpassa todo o filme, não teria como ser harmoniosa, sem conflitos. A diretora palestina Annemarie Jacir (“Quando Vi Você”) enfatiza as sutilezas, tanto das convergências, quanto das diferenças entre eles. E o ambiente conflitivo que os envolve. Mais do que centrar-se nas individualidades dos dois personagens principais, o que se apreende é um clima social opressor, que os divide. A busca de reações independentes e libertárias por parte de Shadi, no entanto, só é possível pelo afastamento do seu contexto cultural de origem. A Itália aparece como um lugar onde se respira liberdade e cultiva-se a beleza, em contraste com o belo ambiente nazareno, porque milenar, mas descuidado e sujeito à destruição, permanentemente. A mulher tem ainda papel secundário, mas envolvendo elementos decisivos para entender como se vive sob amarras moralistas. A mãe, que saiu de lá e construiu uma nova relação no exterior, ameaça não vir ao casamento da filha e isso é fonte de sofrimento para Amal e vergonha para a família. Shadi vive com uma moça em Roma, mas isso é escondido, já que ele não é casado. O que se apresenta é, portanto, uma aparência, uma falsidade. Assim como a ideia, professada por Abu, de que lá é que se vive bem e pode-se ser feliz. Será? É a pergunta que está sempre presente, em cada cena, em cada expressão, em cada visita para entregar convites de casamento. Sobre o próprio casamento de Amal, o que ele realmente significa? “Wajib” tem consistência, profundidade e personagens bem construídos e representados por Mohammad Bakri e Saleh Bakri, pai e filho também na vida real, que sustentam o filme todo o tempo. Muito bem dirigidos por uma cineasta talentosa, sem dúvida.
Como Treinar seu Dragão 3 encerra trilogia de forma emocionante
A trilogia sobre a improvável amizade entre o garoto viking e seu dragão chega ao fim como uma das mais bem equilibradas do cinema. “Como Treinar seu Dragão 3” é tão bom quanto a parte 2, que por sua vez era tão boa quanto o primeiro filme. A Dreamworks atinge um feito raro na animação, construindo uma pequena saga que evolui surpreendendo, ao mesmo tempo em que mantém a identidade original. No novo e último filme da franquia, Soluço é o líder de seu povo vivendo o sonho de uma comunidade pacífica entre humanos e dragões. Mas a chegada de um caçador dessas criaturas vai não apenas colocar os animais em risco, como também todo o modo de vida de sua tribo. A premissa parece mais do mesmo, mas o roteiro a aproveita apenas como ponto de partida para desenvolver melhor seus personagens e suas situações. E talvez este seja o grande diferencial dos longas “Como Treinar seu Dragão”: são sempre sobre relações. Se o primeiro filme lidava com o preconceito e a necessidade de se juntar e compreender o outro para juntos irem além, o segundo tratava de encontros, desencontros e perdas, obrigando tanto Soluço quanto seu dragão Banguela a amadurecerem de forma forçada, assumindo suas respectivas lideranças. Isto feito, para onde a história poderia ir? Em direção ao mais difícil aprendizado: o de abrir mão, compreender que as coisas muitas vezes podem não ser como quereremos e que está tudo bem assim. A trilogia “Como Treinar seu Dragão” revela ser, ao final, um conto sobre crescimento, refletido num garoto e em seu Fúria da Noite. Soluço e Banguela estão ligados não apenas pela mútua relação necessária para voarem, mas também pelo aprendizado conjunto na construção de uma das amizades mais emocionantes já forjadas na tela grande. E o terceiro filme traz todos os elementos que fizeram esta franquia tão especial: personagens cativantes, momentos sublimes de beleza plástica e emocional, sequências de ação muito bem executadas e dilemas pessoais com os quais todos temos que lidar. A série de livros de Cressida Cowell ganhou no cinema uma adaptação vibrante e afetuosa que vai deixar saudades. E algumas lágrimas também.
Homem-Aranha no Aranhaverso revoluciona animações e filmes de super-heróis
“Homem-Aranha no Aranhaverso” é uma explosão de criatividade em todos os quesitos para quem achava que filme de super-herói já esgotou uma fórmula que dizem existir por aí. E também é, sim, o melhor filme solo do herói em 15 anos – desde que Sam Raimi entregou “Homem-Aranha 2”. Trata-se de uma animação. Mas fora das características visuais que Pixar, Disney e DreamWorks padronizaram e acostumaram o mundo inteiro. Mistura com maestria animação tradicional, digital, 3D e o escambau. Mais que isso: traduz a linguagem dos quadrinhos para a tela de maneira revolucionária, visceral, porém orgânica, sem jamais distrair o espectador da história com a beleza de suas imagens. É o tradicional filme de origem virado do avesso. Como diz o título, “Homem-Aranha no Aranhaverso” tem um roteiro loucão que aposta na abertura de infinitas possibilidades, com dimensões e realidades paralelas colidindo para gerar a reunião improvável de diferentes versões do Amigo da Vizinhança. Para embarcar nessa viagem, que fica cada vez mais brisada, graças principalmente às cabeças piradas dos roteiristas Phil Lord e Chris Miller (“Uma Aventura Lego”), o filme confia em duas certezas básicas: todo mundo ama o Homem-Aranha e qualquer um pode usar uma máscara de herói. Não importa cor da pele, classe social, nacionalidade, forma física, idade, gênero ou orientação sexual, o Homem-Aranha do novo século abraça diversidade e representatividade, que sempre estiveram enraizadas no conceito de Stan Lee sobre seus super-heróis: ser diferente é normal e legal demais. O velho Peter Parker de sempre faz parte da história. Velho mesmo, barrigudo, com a barba por fazer, mas de outra dimensão, porque a trama se passa na realidade de Miles Morales (o antigo universo Ultimate da Marvel), completamente diferente daquele que os fãs estão acostumados – para se ter ideia o Peter Parker da dimensão de Miles é loiro e o Dr. Octopus é uma mulher. Mas tem mais. Gwen Stacy de outra dimensão, que ganha poderes de Aranha em vez de Peter, o Aranha Noir, uma garota aranha de visual anime e até um porco aranha antropomórfico. Hilário. E todos vindos de épocas diferentes dos quadrinhos do herói. A animação da Sony é uma homenagem sem precedentes ao personagem da Marvel em diversas mídias, eras e segmentos, e faz desde reverências a Stan Lee e Steve Ditko, os criadores do herói, até piadinhas sobre o merchandising. É dirigido por Bob Persichetti, Peter Ramsey e Rodney Rothman, mas é importante ressaltar a força criativa de Phil Lord e Chris Miller, jovens talentos que iniciaram a carreira com um desenho animado absolutamente maluco, “Tá Chovendo Hamburguer”, transformaram “Uma Aventura Lego” em franquia e recentemente foram demitidos de “Han Solo: Uma História Star Wars”, porque foram ousadinhos demais. Azar da Disney, pois “Han Solo” fracassou com a direção burocrática de Ron Howard, enquanto “Homem-Aranha no Aranhaverso” atingiu uma galáxia de elogios. E o impacto dessa animação no cenário pop é merecidamente tão forte que a Sony não somente abriu portas para uma nova franquia com inegável apelo popular, como também colocou pressão para cima da concorrência (Pixar, DreamWorks) e dos próprios filmes do Homem-Aranha com Tom Holland.
Juliet, Nua e Crua esconde sátira pop sob verniz de comédia romântica
Sexto romance lançado pelo britânico Nick Hornby, “Juliet, Naked” (2009) foi um respiro de alivio após o pouco inspirado “Slam” (2008) – já adaptado ao cinema. O filme que virou “Juliet, Nua e Crua” parece expurgar, com delicadeza, a egolatria pop que jorrava em litros dos personagens de “Alta Fidelidade” (1995), obra mais famosa do escritor. É quase uma tiração de sarro que, no entanto, ganha brilho num momento capital da trama, que une Duncan (Chris O’Dowd), um fã absolutamente apaixonado (sim, é redundância, mas era preciso reforçar) por um cantor que desapareceu do mapa nos anos 1990, sua namorada Annie (Rose Byrne), uma historiadora da arte afundada na areia movediça de uma cidade onde absolutamente nada acontece, e Tucker Crowe (Ethan Hawke), o tal músico sumido. Tucker lançou o álbum “Juliet” (1993), incluso pela revista Rolling Stone na lista de “Melhores Álbuns sobre Término de Relacionamento de Todos os Tempos”, e depois renegou o disco (sabe o sentimento de Dylan sobre “Blood on The Tracks”? O mesmo). Duncan criou um site para discutir a obra e a vida de Tucker e idolatra tanto “Juliet” que o brilho do álbum apaga absolutamente Annie. Mas tudo isso está prestes a virar do avesso: a audição do disco de demos “Juliet Naked” divide o casal (“Isso é uma obra prima”, diz Duncan enquanto Annie critica: “Como alguém pode achar que um rascunho é melhor que o produto final?”) e será o estopim para uma grande mudança. Para quem não é do universo pop, “Juliet, Nua e Crua” pode soar como uma comédia romântica doce, correta e funcional do diretor Jesse Peretz (“O Ex-Namorado da Minha Mulher”). Porém, para apaixonados por cultura pop e rock alternativo (a trilha traz sobras de Ryan Adams, Conor Oberst, Robyn Hitchcock e Nathan Larson), há uma peça satírica deliciosa escondida por trás da comédia romântica doce, correta e funcional. No caso de Nick Hornby, preste sempre atenção nas entrelinhas. A mágica acontece ali. E há muita mágica presente aqui. Divirta-se.
WiFi Ralph é crossover publicitário com mais marcas que personagens
Ao contrário de “Detona Ralph”, que priorizou uma história ao invés da tentar agradar os fãs de games, “WiFi Ralph: Quebrando a Internet” se perde entre referências. É basicamente um fiapo de roteiro que se apoia num excesso de check-ins e curtidas pelo maior crossover publicitário já feito no cinema. E além de se referir a si mesma na história, a Disney ainda passa a mensagem de que amizade via Facebook e WhatsApp deve ser tão valorizada quanto brincar com crianças no mundo real – o oposto do que todos falam, por sinal. Para começo de conversa, o filme de 2012, ainda que desenvolvido sob a direção criativa de John Lasseter, nunca foi um “Toy Story”, “Procurando Nemo”, “Wall-e”, “Divertidamente” ou “Up”. No padrão Pixar, teria ficado no segundo escalão. Mas para a Disney pós-“O Rei Leão” até que ficou de bom tamanho. A parceria do estúdio com Lasseter depois renderia “Zootopia” e “Moana”, saindo-se melhor que alguns lançamentos da própria Pixar. Mas “Detona Ralph” se contentava em ser uma aventura extremamente divertida com personagens adoráveis, ao mesmo tempo que prestava homenagem aos games do século passado e aos gamers de todas as gerações. “WiFi Ralph”, por sua vez, encosta os coadjuvantes anteriores para apresentar novos personagens (fraquíssimos) e demora a começar para valer. Os primeiros minutos são puro marasmo, oferecendo uma série de referências a games que estão lá somente para satisfazer nerds, que buscam nada mais que referências. Pior que isso: denunciam logo de cara que não há muito o que contar na continuação, como tinha ficado claro durante os créditos finais de “Detona Ralph”. É por isso que Ralph (voz de John C. Reilly, nas versões em inglês) e Vanellope (voz de Sarah Silverman) saem do limitado mundo dos velhos arcades e partem rumo ao universo de possibilidades infinitas da internet para recuperar uma peça fundamental do jogo da princesa, “Corrida Doce”. Quando Ralph e Vanellope entram na rede, o filme de Phil Johnston e Rich Moore mostra o que tem de melhor: as técnicas de animação evoluíram muito de 2012 para 2018, rendendo um visual limpinho e gigantesco para ilustrar a imensidão da internet. Também é bastante criativa a maneira como caracterizaram os avatares dos usuários, os pop-ups, o Instagram, os vírus, a deep web, os jogos onlines e os vídeos babacas que viralizam no YouTube. Mas “WiFi Ralph” também convida o público a apontar “Ei, ali está a logo do Facebook!”, “Os passarinhos são o Twitter!”, “Ah, os Stormtroopers!”, “Caramba, o Homem de Ferro!”, “Iti malia! São as princesas Disney!”, “A Branca de Neve digital ficou com cara de louca, não?”, “Vi o Google lá em cima!”, “Olha o Pinterest!”. Referências que parecem ocupar mais espaço que a própria história, porque roteiro que é bom, nada. Um lampejo começa a ser esboçado da metade para o final. Pena que não dialogue com o resto do filme, embora os minutos iniciais de “WiFi Ralph” joguem algumas pistas no ar que se perdem rapidamente. É uma mensagem ousada para a Disney, mas também questionável, porque a animação é feita essencialmente para crianças e o verdadeiro público-alvo provavelmente não terá maturidade suficiente para assimilar. Além disso, a ideia de valorizar a comunicação via redes sociais parece anúncio pago das grandes marcas que estampam diversas cenas de “WiFi Ralph”. No fim, fica a sensação de que alguém revisou o roteiro para inserir marketing de conteúdo no lugar da história. Apesar de contar com um universo cheio de potencial, a Disney fez de “Detona Ralph” uma jornada completa e centrada nas redenções de dois personagens. Já “WiFi Ralph” se encanta pelo tamanho desse universo, que engole os dois personagens, deixando-os sem rumo. Sobram referências e falta história no roteiro bagunçado, que tem até um inesperado número musical, supostamente engraçadinho, com uma canção ruim de doer.
Bumblebee é o E.T. da franquia Transformers
Você viu esse filme várias vezes, e em embalagens diferentes, mas a fórmula de “E.T.” com visual de “Transformers” não tinha muito como dar errado. Foi preciso contar uma história (vejam só que coisa básica), ter um pouco de noção (e não só explosões) e um diretor promissor (Travis Knight) querendo mostrar serviço para fazer de “Bumblebee” o melhor filme da franquia. De longe. Em resumo, é um filme que dá para assistir. E bem divertido, diga-se de passagem. O filme solo que a gente não sabia que precisava do Transformer mais querido do planeta, trocou os clichês grandiosos de Michael Bay pela sensibilidade de Travis Knight, um novato que encantou com a animação “Kubo e as Cordas Mágicas” e assumiu a franquia mais execrada de Hollywood com a esperança de realizar um milagre. E conseguiu. Nunca antes a crítica gostou tanto de um Transformer. Antes de tudo, e ao contrário de Michael Bay, Knight proibiu câmeras tremidas, deixando toda a ação visível ao olho humano. Livrando o público da dor de cabeça, tratou de tirar-lhe também o peso das costas, entregando um filme mais leve, inclusive no senso de humor. Além disso, corrigiu os rumos da franquia ao retomar os melhores momentos do primeiro “Transformers”, o único até aqui que parece ter sido produzido por Steven Spielberg. Knight voltou ao filme de 2007 para contar a história do menino e seu carro-robô. No caso, da menina e seu fusca-autobot. Além disso, o diretor aproveitou o fato de “Bumblebee” ser um prólogo passado nos 1980 para incorporar o espírito da época – em que Spielberg fez “E.T” e reinou absoluto como rei dos blockbusters. Tanto em cena, ao reproduzir o tipo de aventura juvenil daquela era, quando na trilha, cheia de músicas que marcaram a década – The Smiths, A-ha, Simple Minds, Duran Duran, Rick Astley, Tears for Fears, entre outros. Tirando os efeitos visuais, absolutamente modernos, “Bumblebee” parece pertencer à época que retrata. Tem cara de cinemão da década de 1980. Mas não pense que o filme é antiquado. A começar por trazer uma protagonista feminina, que não precisa de homem nenhum para alcançar seus objetivos – como Ripley, na franquia “Alien”. Não está ali só para beijar um cara na cena final nem para gritar de medo diante do menor perigo. Hailee Steinfeld já tinha provado seu talento precoce em “Bravura Indômita”, filmão de 2010 dos Irmãos Coen, que lhe rendeu até indicação ao Oscar. São nove anos de lá até aqui e, como já tinha mostrado em “Quase 18”, ela virou estrela. Seu talento ajuda a transmitir a emoção necessária para a transição dramática da história. Pois se “Bumblebee” é divertido, também traz aquele momento de dar nó na garganta. É “E.T.” telefonando dos anos 1980 para o cinema atual. “Bumblebee” ainda evita erros de outros prólogos, como “Han Solo”, que tentam se conectar aos longas originais atirando referências para fãs, antes mesmo de ter um roteiro definido. Isso abre possibilidades para que “Bumblebee” tenha sua própria franquia sem se preocupar com o que foi visto antes. Não é uma novidade, mas é um recomeço muito bem feito – e com direito a usar e abusar dos efeitos sonoros do desenho antigão dos Transformers. Parecia que tinham vergonha disso, mas como a nostalgia impera em “Bumblebee”, até o famoso som de transformação foi (bem) recuperado.
O Retorno de Mary Poppins leva o espectador à era de ouro de Hollywood
Se atualmente a Disney quer transformar suas animações em filmes live-action, o próprio Walt pensou ao contrário quando decidiu adaptar o livro de P.L. Travers em live-action com cara de animação. “Mary Poppins” ainda é a maior referência em termos de mistura de atores e desenhos da Disney. Não há nada igual com tamanha qualidade. E independentemente de qualquer coisa, o clássico de 1964 e Julie Andrews permanecem eternos, irretocáveis e encantadores até hoje. Por isso mesmo, sua primeira continuação não poderia arriscar nada muito diferente, exceto uma homenagem emocionante ao original e, consequentemente, uma viagem ao tempo dos musicais de outra era de Hollywood. Ou seja, trilhando o caminho da nostalgia sem deixar de dar sequência aos eventos narrados no original. Por isso, “O Retorno de Mary Poppins” parece o mesmo filme de antigamente. Lembra sua estrutura de roteiro e um cinema “classudo” que não volta mais, porém alguns pontos técnicos e narrativos foram devidamente atualizados. A transição foi muito bem feita (com amor) e continua uma história mágica como deve ser, mas com uma Emily Blunt maravilhosa, uma deusa como a Mary Poppins deste século, que só pode ter deixado Julie Andrews orgulhosa. Esse filme é sua consagração definitiva como atriz e estrela de cinema. Isso não quer dizer que “O Retorno de Mary Poppins” não tenha novidades em relação ao longa de 1964. No longa original de Robert Stevenson, a babá vivida por Julie Andrews faz as crianças agirem como crianças e não como pequenos adultos, enquanto mostra a um homem a importância de ser pai. No filme de Rob Marshall, a babá, agora interpretada por Emily Blunt, volta a fazer o mesmo com as crianças, mas o principal foco é mostrar que ser adulto não significa necessariamente matar a criança que existe dentro de você. Se a estrutura é praticamente a mesma, além dos cenários reproduzidos com o máximo de fidelidade, deixando a impressão proposital de que o tempo não passou, até as músicas de “O Retorno de Mary Poppins” são boas, assim como os números musicais. Destaque para “A Cover is Not the Book” e “Trip a Little Light Fantastic”, que provam o quanto Emily Blunt e Lin-Manuel Miranda nasceram para cantar e dançar juntos e com figurinos exuberantes, da mesma forma que Julie Andrews e Dick Van Dyke. O veterano ator e dançarino, por sinal, tem uma breve e emocionante participação na sequência, sapateando, claro, aos 93 anos de idade. Os mais velhos podem ir às lágrimas devido ao saudosismo e, embora o público infantil de hoje seja muito diferente da época de “Mary Poppins”, as crianças também podem embarcar na magia só pela grandiosidade em cena, embora tanta dança e cantoria possa parecer um tanto cansativo para a geração mais acostumada com explosões de games e de filmes de super-heróis. De todo modo, é possível reparar que, ao contrário do lançamento de 1964, um filme infantil para espectadores de todas as idades, o novo “Mary Poppins” mirou mesmo os adultos que amam o clássico, levando em consideração a mensagem para que ele não esqueça que foi criança um dia. É claro que “O Retorno de Mary Poppins” está longe de ser perfeito. O filme não precisava de um vilão e toda a sequência com Meryl Streep parece ter sido concebida só para contar com… a participação de Meryl Streep. Mas o diretor dos musicais “Chicago” (2002), “Nine” (2009) e “Caminhos da Floresta” (2014) conseguiu entregar seu melhor filme ao relembrar que o cinema ainda pode reviver sua era de ouro sem trair sua evolução natural – como unir animação tradicional com CGI, musicais à moda antiga com uma narrativa moderna e efeitos práticos com digitais.
Bird Box não é o fim do mundo, mas lembra o Fim dos Tempos
“Bird Box” não é o pior filme do mundo. É uma “Tela Quente” bem mais interessante que “Fim dos Tempos” (2008), aquela porcaria do M. Night Shyamalan, que vem aí de novo com “Vidro”. Ele é um diretor bem mais talentoso e com um repertório narrativo cheio de soluções visuais mais criativas que a dinamarquesa Susanne Bier. Mas colocou Mark Wahlberg para falar com uma planta em “Fim dos Tempos”, enquanto Sandra Bullock não passa vergonha em “Bird Box” e sabe atuar. Claro que, quando a referência imediata vem de um filme ruim que quase ninguém lembra que viu, a coisa não pode ser muito bonita. Mas também não precisa vendar os olhos para encarar “Bird Box”, porque Sandra Bullock é uma mulher capaz de tudo. Poucas atrizes sabem transitar entre drama e comédia com tamanha eficiência e experiência para segurar qualquer filme nas costas, atraindo praticamente toda a atenção do público. E ainda tem uma garotinha sensacional no elenco, a pequena notável Vivien Lyra Blair, além do talento promissor de Trevante Rhoades, de “Moonlight”, embora John Malkovich, Sarah Paulson e Jackie Weaver aparecem apenas pela obrigação de manter as contas em dia. “Bird Box” é sobre algo que surge do nada e que não pode ser visto, então, leva as pessoas a cometer suicídio. Alienígenas? Entidades malignas? A câmera não mostra e é melhor assim. Talvez seja uma metáfora para a depressão, o medo que de nós mesmos e da possível e consequente desistência da vida. Ótimo que o espectador possa entender “Bird Box” como quiser, afinal arte é uma experiência bem pessoal. E a analogia sobre depressão não é absurda, pois a jornada da personagem de Sandra envolve sua aceitação da maternidade, solução que representa sua própria razão para viver. Pena que a diretora Susanne Bier dilua qualquer simbologia em prol do melodrama e de uma história mais convencional. Fica a sensação de que o roteiro de Eric Heisserer (“A Chegada”), baseado no livro de Josh Malerman, precisava de um olhar mais profundo para traduzir a reflexão que parece ter repercutido mais em quem leu a obra original. Em vez disso, a trama prefere investir nos momentos clichês da estupidez humana, que existem em nove de cada dez filmes que flertam com o terror – como abrir portas para estranhos no meio do caos, ver uma notícia sobre suicídio em massa na Rússia e ignorar o fato como se fosse a coisa mais normal do mundo, e correr por uma floresta com os olhos vendados só para tomar inúmeros tombos. Para se arriscar em um território tão explorado é preciso desbravar fronteiras e percorrer caminhos jamais percorridos. Não é o que faz Susanne Bier que, numa era não muito distante, conquistou o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro por “Em um Mundo Melhor” (2010). Era de se esperar mais dela. Especialmente após outro filme com temas mais ou menos similares ir muito além e se destacar em 2018, o excelente “Um Lugar Silencioso”.
Yara mostra Líbano pouco difundido, como paraíso romântico
“Yara” leva os espectadores a uma região de grande beleza natural, no norte do Líbano: o Vale de Qadisha, uma localidade rural isolada, cercada de belas montanhas e uma paisagem verde exuberante. Circulam por lá as cabras, as galinhas, gente que cozinha, lava roupa, toma sol. Muito pouca gente. Num ambiente tranquilo e de muita paz, tão perto de uma zona conflagrada, vivem a adolescente Yara (Michelle Wehbe) e sua avó, numa rotina em que, a rigor, nada acontece e tudo se repete. No entanto, a entrada em cena de um jovem andarilho, Elias (Elias Freifer), meio perdido naquela região, acaba trazendo uma inesperada amizade e a perspectiva de um amor de verão para Yara e para ele. A narrativa rarefeita de “Yara” se resume a isso, num ritmo bastante lento, contemplativo. Durante uma hora e meia vivemos nesse paraíso de beleza e paz, sorvendo cada instante, percebendo nuances, detalhes. É um tipo de filme, hoje já disseminado, que se contrapõe à tendência não só do cinemão comercial, agitado e enlouquecido, como da vida diária das grandes cidades do mundo, seus conflitos e suas guerras. Um bálsamo para tempos bicudos. É curioso que essa tenha sido a escolha do diretor Abbas Fahdel, nascido no Iraque e vivendo na França desde os 18 anos de idade. Ele atuou como documentarista em função da terrível situação da guerra em seu país, procurando entender o que teria acontecido com seus amigos de infância que lá permaneceram, registrando um Iraque abalado pela violência, pelo pesadelo da ditadura e pelo caos que lá se instalou em “Retour à Babylone” (2002). Outro documentário seu, “Homeland (Iraq Year Zero)”, aborda a invasão norte-americana do país. E sua única ficção anterior, “L’Aube du Monde” (2008), é um drama sobre os múltiplos impactos da Guerra do Golfo, numa área conhecida como Jardim do Éden. Com esse histórico e essa identidade geográfica, chega a ser surpreendente esse conto de amor, emoldurado pela beleza natural, pela juventude, pela inocência e pela sutileza. O diretor foi em busca de uma fábula que traz o reverso da moeda. Um alívio, depois de tanta guerra e destruição. Um filme extremamente delicado e sensível, ambientado num Líbano pacífico. Um filme para relaxar e curtir, sem pressa.
A Nossa Espera reflete sobre as batalhas do cotidiano
Um operário vivendo do chão de fábrica, competente, dedicado ao seu trabalho, e também consciente de seus deveres e responsabilidades junto aos seus colegas e subordinados. Atento à forma como a empresa trata seus empregados, disposto a lutar por direitos, justiça, respeito e melhores condições de trabalho. Esse é o personagem Olivier (Romain Duris, de “Uma Nova Amiga”). Ou melhor, a face trabalhista dele. A outra face é a familiar, tão dura e cheia de percalços como a do trabalho. O dinheiro é restrito, dois filhos pequenos demandam cuidado e atenção permanentes. Mas enquanto a mãe Laura (Lucie Debay, de “Antes do Inverno”) está presente, dá para levar. Só que um dia ela some, sem deixar explicações, e a vida de Olivier se complica enormemente. O que o filme do diretor belga Guillaume Senez explora em estilo bem realista é a luta desse homem simples, operário, trabalhador, seu drama familiar com seus filhos e a participação de sua mãe e de sua irmã. Uma história sobre abandono e perdas. O título em português alude também á questão da indefinição e da espera pelo possível retorno de Laura. Daí “A Nossa Espera”. O título original, porém, prefere enfatizar as batalhas do personagem e de seu meio: “Nos Batailles” (nossas batalhas). A narrativa faz uma boa conexão entre a vida pessoal e o aspecto coletivo, social, mostrando como uma coisa interfere fortemente na outra e como os valores se constroem, ou são vividos, lá e cá. Um dilema moral muito relevante resultará disso tudo, envolvendo não só o protagonista Olivier, mas também seus dois filhos, que ainda pequenos experimentarão o significado da democracia. Enfim, “A Nossa Espera” é um filme político, no sentido de que nossa atitude, nossas crenças, nossas ações, em casa ou no trabalho, são políticas e têm repercussões na vida dos outros. Unanimidades são raras, por isso é preciso negociar, cultivar a alteridade, respeitar as diferenças e os sentimentos. Romain Duris, com seu talento e discrição, constrói um Olivier fascinante, que inspira respeito e torcida do público. No entanto, ele não se comporta como um herói. Ele luta para sobreviver com dignidade e para dar conta de tudo, dentro dos seus limites e com suas falhas. Como todo mundo. Só que, para alguns, a vida é mais penosa, mais difícil. Às vezes, o desafio parece grande demais. Mas a solução fácil pode ser mais lesiva do que a dura batalha do dia a dia, com suas escolhas complicadas.
Aquaman aproxima universo DC dos filmes da Marvel
Principal aposta da DC Comics/Warner Bros em 2018, “Aquaman” representou uma mudança muito clara em relação às adaptações de histórias de super-heróis produzidas pelo estúdio. Todo aquele clima sombrio e depressivo foi deixado de lado, em favor de uma ambientação colorida e de uma narrativa mais leve e engraçada. Ou, ao menos, essa era a ideia. Escrito por David Leslie Johnson-McGoldrick (“Invocação do Mal 2”) e Will Beall (“Caça aos Gângsteres”), o roteiro segue uma fórmula esquemática e um tanto repetitiva (na qual se precisa encontrar um objeto, que leva a outro lugar em busca de outro objeto, etc.), mas acerta ao não perder tempo detalhando a origem do personagem, pois ele já foi visto em “Liga da Justiça”. Embora existam flashbacks da infância de Arthur Curry, logo de início já o vemos em ação salvando a tripulação de um submarino. Relutando em assumir o papel de herói, Curry (Jason Momoa) renega a sua origem atlante (ele é filho da rainha Atlântida e de um humano). Porém, precisa se unir a Mera (Amber Heard) para encontrar uma arma mítica capaz de controlar os sete mares e derrotar seu meio-irmão, Orm (Patrick Wilson), que pretende tomar o trono de Atlântida e iniciar uma guerra contra a superfície. A dupla de protagonistas se esforça ao máximo para trazer um pouco de humor para essa trama-clichê, mas nem sempre consegue, o que torna alguns dos elementos, como um vestido feito de águas-vivas ou penteados bizarros, apenas ridículos. O mesmo pode ser dito da sequência em que Arthur e Mera chegam na Itália, que transforma o longa numa comédia romântica, embalada por uma trilha sonora brega e por momentos (supostamente) engraçadinhos. Mesmo que essas inserções constantes de humor sejam uma exigência do estúdio, o filme de James Wan (“Invocação do Mal”) não mostra coesão para se apresentar como comédia, nem tampouco para levar a sério sua trama fantasiosa. Afinal, Wan é um cineasta que não tem muita experiência no gênero. Seu humor é proveniente do exagero (como em “Velozes & Furiosos 7”), não de piadas. Felizmente, não falta exagero em “Aquaman”. As sequências de ação são muito bem coreografadas e Wan não abandona suas referências de terror, criando situações que remetem aos seus trabalhos anteriores – com direito a monstros marinhos. Mas há grandes equívocos. O uso de uma trilha sonora com sintetizadores, por exemplo, destoa do que está sendo mostrado, quebrando o ritmo das cenas. E o romance melado dos protagonistas tem direito a beijo em meio a cenas de ação, com direito à sugestão de que explosões mortais de fundo podem representar fogos de artifício românticos. Fica claro desde o início que a referência são as produções da Marvel, modelo mais bem-sucedido dos filmes de super-heróis. A mudança, que começou a ser ensaiada em “Liga da Justiça” e “Mulher-Maravilha”, parece cada vez mais próxima de se materializar em “Aquaman”. Agora é ver quão mais próximo da Marvel será “Shazam!”, filme do herói que, por ironia, costumava se chamar Capitão Marvel até recentemente.
Asako I & II questiona romantismo de forma criativa
O Festival de Cannes tem o hábito de colocar em sua mostra competitiva obras de cineastas já celebrados. Daí a surpresa quando um nome menos conhecido vira destaque, como o de Ryûsuke Hamaguchi com seu “Asako I & II” em 2018. Acontece que o diretor já vinha se projetando e até foi bastante premiado em outros festivais com um longa de mais de cinco horas de duração, “Happy Hour” (2015), inédito comercialmente no Brasil. Com 10 filmes no currículo, incluindo curtas e documentários, Hamaguchi finalmente chega ao circuito brasileiro com seu “Asako I & II”, um drama romântico desconcertante. Ora o filme opta por um estilo mais naturalista, ora seus personagens parecem mais afetados nas interpretações. Isso acontece principalmente no primeiro momento, quando, embriagada de amor, a jovem Asako (Erika Karata) se vê sem chão quando seu amado Baku (Masahiro Higashide) desaparece. Ela muda de cidade, sai de Osaka e vai morar em Tóquio e tenta reconstruir sua vida. E quando o filme parece se aproximar de uma linha mais realista, e de fato o tom do filme muda um pouco, surge algo que perturba o coração de Asako: o fato de ela conhecer um rapaz idêntico a Baku. O jovem, de nome Ryôhei, vira rapidamente co-protagonista da narrativa. Diferente do enigmático Baku, Ryôhei é um sujeito comum, que sente que tem a sorte de conhecer uma moça tão bela e tão terna quanto Asako. O problema para Asako é que ela não sabe se o que ela sente por Ryôhei se dá pelo fato de ele ser muito parecido com Baku ou se ela está mesmo se apaixonando ou se apegando afetuosamente ao rapaz, que passa a representar a sua estabilidade emocional. Há uma cena entre os dois que é linda dentro de um contexto de caos, um encontro durante um terremoto. Mas há outra que é ainda mais bonita, já dentro do contexto de uma relação estável: Ryôhei está deitado no chão e Asako massageia seus pés. Aquele momento parece algo bem próximo do paraíso na Terra. O que “Asako I & II” traz de diferente em relação a outros dramas românticos, ou mesmo comédias românticas, é que ele procura inverter a felicidade, que deixa de ser algo mais próximo do romantismo para virar algo mais próximo do realismo. Para uma cultura que fez brotar um cineasta como Yasujiro Ozu, é até compreensível.











