Toy Story 4 emociona mesmo repetindo situações dos filmes anteriores
“Toy Story”, “Toy Story 2” e “3” não são apenas excelentes. São alguns dos melhores filmes já feitos e entregam com perfeição um começo, um meio e um fim como poucas trilogias foram capazes. E o que é “Toy Story 4”? Um novo final? Um novo começo? Precisava mesmo disso? Não fica claro. É tão relevante quanto desnecessário. Uma delícia de assistir, praticamente um complemento, mas não chega à altura dos anteriores. Entretanto, todos amam Woody, Buzz & Cia. É ótimo rever velhos amigos mesmo quando não contam muita novidade. E é exatamente isso que acontece com “Toy Story 4”, um pot-pourri dos melhores momentos e conflitos da (antes considerada) trilogia. Isso é bom e ruim, porque satisfaz quem gosta da saga, mas também é o primeiro dos quatro filmes a não entregar um roteiro desenvolvendo dramas e obstáculos inéditos. O único ponto de Toy Story 4 diferente de tudo que foi mostrado desde 1995 é o seu final. Mas até chegar lá, a história é uma repetição. Divertida, emocionante, mas ainda uma repetição. E fica a pergunta: esse final foi feito para (de novo) encerrar a série pela segunda vez ou para indicar sua reinvenção? Enfim, o tempo se encarregará de responder essa questão. Mas é um final que arrancará lágrimas dos fãs; não na mesma quantidade derramada em “Toy Story 3”, mas vai. Pode não ser o que você queria, porém é honesto com toda a série e demonstra o esforço de “Toy Story 4” em, no mínimo, honrar os anteriores. Até porque era impossível não retomar os temas de aceitação, abandono, lealdade, e existencialismo, amizade e a busca pelo nosso verdadeiro eu e nosso lugar no mundo, que são base da franquia. Tudo isso foi e explorado de alguma forma na trilogia, como a história do brinquedo que não sabe que é um brinquedo (“Toy Story”), a dúvida de Woody sobre se juntar a outros brinquedos e deixar sua criança para trás (“Toy Story 2”) e a fuga de um lugar estranho e ameaçador (“Toy Story 3”), que ressurgem repaginados com Garfinho e outros novos personagens, além de um antiquário tenebroso. Mas não há como negar que tudo é bem amarrado e que a história flui com maestria. Mesmo com seus repetecos, “Toy Story 4” é mágico e envolvente do início ao fim, como um entretenimento de primeira, coisa que às vezes até a própria Pixar se esquece de fazer. Talvez por causa da coragem de sua conclusão. Quando tudo está igual, a Pixar resolve fechar com uma última decisão inesperada, mas que faz todo o sentido depois de tantos anos acompanhando esses brinquedos. Principalmente, porque a franquia sempre foi representada por Woody (voz de Tom Hanks) e Buzz Lightyear (Tim Allen). Mas, no fundo, sempre foi sobre o caubói. Woody dedicou sua vida à Andy e aos amigos; nunca a si próprio. Em “Toy Story 4”, pela primeira vez, veremos Woody fazendo algo para ele mesmo. Ele representa pessoas que você conhece (ou talvez seja você) que abdicam de sonhos e vontades para cuidar dos outros e, num piscar de olhos, a vida já passou. Gostei de ver essa discussão na série, assim como a introdução de novos personagens, como o dublê Duke Caboom (voz de Keanu Reeves) e a dupla Patinho e Coelhinho (Keegan-Michael Key e Jordan Peele). Também é interessante ver a indefesa Betty (Annie Potts) surgindo como uma jedi após cerca de sete anos vivendo nas ruas. Mas é o tal do Garfinho (voz de Tony Hale) que rouba a cena. Um brinquedo que pode ser criado por qualquer criança no mundo, e que se torna mais valioso que qualquer produto caríssimo vendido nas lojas. Ironicamente é o que deve acontecer com o Garfinho, que deve ser vendido a mais de R$ 100,00 nas megastores. Mas voltando ao filme, o personagem se vê como lixo, descartável e recusa sua existência. Se não fosse por Woody, ficaria para sempre numa lata de lixo. Ou seja, a Pixar toca sutilmente no tema do suicídio, mas não se preocupe, porque a abordagem é leve e divertida por incrível que pareça, porque mostra a metáfora por meio de um garfo tosco de plástico e não de uma pessoa. Só que, enquanto temos ótimos personagens principais com muito tempo em cena, incluindo a boneca Gaby Gaby (voz de Christina Hendricks) e seus assustadores bonecos ajudantes, os tradicionais Rex, Cabeça de Batata, Slink e até Jessie se tornam descartáveis na trama. E nunca “Toy Story” tratou seus coadjuvantes de maneira tão pobre. Resta saber se o desfecho de “Toy Story 4” foi uma conclusão mesmo (de novo) ou se foi um (outroz) recomeço. Talvez tenha chegado a hora da Pixar tomar uma decisão radical, porque se continuar a apostar na reprise de situações, o antiquário pode ter uma estante reservada para “Toy Story 5”.
Deslembro é uma pequena obra-prima do cinema brasileiro
É possível notar, mesmo sem saber nada de “Deslembro”, que se trata de um filme muito pessoal de sua diretora, Flavia Castro. Ao perceber que o desaparecimento do pai durante a ditadura já havia sido abordado no documentário “Diário de uma Busca” (2010), fica claro que ela é movida pela necessidade de recontar essa história. O que impressiona é o quanto ela consegue ser bem-sucedida nisso, estreando no registro de ficção. A sensibilidade com que a cineasta conta a história da jovem adolescente que é trazida da França para o Brasil na virada dos anos 1970 para os 80, quando começou o processo de anistia política, é realizada com uma vivacidade impressionante. Nos primeiros minutos de “Deslembro” vemos uma família dialogando em francês. A menina Joana (Jeanne Boudier, ótima) não quer sair da França e ir para um país em que se torturam e matam pessoas. Mas a mãe (Sara Antunes) prefere que a filha e seus outros dois filhos (na verdade, um deles é filho do seu companheiro com outra mulher) venham com ela para o Rio de Janeiro. O impacto da chegada ao novo país começa a trazer memórias fortes de um momento traumático na vida da pequena Joana. Lembranças escondidas em um canto seguro de sua memória. Assim, essas lembranças – ou possíveis lembranças, já que não se sabe ao certo o que é verdade ou o que é construído como uma espécia de sonho – vão surgindo em flashbacks bem fragmentados. Às vezes, a diretora usa um recurso plasticamente muito bonito de mostrar uma imagem tão próxima que não permite distinguir o está sendo mostrado, como em um quadro de pintura abstrata com textura em alto relevo. A inclusão de canções é também um acerto do filme. Lou Reed, Caetano Veloso, The Doors, Nelson Gonçalves (em uma canção de Noel Rosa que também aparece no maravilhoso “Arábia”, de João Dumas e Affonso Uchôa, ainda que com um intérprete diferente), citações a David Bowie e Pink Floyd; além do amor pelos livros por parte de Joana e a recitação de um poema de Fernando Pessoa. Tudo isso faz com que a paixão pela vida, embora dolorosa pela falta trágica do pai, esteja o tempo todo presente. E há ainda o amor no seio familiar. A família mostrada no filme, tão fragmentada quanto as memórias da menina, é de encher o coração (o que são aquelas cenas no carro, meu Deus?). As questões de afetividade envolvendo a mãe, o padrasto chileno e os dois irmãos pequenos somam-se à avó da menina que mora no Rio, vivida com brilho por Eliane Giardini. A cena mais tocante do filme, aliás, surge sutil, num momento em que a avó e a menina estão sozinhas e a avó olha com lágrimas nos olhos para o rosto daquela garota que lembra o seu filho assassinado pela ditadura. Um exemplo de sensibilidade ímpar por parte da diretora e de seu belo elenco. O amor romântico também surge em “Deslembro” de maneira muito bonita. Há, inclusive, uma cena de sexo muito discreta e muito elegante entre a garota e o seu interesse amoroso, um rapaz que também é filho de exilados. E esse aspecto romântico e a quantidade generosa de canções pop faz com que o filme dialogue com o ótimo “Califórnia”, de Marina Person. No que se refere às questões políticas, há diálogo com o momento atual, embora o filme tenha sido finalizado antes das últimas eleições presidenciais. O que não deixa de torná-lo ainda mais forte e urgente nos dias de hoje. Aliás, o que não parece urgente nos dias de hoje, quando o assunto é direitos humanos? Restrito ao circuito alternativo, “Deslembro” infelizmente terá um público pequeno. Por isso, é importante que o boca a boca seja positivo e que atraia o público, para que mais pessoas tenham a honra de ver esta pequena obra-prima no cinema, em toda sua glória.
Fora de Série é uma das melhores surpresas do ano no cinema
“Ser jovem é a experiência mais dolorosa e mais hilária”, disse Olivia Wilde em entrevista para o jornal The Guardian. E de fato, por mais que “Fora de Série”, a estreia da atriz na direção de longas-metragens, seja um filme para rir bastante, há uma profundidade e uma compreensão do que é ser jovem que falta na grande maioria dos filmes do gênero produzidos neste século. Como vivemos em um momento em que tudo que fazemos tem um viés político, vale lembrar que Wilde é uma democrata entusiasmada, que trabalhou duro durante as campanhas de Obama, e cuja mãe é congressista. Assim, seu filme também trata de situações da pauta política dos dias de hoje, como a orientação sexual e a sororidade. “Fora de Série” conta a história de duas garotas que são melhores amigas. Elas estão no último ano do ensino médio e prestes a ingressar em uma nova fase de suas vidas. Acreditam que deram o melhor de si, ralando muito nos estudos, diferente da grande maioria de seus colegas, que passaram o ano brincando, indo a festas etc. Na verdade, a visão que Wilde tem da escola é quase caótica, mas muito divertida. Em determinado momento, parece a “Escolinha do Professor Raimundo”. Por isso, uma delas fica horrorizada ao saber que vários de seus colegas também vão para universidades conceituadas, mesmo não tendo estudado tanto quanto ela. Daí a necessidade de, no último dia do ano, antes de receber o diploma, ir a uma das festas malucas da turma. Isso se torna algo de fundamental importância para as duas. Desde o começo, o filme é um convite ao riso, ao mesmo tempo em que acompanhamos o aprofundamento daquelas personagens – e até dos coadjuvantes que aparecem pouco e que seriam apenas funcionais na trama. Assim, a transição da comédia para o drama pode ser sentida com mais força. O que dizer da cena da piscina? Ao mostrar a cena para Will Ferrell em um corte inicial do filme, o ator e comediante, que produz o longa, disse entre lágrimas: “Essa é uma das mais belas cenas que eu vi na vida”. Dá para imaginar que Olivia Wilde tenha fica emocionada com o apoio do amigo, mas ela revelou que muita gente queria cortar a cena. Dá para imaginar? Um dos grandes méritos do filme é fazer o público se sentir mais vivo ao conduzi-lo de volta para esse momento de transição da vida. O sentimento é similar ao evocado por “Lady Bird”, de Greta Gerwig, só que com muito mais experimentação e estranheza, o que é melhor. Assim, a história chega às telas com um grau de frescor maior que o visto no cinema independente atual. E com uma maravilhosa liberdade expressada nos diálogos íntimos das duas amigas, como na revelação de um brinquedo de pelúcia para auxiliar na masturbação de uma delas. As duas adolescentes, Molly (Beanie Feldstein) e Amy (Kaitlyn Dever), se amam e se apoiam mutuamente. Molly sofre por ser gordinha e acreditar que não tem chance com os garotos da escola, enquanto Amy é lésbica e encontra muita dificuldade em chegar numa garota por quem se sente atraída. Ao mostrar tanto o doce e o amargo desses momentos da vida, “Fora de Série” encanta. A primeira experiência sexual de Amy, o baque de ver a pessoa amada beijando outra pessoa, a alegria com o sucesso da colega, a aproximação com colegas distantes através de pequenos diálogos que revelam mais aprofundadamente quem são aquelas pessoas, tudo isso é muito bonito. “Fora de Série” é também um filme sobre ser jovem em 2019, o que o torna também uma espécie de documentário de uma época. E uma das melhores surpresas do ano no cinema.
Fênix Negra encerra saga dos X-Men de qualquer jeito
“X-Men: Fênix Negra” é o último “X-Men” da Fox. Depois disso, a franquia será comandada pela Marvel (em outras palavras, Disney). Portanto, era de se esperar um final digno, afinal a série rendeu grandes momentos e proporcionou alguns filmes realmente muito bons, como “X-Men 2” e “X-Men: Primeira Classe”, além de “Logan”. Sem esquecer que não teríamos a onda atual de filmes de super-heróis sem o “X-Men” de 2000 e, sem ele, Hugh Jackman jamais teria se tornado um astro. Então, não foi pouca coisa. Mas o roteirista Simon Kinberg, promovido a diretor em “X-Men: Fênix Negra”, tratou não só este filme, como toda a franquia, como qualquer coisa. E entregou um episódio final horroroso, pior que o fraco “X-Men: Apocalipse”. Kinberg deveria entender mais a respeito dos personagens, não? Ele escreveu diversos filmes da franquia e até o terrível “X-Men: O Confronto Final”, que é (pasmem) a base deste último ato da saga. Giramos, giramos e giramos para cair no mesmo lugar. Ironicamente, no mesmo ponto em que a Fox se viu obrigado a recomeçar a saga, depois que Brett Ratner destruiu o que Bryan Singer construiu com “X-Men” e “X-Men 2”. O estúdio precisou rejuvenescer os personagens, brincar com a timeline e criar uma espécie de universo paralelo misturado com passado, mas sem a mesma destreza narrativa de J.J. Abrams, que inaugurou essa tendência em “Star Trek”. Até que o recomeço foi promissor com “Primeira Classe”, em que o cineasta Matthew Vaughn conseguiu inserir ideias novas muito bem-vindas. Mas a verdade é que ele só esquentou a cadeira de diretor até Bryan Singer retornar e estragar tudo com seu ego. Com ajuda, claro, de Kinberg, que demonstrou ego ainda maior, ao assumir roteiro, direção e produção do último filme. Os quatro filmes que ele escreveu estão entre os piores da saga, salvando-se apenas “X-Men: Dias de um Futuro Esquecido” pela premissa original – de Chris Clarement nos quadrinhos. Se você viu “O Confronto Final” e conseguiu a proeza de guardar algo na memória, “Fênix Negra” é uma versão, digamos, mais barulhenta e com mais efeitos digitais distribuídos por metro quadrado. Mas igualmente estúpida no quesito desenvolvimento da trama. Acredite: o público não tempo de chorar pela morte de uma personagem principal, enquanto é arremessado num festival de lutas e CGI com personagens encarando uns aos outros com raios lasers nos olhos. O que conduz ao olhar de Jessica Chastain, representando o do público em sua maioria. Entre a sucessão exagerada de encaradas entre personagens, o espectador só precisa encarar a atriz para notar a pergunta jogada no ar: “o que estou fazendo aqui?”. Sua personagem, Vuk (!), que parece a irmã dos gêmeos albinos de “Matrix Reloaded”, entra para levantar uma discussão sobre a força da mulher, mas o papo não decola em meio à ação visualmente constrangedora. Comparar o final da saga dos “X-Men” com a espetacular conclusão orquestrada pela Marvel para “Vingadores: Ultimato” é até covardia. Então, boa sorte, Marvel Studios, com a missão de limpar essa zona. Sobram os agradecimentos, apesar de tudo, ao elenco dessa nova velha geração. Especialmente a Jennifer Lawrence, Michael Fassbender, James McAvoy, Nicholas Hoult, Evan Peters e Sophie Turner pelo tremendo esforço em dar vida e alguma alegria aos fãs dos quadrinhos. E vale dar também um grande adeus a Simon Kinberg. Tchau.
Dor e Glória reflete criatividade e desejo de Pedro Almodóvar
“Dor e Glória”, de Pedro Almodóvar, centra-se no personagem Salvador Mallo, um cineasta que já traz no nome a convivência dos contrários. Seu momento atual e suas lembranças são marcados pela dor e pela glória. A dor porque já está envelhecido e sentindo-se sem condições de filmar, a razão de ser de sua vida, com as doenças tomando conta de seu corpo. Desde as dores de coluna, as dores de cabeça, os engasgos frequentes, até a depressão pela perda de amores e de vitalidade. Uma animação, muito bem realizada, nos mostra o que são essas dores que acometem o corpo, cheia de cores, com didatismo e humor. Com Almodóvar, a dor também fica divertida. Como sempre foi nos seus filmes. A cabeça continua produzindo, escrevendo histórias a partir de experiências vividas, desejadas ou imaginadas, que agora não se destinarão ao cinema. Mas também não são contos literários. Um momento de declínio que produz uma crise existencial. Esses belos escritos, que acabarão sendo representados ou filmados, são a revelação de uma vida de criatividade, de sucesso e admiração internacionais, que é evidente. O relançamento de um filme chamado “Sabor”, realizado há 30 anos e que produziu uma inimizade com o ator principal, faz com que se reate seu contato e, por meio dele, um velho amor reaparece. A glória também vem das lembranças infantis, da vida na casa caverna, da mãe pobre, forte, batalhadora, do canto que abriu caminho ao estudo patrocinado junto aos padres, do primeiro desejo que se manifesta numa febre. O talento de escritor e a inclinação precoce na direção do cinema já dominam a cena. Desde sempre. Embora hoje doloroso, há um caminho a seguir e não será pela via da heroína que combate a dor, mas escraviza. Será novamente pelo desejo que novos ânimos poderão surgir. Não por acaso, a produtora de Pedro e seu irmão Agustín Almodóvar chama-se El Deseo. Ele é visto como o motor da existência. O protagonista Salvador Mallo, brilhantemente interpretado por Antonio Banderas, remete, é claro, à própria figura de Pedro Almodóvar, mas não pode se considerar uma autobiografia. Aí estão lembranças, recordações, mas também acontecimentos que poderiam ter existido ou ser fictícios, expectativas, decepções, hipóteses, exageros. Sentimentos e impressões que passam, se transformam. Elementos de uma vida que abrem perspectivas para um novo personagem, que dialoga com seu inspirador. Este, por sua vez, realiza sua autoanálise, encarando a morte como algo já mais próximo e palpável. Em alguns momentos, até desejável. O filme é lindo, profundo, e traz um time de atores e atrizes magnífico, além de Banderas. O argentino Leonardo Sbaraglia, como Federico, um ator já muito tarimbado e conhecido do cinema dos hermanos. Penélope Cruz, sempre luminosa, faz Jacinta, a mãe. Ambos vivem papéis de coadjuvantes, mas brilham. Asier Etxeandia, como Alberto Crespo, tem um trabalho competente num papel importante. E outras grandes mulheres estão lá: Nora Navas, como Mercedes, Julieta Serrano, como a mãe já idosa, Susi Sánchez e a participação de Cecília Roth, que já atuou em tantos filmes do diretor, compõem um elenco à altura para esse novo grande trabalho almodovariano. Há poucos anos, escrevi um livro destacando a sexualidade e a transgressão no cinema de Almodóvar. O diretor continua fiel a esses temas norteadores, assim como à utilização da metalinguagem. Em seus filmes, outros filmes e peças são feitos – aqui, “Vício” e “O Primeiro Desejo” são as realizações. O construir artístico, a escrita, a filmagem, a distribuição e exibição dos filmes, o trabalho dos atores e atrizes, além do próprio diretor, evidentemente, enriquecem a experiência cinematográfica do espectador. Recentemente exibido no Festival de Cannes, “Dor e Glória” teve excelente acolhida. Levou o prêmio de Melhor Ator para Antonio Banderas. Mas merecia mais.
Godzilla II traz conversa fiada contra a destruição dos monstros
É muito difícil acertar num filme sobre um lagartão gigante que destrói tudo por onde passa, inclusive cidades inteiras. Podem colocar monstros gigantescos para lutar à vontade, mas nunca funcionará se o filme em questão não for sobre pessoas. Mas, ironicamente, esse é o ponto em que “Godzilla II: Rei dos Monstros” desanda. O “Godzilla” de Gareth Edwards, lançado em 2014, tinha cerca de sete minutos de cenas com o monstro em mais de duas horas de projeção. Mas Edwards tinha um estilo marcante, embora a Lucasfilm tenha minimizado isso em seu trabalho posterior, “Rogue One”, que teve refilmagens obscuras. Em “Godzilla II”, Mike Dougherty aceita a missão de “consertar” o problema que gerou grande reclamação do público sedento por diversão: mostrar mais Godzilla e outros monstrengos. E é o que o diretor de “Krampus: O Terror do Natal” faz, com o triplo (!) de criaturas em cena. Dougherty também encontra soluções visuais bacanas, frutos da maior inspiração atual em Hollywood, que são os quadrinhos. Alguns de seus frames realmente merecem virar capa de Facebook ou Twitter. Só que o diretor esquece o básico, que é justificar o lado humano do roteiro (e teoricamente precisamos do lado humano). É preciso dar tempo em cena para um elenco que inclui Vera Farmiga, Eleven (também conhecida como Millie Bobby Brown), Tywin Lannister (Charles Dance), Ken Watanabe, Sally Hawkins e o treinador de “Friday Night Lights” (Kyle Chandler). Mas as cenas desses personagens atrapalham o ritmo do filme, a diversão e enchem a tela de um blá blá blá que não leva a trama para lugar algum e só cessa quando o cenário treme e explode em efeitos sonoros, devido às pisadas fortes de Godzilla. Com menos monstros, “Godzilla” teve muito mais tensão que a continuação, sustentada por um roteiro absurdo, que não aproveita nada do carisma dos atores. Ao contrário, por exemplo, do que aconteceu no “Independence Day” original, onde, no meio das explosões, as aparições de Bill Pullman, Jeff Goldblum e Will Smith eram comemoradas, aqui os famosos surgem só para irritar o público. A trama não faz sentido, tanto que pode ser resumida assim: Humanos pensam que “titãs” (os monstros, não os heróis da DC Comics) podem trazer equilíbrio ao mundo, acordam vários deles, arrependem-se ao ver a besteira que fizeram e deixam a salvação do mundo nas mãos do pobre Godzilla, que só queria dormir um pouco. Estupidez por estupidez, a verdade é que o público que compra ingresso para ver um filme de Godzilla não espera encontrar muita explicação, muito menos um elenco gigante ocupando minutos intermináveis com diálogos expositivos, apenas destruição em escala apocalíptica num vale-tudo de monstros. Impressiona os produtores não conseguirem fazer um filme simples assim.
Rocketman presta tributo empolgante à carreira de Elton John
O garoto Reginald Dwight (ou Reggie) tinha muitos problemas afetivos em família. Um pai incapaz de abraçar e elogiar. Uma mãe complicada e infiel. Brigas em casa, posterior separação. O elemento salvador seria a avó, que sempre pensou nele e o colocou para a frente, ajudando-o a vencer a timidez que seu corpo, algo rechonchudo, só complicava. No entanto, esse garoto tinha ouvido absoluto, uma capacidade de captar e reproduzir instantaneamente as músicas, que logo descobriu como fazer no piano de casa. Colocá-lo para estudar música foi lapidar um diamante bruto. Foi a partir daí, do encontro de um parceiro e de uma descoberta pessoal de como se libertar das amarras convencionais e lidar com a homossexualidade, que surgiu um grande astro pop: Elton John. Uma virada impressionante, uma explosão no palco, a partir de um figurino excessivo, exagerado, muita fantasia e imaginação levaram o músico, cantor e compositor de imenso talento a um sucesso internacional retumbante. Tudo muito turbinado. Quando uma trajetória assim se constrói, também cobra seu preço. Geralmente alto. A dependência de álcool, cocaína e outras drogas, de sexo, do próprio sucesso e da exposição pública. Passando, ainda, pela aprendizagem em gerenciar e colocar limites na própria loucura em que se converte uma carreira tão vertiginosa. Tudo isso está claramente contemplado no ótimo musical biográfico “Rocketman”, que leva o título de um dos maiores sucessos musicais do cantor. O trabalho cinematográfico de Dexter Fletcher (“Voando Alto”) faz jus à importância do astro e, sobretudo, à sua criação artística. Targon Egerton (“Kingsman: O Círculo Dourado”) vive Elton John de forma visceral, entregando-se plenamente ao papel e com performances empolgantes. E o que é melhor, cantando muito bem o repertório de Elton. Com tanta música boa, acompanhada também de danças bem coreografadas e vozes complementares, o musical se enche de brilho e tende a conquistar o público. Segundo o próprio biografado, o filme mostra os baixos bem baixos e os altos bem altos e era assim mesmo que ele queria. De fato, “Rocketman” passa longe de um produto chapa branca ou falseado. Permite-se a fantasia, propõe-se épico, mas isso faz um retrato coerente e apropriado da figura de Elton John. É da batalha dos anos de formação, progresso e comprometimento com os vícios, não só das drogas, mas de tudo o mais, que trata a trama. O sucesso já está todo lá, mas a decadência pessoal também. Curiosamente, grandes contribuições de Elton John em questões como a prevenção da Aids, a oficialização do casamento gay e a adoção de crianças por casais homossexuais só são citadas nos créditos finais. Assim como o fato de que ele está há 28 anos sóbrio. O título de Sir que lhe foi outorgado pela rainha da Inglaterra nem é lembrado, só o fato de que ela gosta de sua música é mencionado. Até seus lances de moda já encontraram caminhos mais equilibrados, não diria discretos, claro, mas um pouco mais suaves. Maturidade, velhice? A música de Elton John empolga, como sempre, sua presença no palco é muito forte. Já há, no entanto, muito a comemorar e rememorar, talvez ressignificar. “Rocketman” cumpre bem esse objetivo, ao focalizar Elton John com realismo e profundo respeito à sua música e à sua trajetória artística de ídolo pop.
Aladdin encanta com colorido à Bollywood e elenco carismático
O novo “Aladdin” é uma surpresa inesperada. Embora se trate de um remake da animação dos anos 1990, representa mais do que isso, com um frescor impressionante, ao trazer de volta o fascínio pelo conto retirado do clássico “As Mil e uma Noites”. É possível se entusiasmar com as aventuras do jovem ladrão de ruas gentil e apaixonado pela princesa de seu reino. Quanto às canções, para quem não gosta tanto de musicais, elas não incomodam e contribuem para que o clima de fantasia contagie o espectador. Tudo pode acontecer em um filme em que um gênio sai de dentro de uma lâmpada. E as canções acrescentam magia às cenas, como no momento em que Aladdin e Jasmine passeiam em cima do tapete mágico. “Aladdin” mantém uma característica marcante das fábulas da Disney, ao evocar o tipo de cinema que se fazia na década de 1950, com música, dança e romance. Por isso, há quem considere algumas dessas produções, especialmente as que lidam com canções – como também foi o caso de “A Bela e a Fera”, de Bill Condon – como algo ultrapassado. Mas nem sempre é o caso. Em um ano em que a Disney prepara quatro adaptações de clássicos animados – a primeira foi “Dumbo”, de Tim Burton, e as próximas serão “O Rei Leão”, de Jon Favreau, e “Malévola: Dona do Mal”, de Joachim Rønning – , “Aladdin”, dirigido pelo irregular Guy Ritchie (“Rei Arthur: A Lenda da Espada”), encanta com seu colorido à Bollywood, seu dinamismo narrativo e uma trinca de personagens principais bastante carismáticos: Will Smith como o gênio da lâmpada, Mena Massoud como o Aladdin e Naomi Scott como a princesa Jasmine. E que princesa! A participação de Jasmine é muita mais valorizada nesta versão em comparação com a animação. Isso se deve tanto ao roteiro quanto à sua intérprete, que empresta um encanto muito bem-vindo à personagem. Naomi Scott já havia aparecido em “Power Rangers”, mas é neste filme que sua beleza e brilho se destacam. E muito em breve o público poderá vê-la na nova versão de “As Panteras”. Assim, a história de amor com Aladdin ganha força. Ainda que a aventura e a fantasia sejam os elementos mais evidentes do filme, o que move o herói é o amor que ele sente pela princesa. Um amor que é recíproco, mas que tem como primeiro obstáculo o fato de que ela deve se casar, segundo a lei, apenas com um outro príncipe, não com um plebeu qualquer como Aladdin. Mas o que seriam das histórias de amor sem os obstáculos? A paixão pela princesa impulsiona o espectador a torcer pelo Aladdin, ao se colocar em seu lugar na jornada. Afinal, quem nunca fantasiou sobre a possibilidade de conquistar uma princesa (ou príncipe) e ter direito a três desejos realizados em um passe de mágica? A mensagem de “Aladdin” também pondera a sabedoria necessária para se exercitar os seus desejos, de modo a não se deixar levar pela ambição cega – que é basicamente o caminho do personagem de Marwan Kenzari, que interpreta o grão-vizir Jafar, o conselheiro do Sultão. Quanto às canções, os clássicos criados por Alan Menken e Howard Ashman para a animação de 1992 compõem a trilha sonora, mas há uma novidade feita especialmente para Jasmine, “Speechless”, cantada com entusiasmo e brilho pela própria Naomi Scott em um momento particularmente cheio de emoção. E, sim, o gênio de Will Smith é engraçado e não o desastre que se poderia imaginar, diante da sombra gigantesca de Robin Williams, o dublador do personagem original animado. Pois é. Há bons motivos para ficar entusiasmado com este filme que parecia ter um destino um tanto incerto.
John Wick 3 aumenta a ação, mas pausa a franquia para criar “universo”
John Wick, um ex-assassino profissional (o melhor de todos), voltou à ativa para vingar seu cachorro no longa original. Depois, o personagem de Keanu Reeves precisou encarar as consequências de seus atos, enfrentar a máfia italiana e sobreviver ao segundo filme (o melhor de todos), só para encher os fãs de expectativa para uma terceira parte que prometia ser colossal. Afinal, John Wick termina o filme anterior com a cabeça à prêmio e assassinos do mundo inteiro interessados na recompensa. A trégua da luta épica entre o protagonista e a morte certa é de apenas uma hora. Após isso, não há para onde fugir. E é exatamente no fim dessa paz momentânea que começa “John Wick 3: Parabellum”. É John contra o mundo. Agonizante, sem saída com a morte à espreita e esperando para dar o bote, e ainda assim um protagonista incansável, sem pausar nem por um segundo desde o começo da caçada do filme passado. E enfrentando os mais variados e criativos ataques, de facas e machados até livros (!) e coices de cavalos. Assim começa “John Wick 3”, tenso, divertidíssimo, sugerindo o filme de ação mais espetacular de todos os tempos. Mas a promessa não se confirma, porque o diretor Chad Stahelski tem planos. Ele quer ampliar a franquia e criar um universo que pretende ser mais que uma história de tiros e pancadarias. Com isso, abandona pela metade as lições de “Mad Max: Estrada da Fúria” e “Missão: Impossível – Fallout”, thrillers de tramas simples, que impulsionam sua narrativa via ação. Com pouquíssimas palavras, são filmes que só não são mudos porque são barulhentos demais. Há uma mudança brusca no ritmo quando o Sr. Wick encontra as personagens de Anjelica Huston, Halley Berry e outros, que pausam a ação para conduzir o protagonista do nada a lugar nenhum – ou o deserto – em sua jornada. O objetivo é claramente povoar a franquia com novos personagens e elementos para as continuações. Aliás, sabe o que significa Parabellum? É “prepare-se para a guerra”, subtítulo que mostra a verdadeira intenção do filme, de ser apenas uma preparação, afinal a tal guerra ainda não começou. Sim, teremos o já confirmado “John Wick 4”. O que não tira o mérito de Keanu Reeves no papel que ele nasceu para fazer. O cara é uma lenda. E mesmo aos trancos e barrancos, ele sustenta bem o filme. Felizmente, o longa também é recheado por ótimas cenas de ação, como o “pega pra capar” (literalmente) com os dois cachorros da personagem de Halle Berry – que tem aqui seu momento mais relevante no cinema desde seus dias de Bond girl. E há uma clara tentativa de compensar a enrolação com um clímax gigantesco com tiroteios e lutas intermináveis, que entretanto não repetem o impacto do começo do filme, justamente porque são… intermináveis. Mas, ok, quem encarou a fila para ver o terceiro John Wick já sabe o que esperar, e os fãs recebem o que pagaram. A ação intensa é o que “Parabellum” tem de melhor. A diferença é que desta vez há uma pausa para ir ao banheiro no meio dos tiros.
Crime de O Caravaggio Roubado não compensa
Depois de “Viva a Liberdade”, em 2013, e “As Confissões”, em 2016, o cineasta italiano Roberto Andò vem com um suspense cheio de mistérios e coisas a serem descobertas pouco a pouco. O fio condutor é um crime ocorrido há 50 anos, numa capela de Palermo, na Sicília, o roubo da pintura Nativitá, de Caravaggio, que segue sem solução. Não seja por isso, a ficção se encarrega de criar uma história que envolve uma escritora fantasma de um roteirista bem sucedido, que é conhecida apenas como secretária de um produtor de cinema. Ela tem acesso a uma oferta de uma história espetacular, mas muito perigosa. Vai dar na máfia, claro. Afinal, estamos em Palermo. Uma trama intrincada vai se desenvolvendo. Nada, ou pouco, se dá a conhecer à primeira vista. O quebra-cabeças vai se formando, fazendo sentido, e trazendo muitos outros elementos à trama. Em especial, pelos relacionamentos que se estabelecem e se transformam, dando ritmo aos eventos. “O Caravaggio Roubado” tem boas sequências, é visualmente bonito, tem ótimos desempenhos, mas se perde na falta de fluidez. Há uma preocupação excessiva em permanecer num clima de mistério constante que, se estimula de um lado, cansa de outro. Tensão e enigma não faltarão aos espectadores que forem ver o filme. O grande destaque vai para a protagonista Valéria, desempenho excelente de Micaela Ramazzotti (atriz de “Loucas de Alegria”), e para o papel de Renato Carpentieri (“Corpo Celeste”), muito bom. Alessandro Gassman (filho do lendário ator Vittorio Gassman) está num papel menor, mas central da trama, como o roteirista Alessandro Paes. O filme conta, ainda, com a participação especial do grande cineasta polonês Jerzy Skolimovski (“Matança Necessária”).
A Grande Dama do Cinema é homenagem surpreendente a Crepúsculo dos Deuses
O título em português de “A Grande Dama do Cinema”, que batiza o filme argentino “El Cuento de las Comadrejas”, enfatiza uma das características do novo trabalho de Juan José Campanella: a homenagem ao clássico de Billy Wilder “Crepúsculo dos Deuses” (Sunset Boulevard, 1950). Esse filme seminal de Wilder é sempre lembrado como referência ou reencenado, como é o caso do musical teatral que está em cartaz em São Paulo. “A Grande Dama do Cinema” retoma essa história. Mas não se limita a trazê-la para a Argentina atual com seus personagens – a atriz, o diretor, o roteirista, agora envelhecidos, que perderam o sucesso nos anos 1970, quando vigorava a ditadura militar no país – , como acrescenta inúmeros outros elementos e situações. O marido aparece como ator e em cadeira de rodas, como um novo personagem, o quarto da trama. E, para abordar a questão da diferença geracional, um casal de jovens entra nas relações, trazendo os conceitos capitalistas de lucro máximo e ética mínima, ou nenhuma, ao contexto. Ou seja, o ponto de partida é claro, o de chegada, não. O filme de Campanella surpreende em muitos aspectos. Faz um passeio pelos gêneros cinematográficos, de forma muito competente e segura. Com muito ritmo, passa da comédia ao drama e ao suspense, com um roteiro muito rico e bem engendrado. Os diálogos, que compõem um relacionamento corrosivo, sarcástico e competitivo entre os personagens, são admiráveis, inteligentes, divertidos, tocam nas feridas, provocam e, ao mesmo tempo, esclarecem os fatos. As artimanhas dos personagens fazem jus ao seu passado glorioso, jogos exigem planejamento, ensaios e atuações para enfrentar a situação-problema que vivem no momento. O final “natural” versus o final concebido para virar o jogo é um dos grandes trunfos do filme. Há muitas sequências interessantes para se apreciar. Em uma delas, Mara fala, enquanto um filme, com seu rosto jovem, aparece projetado, os rostos e lábios se superpõem e se descolam, unindo passado e presente. A forma como se constrói a narrativa que resulta em um assassinato e a disputa por um antídoto para um veneno é realizada com perfeição. O cineasta Juan José Campanella já é bem conhecido e faz sucesso no Brasil há um bom tempo. Quem não viu “O Filho da Noiva”, de 2001, “Clube da Lua”, de 2004, e o fabuloso “O Segredo dos Seus Olhos”, de 2009? Ele é um grande talento do cinema contemporâneo de nossos hermanos, com quem rivalizamos tanto no futebol, mas de quem gostamos muito no cinema. No caso deste filme, é importante destacar o incrível trabalho do elenco, brilhante, e de quem Campanella extraiu o melhor. A grande atriz Graciela Borges vive Mara Ordóz, uma antiga diva das telas, que vive de lembranças e objetos de seu sucesso, em que se destaca um “Oscar”, pesado a ponto de ser responsável por uma morte (lembremos que Campanella levou o Oscar de filme estrangeiro por “O Segredo dos Seus Olhos”). A escadaria que notabilizou Gloria Swanson como Norma Desmond, em “Crepúsculo dos Deuses”, é coadjuvante do notável desempenho de Graciela. Mas seus parceiros de cena alcançam também grandes performances: Luis Brandoni, como Pedro, o marido de Mara, Oscar Martinez, como Norberto, o diretor, com quem ela sempre trabalhou. E o roteirista desta história passada de êxito, Martin, é vivido pelo grande Marcos Mundstock. Talvez nem todo mundo saiba que Marcos Mundstock é um multiartista, músico, escritor e comediante, um dos fundadores de um grupo extraordinário de música e humor, chamado Les Luthiers, que encanta as plateias de língua espanhola, por toda a América e Espanha, há 40 anos. Infelizmente, é pouco conhecido no Brasil. Mas seu humor sarcástico, muito característico no Les Luthiers, está magnificamente bem aproveitado em “A Grande Dama do Cinema”. Além deles, o casal de jovens atores, Clara Lago, como Bárbara, e Nicolás Francella, como Fernando, não se intimida diante dos veteranos talentos com quem contracenam, dando conta do recado muito bem.
A Espiã Vermelha simplifica questões profundas com romantismo de época
Quando se fala de espionagem, a ideia imediatamente associada a ela é a de traição. Traição a seu país, à sua causa política, aos seus companheiros de trabalho ou militância, a seus amores, amigos, familiares. Mas o mundo é complexo e muitos elementos entram nessa equação. Por exemplo, num tempo de guerra, há alianças. Será correto que um país aliado esconda informações essenciais do outro? A lealdade a um país não poderia ser um entrave ao equilíbrio necessário para reconquistar a paz mundial? No terreno das relações pessoais, como amar e se dedicar a alguém que professa teses arriscadas, que soam parciais ou manipuladas? Enfim, é possível e desejável dormir com o inimigo? É justo excluir amigos e familiares de informações que podem colocá-los em risco? Por outro lado, deixá-los na ignorância pode ser uma forma de protegê-los? E aos companheiros de militância política ou científica é possível omitir ou compartilhar dados sigilosos? Em que medida e com que objetivo? Todas essas questões perpassam a leitura do romance “A Espiã Vermelha” (Red Joan), de Jennie Rooney, uma criação inspirada em fatos e personagens reais da história, no Reino Unido, no período que antecedeu a 2ª Guerra Mundial, passou por toda a conflagração e continuou após a bomba atômica, em Hiroshima, e a vitória dos aliados ocidentais e da União Soviética. A personagem da espiã Joan Stanley é complexa e cheia de nuances, sentimentos, valores, lealdades pessoais e políticas. É inspirada livremente na espiã britânica Melita Norwood, que agiu municiando a União Soviética de informações sigilosas. Só foi descoberta 50 anos após, quando já contava com 87 anos de idade, levando uma vida calma e tranquila nos subúrbios londrinos, viúva e com um filho advogado. O filme homônimo, de Trevor Nunn, adapta essa história surpreendente e atraente, respeitando a proposta do livro, mas reduzindo significativamente o impacto político e a força que esse envolvimento tem na vida da personagem principal e de seus contatos mais importantes. O comunismo como ideia-força dessa juventude retratada, o papel heroico e ambíguo de Stalin na guerra (haja visto o pacto de não-agressão firmado com Hitler), a opressão que se seguiu, assim como o papel do Reino Unido como aliado preferencial dos norte-americanos, porém, reticente em relação aos soviéticos, o rompimento do que restava do pacto civilizatório com o ataque brutal da bomba em Hiroshima e Nagasaki e o desequilíbrio do mundo com a emergência da superpotência dos Estados Unidos, tiveram um papel de fundamental relevo na trama. Isto é claro no livro, mas tímido no filme. Os elementos românticos da narrativa são mais explorados pelo filme do que talvez fosse necessário. Parece que houve uma preocupação de tornar mais palatável ao grande público uma trama que deixasse a contextualização política num plano mais geral, sem entrar em muitos detalhes. No entanto, a espionagem em si é apenas um elemento do sentimento político reinante naquele período da história. Não é o centro dela, embora seja o elemento detonador que une o presente ao passado. Evidentemente, o nome da grande atriz inglesa Judi Dench, que faz Joan idosa nos dias atuais, vai atrair o público aos cinemas. Seu papel, porém, é relativamente pequeno, já que o maior tempo é dedicado ao relembrar do passado que está sub judice da Joan jovem, papel de Sophie Cookson, que está bem, mas não passa a densidade política que a personagem precisaria ter. O elenco como conjunto é muito bom, a produção é bem cuidada, a caracterização de época é ótima, oferecendo um programa cinematográfico de boa qualidade. Mas o livro que inspirou o filme, lançado pela editora Record, aprofunda questões que “A Espiã Vermelha”, no cinema, não conseguiu explorar suficientemente.











