Retrospectiva | Os 15 melhores filmes brasileiros de 2023
O cinema brasileiro sofreu com a falta de regulamentação de cotas em 2023. A maioria dos lançamentos ficou só uma semana em cartaz e até as maiores bilheterias viram o número de salas desabar após a estreia. Mas se alguns dos melhores filmes foram pouco vistos, não faltaram produções de qualidade, premiadas em festivais nacionais e internacionais. O listão destaca thrillers de ação, dramas politizados, documentários e cinebiografias. PEDÁGIO Com apenas dois longas, a brasileira Carolina Markowicz já é uma diretora reconhecida no circuito internacional. Seu primeiro longa-metragem, “Carvão”, foi selecionado para festivais renomados como Toronto e San Sebastián, estabelecendo sua reputação como uma cineasta inovadora e corajosa, e “Pedágio” repetiu a dose, inclusive com direito a prêmio, o Tribute Award, no Festival de Toronto como talento emergente. A obra emerge como um poderoso drama repleto de angústia e embate familiar, centrado em Suellen, uma cobradora de pedágio na estrada de Cubatão, que busca fazer dinheiro para financiar a participação de seu filho, Tiquinho, em uma controversa terapia de “cura gay”. O elenco, liderado por Maeve Jinkings (“Os Outros”), traz uma performance notável, capturando a essência de uma mãe dilacerada pelo conflito entre o amor pelo filho e as pressões sociais. O novato Kauan Alvarenga (que trabalhou no curta “O Órfão”, da diretora), por outro lado, dá vida a Tiquinho com uma mistura de vulnerabilidade e força, representando a juventude LGBTQIAP+ que luta por aceitação e amor em uma sociedade hostil, dominada por dogmas religiosos. “Pedágio” se destaca também por sua abordagem técnica, com cenários que refletem a solidão dos personagens e uma trilha sonora que aprimora a experiência emocional do filme. O elenco ainda inclui Thomás Aquino (também de “Os Outros”), Aline Marta Maia (“Carvão”) e Isac Graça (da série portuguesa “Três Mulheres”). O SEQUESTRO DO VOO 375 O filme de ação dirigido por Marcus Baldini (“Bruna Surfistinha”) é baseado em um caso real ocorrido no Brasil durante a década de 1980, marcada por instabilidades econômicas e políticas. A trama gira em torno de Nonato (interpretado por Jorge Paz), um homem humilde do Maranhão frustrado com a falta de oportunidades e decepcionado com as promessas políticas não cumpridas. Em um ato de desespero, Nonato decide sequestrar um avião e jogá-lo contra o Palácio do Planalto, em Brasília, com o objetivo de assassinar o presidente José Sarney. O filme retrata a jornada de Nonato, sua determinação em cumprir a ameaça nos céus e o embate com o comandante Murilo (vivido por Danilo Grangheia), que se destaca na trama por suas habilidades de pilotagem e ações heroicas para salvar os passageiros. As cenas se desenrolam principalmente dentro do espaço claustrofóbico do antigo avião da VASP, mantendo a tensão durante toda a narrativa. A cinematografia e a direção habilmente capturam a emoção e o desespero dos personagens, alternando entre as expressões de Nonato, o comandante Murilo e os passageiros ansiosos. Apesar de alguns momentos em que os efeitos especiais evidenciam se tratar de uma produção brasileira (isto é, sem orçamento hollywoodiano), o filme mantém o espectador engajado com a história e a ação. A abordagem de Baldini faz mais que resgatar um dos momentos mais dramáticos da aviação brasileira, que, apesar de sua magnitude, permaneceu relativamente desconhecido do grande público. A obra também oferece uma narrativa profunda e humana por meio da interação entre os personagens principais, Nonato e Murilo, mostrando o potencial do cinema brasileiro para produzir obras dramáticas com suspense de alta qualidade. NOITES ALIENÍGENAS O grande vencedor do Festival de Gramado de 2022 traz um tema bastante atual: o impacto das facções criminosas na Amazônia, ameaçando a vida local. A trama se passa na periferia de Rio Branco, Acre, onde as vidas de três jovens amigos de infância se entrelaçam e, por fim, encontram-se em uma tragédia comum, em uma sociedade em transformação e impactada de forma violenta com a chegada do crime organizado na região. O longa de estreia de Sérgio de Carvalho (da série “O Olhar que Vem de Dentro”) venceu seis Kikitos em Gramado, incluindo Melhor Filme e três troféus de atuação, divididos entre Gabriel Knoxx (Melhor Ator), Chico Diaz (Melhor Ator Coadjuvante) e Joana Gatis (Melhor Atriz Coadjuvante), além de uma Menção Honrosa para Adanilo Reis (“Segunda Chamada”). MEDUSA O premiado filme de Anita Rocha da Silveira (“Mate-Me por Favor”) venceu o Festival de Rio e conquistou troféus em festivais internacionais importantes como San Sebastián, Sitges e Raindance. Num paralelo com a punição de Medusa pela deusa Atena, por não ser mais pura, a trama acompanha a jovem Mariana (Mari Oliveira, também de “Mate-Me por Favor”) numa cidade onde deve se esforçar ao máximo para manter a aparência de que é uma mulher perfeita. Para não cair em tentação, ela e suas amigas tentam controlar tudo e todas à sua volta. Num clima dominado pelo conservadorismo, a gangue de meninas “cristãs” assume para si a tarefa de punir as devassas, que fazem sexo fora do casamento, levando terror às ruas. O registro em tom de fábula neon do neoconservadorismo brasileiro conta com grande elenco global, incluindo Lara Tremouroux (“Rota 66: A Polícia que Mata”), Joana Medeiros (“Tropa de Elite”), Felipe Frazão (“Todxs Nós”), Bruna Linzmeyer (“O Grande Circo Místico”), Thiago Fragoso (“Travessia”) e João Oliveira (“Malhação”). TIA VIRGINIA O segundo longa de Fabio Meira (“As Duas Irenes”) venceu oito troféus no Festival de Gramado de 2023, incluindo o prêmio da Crítica e o de Melhor Atriz para Vera Holtz, que interpreta a personagem-título. A Tia Virgínia é uma senhora que, por não seguir os caminhos tradicionais de casamento e maternidade, assumiu o cuidado da mãe enferma. Sua rotina pacata é interrompida na véspera de Natal pela chegada de suas irmãs Vanda e Valquíria, interpretadas respectivamente por Arlete Salles e Louise Cardoso, além de familiares (Antônio Pitanga e outros), que se reúnem para festejar, mas desencadeiam uma série de conflitos e ressentimentos. Toda a história se desenrola num único dia, marcado pelos confrontos, tanto físicos quanto verbais, que destacam a disfuncionalidade da família e a maneira como essas relações moldaram a personagem principal. A casa, cheia de objetos e decorações que remetem a um passado que já não existe, simboliza o estado mental de Virgínia, que se recusa a aceitar o declínio de sua mãe e a realidade de sua situação. Para complicar, a casa e os pertences da matriarca são pontos de interesse para as irmãs, embora Virginia acredite que tenha mais direito por ter aberto mão da liberdade e de sonhos não realizados. A direção de arte premiada de Ana Mara Abreu confere à casa uma presença quase anímica, enriquecendo o cenário onde os dramas familiares se desenrolam. O roteiro premiado de Fabio Meira aborda de maneira sensível e crítica uma realidade comum na sociedade: o papel culturalmente imposto às mulheres como cuidadoras primárias no âmbito familiar, muitas vezes em detrimento de suas próprias vidas e aspirações. Virgínia reflete a figura de inúmeras mulheres que assumem a responsabilidade pelo cuidado de parentes enfermos ou idosos, um papel que frequentemente é esperado delas devido a normas de gênero enraizadas. Este aspecto do filme ressoa profundamente, evidenciando não só a dedicação e sacrifício da protagonista, mas também a complexidade e o peso emocional que acompanham essa escolha muitas vezes imposta, não escolhida. O filme também dá a Vera Holtz o melhor papel de sua carreira. Reconhecida por sua versatilidade e profundidade emocional em papéis anteriores, a atriz encarna a personagem-título com uma entrega que transita entre a força e a delicadeza, marcada por nuances que evidenciam não apenas o peso da responsabilidade que carrega como cuidadora, mas também suas camadas mais íntimas de frustração, amor e resiliência. NOSSO SONHO Maior bilheteria nacional do ano, o filme biográfico narra a história de Claudinho e Buchecha, interpretados pelos atores Lucas Penteado (“BBB 21”) e Juan Paiva (“Um Lugar ao Sol”). A produção conta como uma amizade de infância se tornou icônica, apresentando os desafios pessoais de Claudinho (Penteado) e Buchecha (Paiva), dos bastidores da fama às dificuldades enfrentadas rumo ao sucesso, antes do final trágico da dupla, com a morte de Claudinho num acidente de trânsito em 2001. A história é contada sob visão de Buchecha, que insistiu para que Claudinho aceitasse formar uma dupla. O destino dos artistas começa a ser traçado quando sua primeira música toca numa rádio local e eles assinam contrato nos anos 1990. A história dirigida por Eduardo Albergaria (“Happy Hour”) ainda é marcada por hits que marcaram época, como “Só Love”, “Coisa de Cinema” e a homônima “Nosso Sonho”, que embalam a trama. O elenco também conta com Tatiana Tiburcio (“Terra e Paixão”), Nando Cunha (“Os Suburbanos”), Clara Moneke (“Vai na Fé”), Antônio Pitanga (“Amor Perfeito”) e Isabela Garcia (“Anos Dourados”) entre outros. Há algumas simplificações narrativas, mas “Bohemian Rhapsody” cometeu os mesmos pecados. “Nosso Sonho” ainda compartilha os mesmos acertos do filme sobre Freddie Mercury, ao enfatizar a emoção de seus personagens, que de forma catártica também emociona o público. PROPRIEDADE Suspense em um contexto de tensão social, o filme brasileiro acompanha Teresa (interpretada por Malu Galli, de “Desalma”), cuja vida se transforma após um assalto traumático. Buscando tranquilidade, seu marido a leva para a fazenda da família em um carro blindado. Lá, eles enfrentam uma revolta dos trabalhadores, que reagem à perda iminente de seus empregos. A situação se agrava quando Teresa fica isolada dentro do veículo blindado, enquanto os trabalhadores protestam contra a decisão de transformar a fazenda em um resort. O início do filme, marcado por uma cena violenta gravada em vídeo de celular, estabelece o tom e aprofunda o trauma de Teresa. Este evento define seu caráter e suas ações subsequentes. O diretor Daniel Bandeira (“Amigos de Risco”) explora a dinâmica entre a proprietária e os trabalhadores da fazenda, destacando a crescente desesperança e a espiral de violência. Os trabalhadores, embora retratados em sua maioria como um grupo enfurecido, também têm seus momentos de dor e aspirações por um futuro melhor. A produção é eficaz como um thriller de sobrevivência, criando cenas de tensão e desconforto, especialmente em torno do carro blindado, que se torna tanto um refúgio quanto uma prisão para Teresa. Mas também é um filme de gênero que desafia o espectador a contemplar as nuances da luta de classes e suas implicações em uma sociedade fragmentada. CASA VAZIA O drama gaúcho oferece uma visão diferente dos pampas, ao acompanhar a vida de Raúl, um peão desempregado e pai de família que vive em uma casa isolada na imensidão solitária dos campos do Rio Grande do Sul. Assolado pela pobreza e a falta de trabalho, ele se junta a outros peões para roubar gado durante a escuridão. Mas uma noite, ao retornar da atividade criminosa, encontra sua casa vazia: sua mulher e filhos desapareceram. Com uma narrativa marcada por silêncios e uma sensação de isolamento, o filme oferece uma reflexão sobre a incomunicabilidade masculina e a impossibilidade de exteriorizar sentimentos e afetos – com Raúl constantemente olhando de forma melancólica para o nada. A trama também aborda a questão latifundiária, mostrando Raúl vivendo os dois lados da disputa. Estudo de personagem, a obra mostra a relação do peão com o ambiente ao seu redor, sendo engolido pelas vastas terras gaúchas. E para apresentar o universo regional de maneira muito autêntica, o ator principal, Hugo Nogueira, é um morador da região, escolhido pelo diretor Giovani Borba (“Banca Forte”) para fazer sua estreia como ator. Nogueira acabou premiado no Festival de Gramado, assim como o roteiro e a fotografia do longa. MUSSUM, O FILMIS Vencedora do Festival de Gramado de 2023, a cinebiografia retrata a vida de Antônio Carlos Bernardes Gomes (1941-1994), o eterno Mussum. A narrativa é segmentada em três fases da vida do humorista: infância, onde é vivido por Thawan Lucas (“Pixinguinha, Um Homem Carinhoso”), juventude, por Yuri Marçal (“Barba, Cabelo e Bigode”), e a fase de sucesso, por Aílton Graça (“Galeria do Futuro”). Dirigido por Sílvio...
“Megatubarão 2” é principal estreia de cinema da semana
A semana com o maior número de estreias de cinema no ano – 16 filmes! – tem como principal lançamento o trash de grande orçamento “Megatubarão 2”, mas também destaca a obra-prima “The First Slam Dunk”, anime com 100% de aprovação no Rotten Tomatoes, e duas comédias americanas, a elogiada “Loucas em Apuros” e a lamentada “Guerra entre Herdeiros”. Quase metade da lista – 7 filmes – é composta por longas brasileiros. E há 6 documentários, incluindo internacionais. Confira a relação completa dos lançamentos desta quinta-feira (3/8): MEGATUBARÃO 2 A continuação do filme de 2018 volta a trazer Jason Statham (“Velozes e Furiosos: Hobbs & Shaw”) contra tubarões gigantes. Desta vez, ele se depara com três tubarões pré-históricos e conta com a ajuda de Wu Jing (“Comando Final”), uma estrela enorme na China que atuou em blockbusters como “The Wandering Earth”, “Wolf Warrior” e “The Battle at Lake Changjin”. A dupla embarca numa jornada subaquática até o fundo do oceano para investigar novas criaturas, mas também acaba encontrando terroristas marinhos e todos terminam avançando rumo a um destino turístico à beira-mar. É claro que muitas pessoas acabam nas mandíbulas dos tubarões, mas até chegar lá o filme não economiza enrolação. A sequência foi confirmada pouco depois de “Megatubarão” ter arrecadado US$ 530 milhões em todo o mundo em 2018. O filme original seguia um grupo de cientistas cujo submarino foi atacado por um Megalodon – uma espécie de tubarão gigante que se pensava estar extinta. A continuação triplica a ameaça e ainda inclui um bônus gigante com tentáculos. “Megatubarão 2” conta ainda com a volta de Cliff Curtis (“Avatar: O Caminho da Água”), mas não dos outros sobreviventes do primeiro filme, substituídos por Sienna Guillory (“Resident Evil: Apocalypse”), Skyler Samuels (“Masquerade”), Page Kennedy (“A Hora do Rush”), Shuya Sophia Cai (“Somewhere Only We Know”) e Sergio Peris-Mencheta (“Rambo: Até o Fim”). O filme é baseado no segundo volume de uma franquia literária criada pelo escritor Steve Alten em 1997. A adaptação foi escrita pelos mesmos roteiristas do primeiro filme, Dean Georgaris (“Desejo de Matar”) e os irmãos Erich e Jon Hoeber (“Battleship”), e a direção está a cargo de Ben Wheatley (“Rebecca – A Mulher Inesquecível”). THE FIRST SLAM DUNK Adaptação cinematográfica do popular mangá “Slam Dunk”, o anime foi escrito e dirigido pelo próprio criador dos quadrinhos, Takehiko Inoue. A trama se concentra na equipe de basquete do Ensino Médio Shohoku, que compete pelo campeonato nacional. Ao contrário da tradição dos dramas de esportes, que guardam o grande jogo para o final, a trama inteira do desenho se desenrola ao longo de um único jogo, intercalado com flashbacks que oferecem uma visão mais profunda da vida dos jogadores, com destaque para o armador Ryota e o ala-pivô egocêntrico Hanamichi. A representação do basquete é um dos pontos altos do filme, capturando a fisicalidade explosiva do esporte através de uma combinação de imagens geradas por computador e animação tradicional desenhada à mão. A ação é fluida e realista, com movimentos dos jogadores que lembram a realidade do esporte, desde a captura de passes até a realização de enterradas. A trilha sonora complementa a ação, imitando perfeitamente o som de uma bola ao sair das pontas dos dedos de um jogador até gerar um estrondo sísmico a cada enterrada. Apesar de ser uma adaptação de um mangá que abrange 31 volumes, e que rendeu uma série com 101 episódios nos anos 1990, “O Primeiro Slam Dunk” consegue condensar a essência da história no filme de duas horas, encontrando uma forma inovadora de fornecer uma compreensão mais profunda de seus personagens, ao mesmo tempo em que serve uma série implacável de jogadas e reviravoltas capazes de fazer os fãs de esportes pularem nas poltronas. LOUCAS EM APUROS A comédia de viagem acompanha quatro amigas asiático-americanas em apuros na China. Estreia na direção de Adele Lim, roteirista de “Podres de Ricos” e “Raya e o Último Dragão”, o filme gira em torno de Audrey (Ashley Park, de “Emily em Paris”), uma advogada criada por pais americanos que decide procurar sua mãe biológica em Pequim. Acompanhando Audrey está sua melhor amiga Lolo (Sherry Cola, de “Good Trouble”), uma artista que usa sua arte erótica para desafiar estereótipos e a fetichização dos asiáticos, Kat (Stephanie Hsu, de “Maravilhosa Sra. Maisel”), uma atriz que trabalha em uma popular telenovela chinesa e está tentando esconder sua extensa lista de ex-parceiros de seu noivo super cristão, e a lacônica Deadeye (Sabrina Wu, de “Doogie Kamealoha: Doutora Precoce”), uma fã obcecada de K-pop. A narrativa é impulsionada pelas diferenças de temperamento e personalidade das protagonistas, além da forma diferente com que cada uma lida com sua herança cultural chinesa. Mas o que realmente chama atenção na comédia é o tom escrachado, repleto de momentos ultrajantes, incluindo piadas escatológicas. A crítica americana se divertiu, dando 91% de aprovação no Rotten Tomatoes. GUERRA ENTRE HERDEIROS A comédia sombria de humor cáustico acompanha as irmãs Macey (Toni Collette, de “Hereditário”) e Savanna (Anna Faris, de “Mom”), que, à beira da ruína financeira, veem uma oportunidade de salvação na notícia da doença terminal de sua tia rica Hilda (Kathleen Turner, de “O Método Kominsky”). Savanna, a irmã mais inescrupulosa, convence Macey a tentar se aproximar da tia, na esperança de serem incluídas em seu testamento. No entanto, ao chegarem à casa de Hilda, descobrem que seus primos igualmente sem escrúpulos tiveram a mesma ideia. A trama se desenrola como uma disputa de bajulação para ver quem aquece o coração frio da tia moribunda, assumindo um tom mordaz e exagerado sobre a ganância familiar. Rosemarie DeWitt (“A Escada”) e David Duchovny (“Arquivo X”) vivem os primos. Já roteiro e direção são de Dean Craig, conhecido por escrever a comédia “Morte no Funeral” (2010). Apesar da premissa curiosa e do bom elenco, o longa foi destruído pela crítica dos EUA, com apenas 30% no Rotten Tomatoes. DISCO BOY – CHOQUE ENTRE MUNDOS O primeira drama do documentarista italiano Giacomo Abbruzzese (“America”) mergulha na vida da Legião Estrangeira Francesa, com uma abordagem que oscila entre o real e o onírico, e traz como destaque a interpretação do alemão Franz Rogowski (“Undine”), conhecido por suas atuações intensas e versáteis no cinema europeu. Rogowski vive Aleksei, um andarilho bielorrusso marcado por tatuagens de prisão, que embarca em uma jornada arriscada em direção à França para se juntar à Legião Estrangeira. Lá, encontra um grupo diversificado de indivíduos de várias nacionalidades, todos em busca de uma oportunidade para obter a cidadania francesa. Durante uma missão de resgate de reféns na Nigéria, Aleksei encontra o rebelde Jomo (Morr Ndiaye) e o filme toma um rumo sombrio, transformando-se em uma história de fantasmas pós-colonial, conduzida pelas visões e emoções do protagonista. Ao voltar a Paris, ele encontra Udoka (Laëtitia Ky), irmã de Jomo, e a interação entre os dois personagens passa a refletir a inquietação típica dos imigrantes, levando o filme a explorar temas de identidade, pertencimento e a busca por um lugar no mundo. ALÉM DO TEMPO Drama marcado por tragédia, o filme holandês se passa em dois tempos. Nos anos 1980, um casal, Lucas e Johanna, decide navegar pelo mundo com o seu pequeno filho. No entanto, em meio à travessia do Atlântico, a criança desaparece. A dor do luto é insuportável e os afasta, levando-os a caminhos distintos. Décadas depois, Lucas, que se tornou um famoso diretor de teatro, decide explorar esse trauma no palco, provocando a fúria de Johanna. Essa decisão marca o reencontro do ex-casal, 40 anos após a tragédia, quando percebem que o tempo não conseguiu cicatrizar todas as feridas deixadas pela perda do filho. As diferenças em como lidaram com a dor e o luto se revelam, mostrando o profundo abismo emocional que os separou. A história é baseada em um acontecimento real e também marcou a volta do cineasta Theu Boermans à direção de um longa-metragem, quase três décadas após sua estreia premiada com “1000 Rosen” (1994). DEPOIS DE SER CINZA O drama dirigido por Eduardo Wannmacher combina registros de afeto com momentos de estranheza e desconforto. Sua história explora a jornada emocional de Isabel, uma jovem artista plástica que decide largar tudo para buscar uma nova vida na Croácia. Após cinco anos vivendo no país balcânico, Isabel sofre um grande trauma e, nesse momento, conhece Raul, um homem ainda mais atormentado que ela. A trama mostra o envolvimento da jovem com Raul, antes de revelar em flashbacks seu passado com outras duas mulheres, Suzy e Manoela, contrastando momentos de descontração e prazer com situações de desconforto e tristeza. Marcado por ideias de fuga, abandono e suicídio, o filme se revela um retrato fragmentado de personagens deprimidos, carregando segredos ou insatisfações crônicas. Ao mesmo tempo, evita os clichês do melodrama, do erotismo e do imaginário da depressão. O longa se destaca pela atuação coesa do elenco, que inclui Elisa Volpatto (“Bom Dia, Verônica”), João Campos (“A Lei do Amor”), Branca Messina (“A Divisão”) e Sílvia Lourenço (“Modo Avião”). DESPEDIDA Fantasia infantil brasileira, o longa da dupla gaúcha Luciana Mazeto e Vinicius Lopes (ambos de “Irmã”) acompanha Ana (interpretada por Anaís Grala Wegner, também de “Irmã”), uma menina de 11 anos que viaja para o Sul rural do país durante o feriado de Carnaval para o funeral de sua avó (Ida Celina, de “Disforia”). A partir daí, a história se desenrola em um mundo de fantasia e mistério, onde Ana precisa resolver uma antiga desavença familiar e recuperar o mundo imaginário de sua mãe, vivida por Patricia Soso. A narrativa de “Despedida” é construída com elementos lúdicos, com direito até a cenas animadas, mas à medida que a história avança, o roteiro revela complexidade emocional e temática. A intuição de Ana guia a trama, enquanto ela busca dar um final feliz àqueles que ama. O filme também destaca a importância da união feminina na resolução de conflitos, apresentando um elenco majoritariamente feminino. Esteticamente, “Despedida” é notável. O cuidado com o cenário, figurino e efeitos especiais complementa a história e seu misticismo, mergulhando o espectador na fábula e nos dramas familiares. A trama que aborda o luto, as descobertas e a superação reforça o poder da imaginação para entender a realidade e permitir que se siga em frente. CASA VAZIA O filme gaúcho oferece uma visão diferente dos pampas, ao acompanhar a vida de Raúl, um peão desempregado e pai de família que vive em uma casa isolada na imensidão solitária dos campos do Rio Grande do Sul. Assolado pela pobreza e a falta de trabalho, ele se junta a outros peões para roubar gado durante a escuridão. Mas uma noite, ao retornar da atividade criminosa, encontra sua casa vazia: sua mulher e filhos desapareceram. Com uma narrativa marcada por silêncios e uma sensação de isolamento, o filme oferece uma reflexão sobre a incomunicabilidade masculina e a impossibilidade de exteriorizar sentimentos e afetos – com Raúl constantemente olhando de forma melancólica para o nada. A trama também aborda a questão latifundiária, mostrando Raúl vivendo os dois lados da disputa. Estudo de personagem, a obra mostra a relação de Raúl com o ambiente ao seu redor, sendo engolido pelas vastas terras gaúchas. E para apresentar o universo regional de maneira muito autêntica, o ator principal, Hugo Nogueira, é um morador da região, escolhido pelo diretor Giovani Borba (“Banca Forte”) para fazer sua estreia como ator. Nogueira acabou premiado no Festival de Gramado, assim como o roteiro e a fotografia do longa. DESTINOS OPOSTOS Melodrama de novela com duração de filme, a obra de Walther Neto (“Sonhos”) evoca os cenários e temas de “Pantanal” ao contar a história de Tony, um homem movido pelo desejo de conquistas, que esconde as memórias de um passado conturbado. Ele é um profissional bem-sucedido que busca ser o maior piloto do rally dos sertões, mas que, ao mesmo tempo, não consegue criar laços, amar e encontrar o seu lugar, graças a...
Festival de Veneza começa com Netflix e clima de Oscar
O Festival de Veneza começa nesta quarta (31/9) sua 79ª edição com a ambição de equilibrar obras de streaming e do circuito de arte, numa iniciativa bem definida que tem consolidado o evento como o início para valer da temporada de premiações que culmina no Oscar. Nos últimos anos, vários filmes introduzidos nas sessões do Palazzo del Cinema acabaram ganhando tração junto à crítica e conquistando troféus da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas dos EUA. E a programação de 2022 é uma das mais impressionantes do festival, com muitos diretores consagrados na disputa do Leão de Ouro. Por sua política de boa vizinhança com a Netflix, Veneza reuniu mais projetos hollywoodianos que o Festival de Cannes, que recusa produções de streaming. A diferença na seleção entre os dois festivais mais prestigiosos do mundo reforça que Cannes está sendo ultrapassado por Veneza como opção de lançamento mundial de grandes títulos e base de projeção para o Oscar. A competição abre oficialmente nesta quarta com a exibição de “Ruído Branco”, novo filme de Noah Baumbach estrelado por Adam Driver e Greta Gerwig, que assim se torna a primeira produção da Netflix a abrir um festival de primeira linha internacional. Baseado no romance homônimo de Don DeLillo (“Cosmópolis”), a produção americana é uma comédia absurda, horripilante, lírica e apocalíptica, que acompanha as tentativas de uma família americana dos anos 1980 para lidar com os pavores da vida cotidiana e a possibilidade de felicidade num mundo incerto. O clima é de desesperança, mas embora a família central esteja em fuga de um nuvem tóxica, o pânico que norteia a trama se deve a uma condição psicológica: um medo exagerado da morte, que acompanha cada passo do protagonista. Adam Driver vive o personagem principal, fazendo sua segunda parceria com Baumbach, após ser indicado ao Oscar por seu desempenho em “História de um Casamento” (2019). Na trama, ele é casado com Greta Gerwig, mulher do diretor do filme, que não atuava numa produção live-action desde “Mulheres do Século 20” (2016) – basicamente, desde que decolou como cineasta com “Lady Bird: A Hora de Voar” (2017). E a produção ainda inclui Don Cheadle (“Vingadores: Ultimato”), Raffey Cassidy (“Tomorrowland”), Jodie Turner-Smith (“Sem Remorso”), Alessandro Nivola (“Os Muitos Santos de Newark”) e seus filhos Sam e May Nivola, entre outros. Na competição pelo Leão de Ouro também está outra produção da Netflix: “Blonde”, de Andrew Dominik, que conta com Ana de Armas no papel de Marilyn Monroe. A lista de novos projetos de grandes cineastas que serão lançados no festival ainda inclui “Bones and All”, de Luca Guadagnino, “The Whale”, de Darren Aronofsky, “Bardo”, de Alejandro González Iñárritu, “The Son”, de Florian Zeller, “Tár”, de Todd Field, “The Eternal Daughter”, de Joanna Hogg, e “The Banshees of Inisherin”, de Martin McDonagh. Embora a maioria desses diretores não seja americana, todos trabalham em Hollywood e participam das premiações de cinema dos EUA. O mexicano Iñárritu, por sinal, tem até dois Oscars de Melhor Filme no currículo – “Birdman” (2016) e “O Regresso” (2016). A competição traz igualmente novos lançamentos dos italianos Emanuele Crialese, Gianni Amelio, Susanna Nicchiarelli e Andrea Pallaoro, dos franceses Roschdy Zem, Romain Gavras, Alice Diop e Rebecca Zlotowski, do japonês Koji Fukada, do argentino Santiago Mitre e dos iranianos Vahid Jalilvand e Jafar Panahi – o último está atualmente preso em seu país. O organizador Alberto Barbera, que se aproveita da presença da obra de Panahi para angariar simpatia política, prefere dizer que o evento é apolítico ao defender a exibição do último filme do sul-coreano Kim Ki-duk, morto em 2020 por covid-19, em meio a denúncias de abuso de atrizes em seus filmes. “Call of God” será apresentado fora de competição. Além dele, outros filmes americanos muito esperados farão suas estreias mundiais fora da competição no festival, como “Não Se Preocupe, Querida”, de Olivia Wilde, “Pearl”, de Ti West, e “Master Gardener”, de Paul Schrader. Na principal mostra paralela ainda destaca “A Noiva”, do diretor brasileiro Sérgio Tréfaut, que participa da competição da seção Horizontes. “A Noiva”, que realiza sua estreia mundial em Veneza no dia 9 de setembro, é uma ficção inspirada em histórias reais de meninas europeias que se casaram com jihadistas do Estado Islâmico, e foi filmada no Curdistão iraquiano. Não bastasse a programação cinematográfica, neste ano também serão apresentadas séries. Dois cineastas consagrados, Lars Von Trier e Nicolas Winding Refn, apresentarão seus novos projetos neste formato: “The Kingdom Exodus” e “Copenhagen Cowboy”, respectivamente. A exibição das dezenas de títulos programados nas mostras principais e paralelas também vai reunir uma constelação de estrelas no tapete vermelho. São esperadas as presenças de Harry Styles, Adam Driver, Timothée Chalamet, Hugh Jackman, Cate Blanchett, Tilda Swinton, Sadie Sink, Greta Gerwig, Ana de Armas, Penelope Cruz, Colin Farrell, (talvez) Florence Pugh e a veterana Catherine Deneuve, que será homenageada com um Leão de Ouro Honorário pela carreira. O Festival de Veneza 2022 vai acontecer até o dia 10 de setembro. Confira abaixo uma lista com alguns dos títulos da programação principal. Mostra Competitiva “Ruído Branco”, de Noah Baumbach “Il Signore delle Formiche”, de Gianni Amelio “The Whale”, de Darren Aronofsky “L’Immensita”, de Emanuele Crialese “Saint Omer”, de Alice Diop “Blonde”, de Andrew Dominik “Tár”, de Todd Field “Love Life”, de Koji Fukada “Bardo”, de Alejandro González Iñárritu “Athena”, de Romain Gavras “Bones and All”, de Luca Guadagnino “The Eternal Daughter”, de Joanna Hogg “Beyond the Wall”, de Vahid Jalilvand “The Banshees of Inisherin”, de Martin McDonagh “Argentina, 1985″, de Santiago Mitre “Chiara”, de Susanna Nicchiarelli “Monica”, de Andrea Pallaoro “No Bears”, de Jafar Panahi “All the Beauty and the Bloodshed”, de Laura Poitras “A Couple”, de Frederick Wiseman “The Son”, de Florian Zeller “Our Ties”, de Roschdy Zem “Other People’s Children”, de Rebecca Zlotowski Fora da Competição Closing Film: “The Hanging Sun”, de Francesco Carrozzini “When the Waves Are Gone”, de Lav Diaz “Living”, de Oliver Hermanus “Dead for a Dollar”, de Walter Hill “Call of God”, de Kim Ki-duk “Dreamin’ Wild”, de Bill Pohlad “Master Gardener”, de Paul Schrader “Siccita”, de Paolo Virzi “Pearl”, de Ti West “Não Se Preocupe, Querida”, de Olivia Wilde Fora da Competição (Não Ficção) “Freedom on Fire: Ukraine’s Fight for Freedom”, de Evgeny Afineevsky “The Matchmaker”, de Benedetta Argentieri “Gli Ultima Giorni Dell’Umanita”, de Enrico Ghezzi, Alessandro Gagliardo “A Compassionate Spy”, de Steve James “Music for Black Pigeons”, de Jorgen Leth and Andreas Koefoed “The Kiev Trial”, de Sergei Loznitsa “In Viaggio”, de Gianfranco Rosi “Bobby White Ghetto President”, de Christopher Sharp and Moses Bwayo “Nuclear”, de Oliver Stone Fora da Competição (Séries) “The Kingdom Exodus”, de Lars von Trier “Copenhagen Cowboy”, de Nicolas Winding Refn
Festival de Veneza é criticado por exibir filme póstumo de Kim Ki-duk
Diferentes entidades cinematográficas estão criticando a organização do Festival de Cinema de Veneza por ter adicionado o filme “Call of God”, do cineasta Kim Ki-duk, à sua programação. Os protestos são alimentados pelo fato de o diretor, morto em 2020 por complicações causadas pela covid-19, ter sido acusado de abuso sexual. “Só porque ele está morto, isso não significa que o que aconteceu desaparecerá de repente”, disse Lee Sang-gil, diretor da Federação Sindical dos Trabalhadores do Cinema Sul-Coreano. “Kim nunca se desculpou com suas vítimas e, em vez disso, negou suas alegações por meio de uma série de ações judiciais. Para as vítimas, seu tempo com Kim permanecerá sempre como uma cicatriz inesquecível em suas carreiras. Nenhuma das vítimas conseguiu se recuperar após os incidentes e voltar a trabalhar em sets de filmagem”. As acusações contra Kim vieram à tona quando ele foi condenado por agressão contra uma atriz durante as filmagens de “Moebius” (2013). A vítima, cuja identidade foi mantida em sigilo, acusou Kim em 2017 de lhe dar três tapas e forçá-la a realizar cenas sexuais sem roupa, que não estavam no roteiro. A acusadora afirmou que Kim forçou-a a pegar o pênis de um ator, apesar de uma garantia anterior de que uma prótese seria usada. Devido a seus protestos, ela foi substituída por outra atriz no filme. O que a levou a entrar na justiça. Na ocasião, o tribunal sul-coreano multou Kim em US$ 4,6 mil por agressão, mas os promotores não consideraram as acusações de abuso sexual, citando a falta de provas. Conforme lembrou a Korea Womenlink, uma organização de advocacia que trabalha para combater a violência contra as mulheres, “embora Kim claramente tenha cometido um crime terrível, ele tentou rastrear a acusadora e processou a vítima por difamação em vez de se desculpar. Mas o Festival Internacional de Cinema de Veneza decidiu exibir seu filme para honrá-lo apesar desse fato, exonerando-o de sua violência sexual.” Kim Ki-duk tem uma relação longa com o Festival de Veneza. Em 2004, ele venceu o Leão de Prata de Melhor Diretor por “Casa Vazia” e, em 2012, levou o Leão de Ouro de Melhor Filme por “Pietá”. E foi essa relação que influenciou a seleção do novo filme do cineasta. Filmado na Estônia, “Call of God” foi finalizado postumamente pelo produtor Artur Veeber. “Quando vimos o filme, ficou claro que estávamos lidando com o último trabalho de Kim Ki-duk”, disse Alberto Barbera, diretor do Festival de Veneza, ao site The Hollywood Reporter. “E ele foi de certa forma descoberto por Veneza, em 2000 com ‘A Ilha’, o que o tornou, imediatamente, um cineasta de filmes de arte muito conhecido em todo o mundo”. Barbera também disse que não poderia deixar passar essa oportunidade, atribuindo a seleção a “uma espécie de fidelidade ao diretor, uma espécie de respeito mútuo e confiança entre o cineasta e o festival” “Sabíamos que ele havia sido acusado de mau comportamento sexual. Não conheço os detalhes e não estou em posição de julgar se é verdade ou não”, continuou Barbera. “Não quero fazer nenhum julgamento sobre um problema pessoal. Acho que muita gente vai se interessar em assistir ao último filme que Kim Ki-duk não conseguiu completar. E acho justo mostrá-lo no festival que provavelmente tem a relação mais longa e profunda com o diretor.” Alberto Barbera não é alheio a reclamações, conforme ele mesmo lembra. “Tivemos que enfrentar a mesma situação, por exemplo, dois anos atrás, quando apresentamos ‘O Oficial e o Espião’ (2019), de Roman Polanski, em competição”, contou. “Acho que o que eu disse na época ainda está de pé. Não somos um tribunal. Não sou um juiz que pode decidir sobre a personalidade de um homem ou de uma mulher. Eu sou um crítico de cinema. Estou aqui para julgar a qualidade do que é submetido ao festival. Acho que essa separação entre o homem e o artista é inevitável. Faz parte da história da arte. Já disse antes que sabemos que [o pintor italiano] Caravaggio era um assassino. Mas ele fez algumas das obras-primas mais importantes da pintura italiana do século 17. O que deveríamos fazer? Tirar as pinturas dos museus porque Caravaggio era um assassino? Eu acho que não. Não estamos aqui para julgar a pessoa ou o homem. Estamos aqui para julgar a qualidade da coisa que ele faz. Às vezes, as pessoas que fazem coisas boas também fazem coisas ruins.” Assim como no caso de “O Oficial e o Espião”, a decisão de Barbera tem causado muita polêmica. “É lamentável que Veneza esteja convidando e comemorando o filme de Kim sem mencionar seus atos como autor de agressão sexual”, disse Choi Eun-min, porta-voz do Deun Deun Center, uma organização que se concentra na prevenção de agressão sexual em sets e no apoio a sobreviventes. “A razão pela qual os perpetradores do #MeToo podem retornar e continuar seu trabalho é porque esses organizadores permanecem em silêncio sobre sua associação com violência sexual e violações de direitos humanos, e elogiam os filmes [dos perpetradores]. Isso pode ser visto como um perdão aos perpetradores pelos seus atos de violência.” Apesar dos protestos, “Call of God” será exibido numa sessão de gala, fora de competição, no dia 6 de setembro.
Festival de Gramado começa celebração de 50 anos
O Festival de Gramado, um dos eventos de cinema mais tradicionais do país, começa nessa sexta-feira (12/8) sua 50ª edição, que exibirá, de forma simbólica, 50 filmes entre longas e curtas. Depois de dois anos sem eventos presenciais, o cinquentenário coincide com o retorno ao formato tradicional, que permitirá o festejado desfile de astros e estrelas no tapete vermelho. Na disputa do Kikito de Melhor Longa-Metragem nacional estão títulos de diretores consagrados, que farão sua première nacional na serra gaúcha. Entre eles, destaca-se o novo filme de Cristiano Burlan (diretor de “Antes do Fim”), “A Mãe”, sobre uma mãe solo (Marcélia Cartaxo) que vive na periferia de São Paulo, volta para casa à noite e não encontra seu filho adolescente. Ela inicia uma busca pelo seu filho, ameaçando assim a tranquilidade dos traficantes locais. A seleção também traz “A Porta ao Lado”, novo trabalho de Julia Rezende (de “Depois a Louca Sou Eu”). O filme narra a história de um casal que começa a questionar o próprio relacionamento depois que conhecem vizinhos que vivem um relacionamento aberto. O cineasta Gabriel Martins (“O Nó do Diabo”) apresenta, com seu filme “Marte Um”, a história de uma família que mora na periferia e tenta viver seus sonhos num país que acaba de eleger como presidente um homem que representa o contrário de tudo que eles são. Outro filme que se relaciona com a realidade política atual é “O Pastor e o Guerrilheiro”, de José Eduardo Belmonte (“Alemão”). A trama acompanha a filha ilegítima de um coronel que comete suicídio. Enquanto conhece mais sobre o homem que não a reconheceu como filha, ela descobre que ele foi um torturador durante a ditadura militar no Brasil. “O Pastor e o Guerrilheiro” pode garantir o segundo prêmio para Belmonte, que já foi premiado em Gramado pelo curta “Tepê” (2000). Do extremo do país, vem o filme acreano “Noites Alienígenas”, do diretor Sérgio de Carvalho (“Empate”). Obra de realismo mágico, o filme aborda o impacto da chegada das facções criminosas do sudeste do Brasil na Amazônia. O novo trabalho de Gregório Graziosi (“Obra”), intitulado “Tinnitus”, narra a história de uma atleta de Saltos Ornamentais que sofre uma crise de tinnitus (zumbido no ouvido) e cai do trampolim. Afastada do esporte, ela troca os saltos por uma pacata vida num aquário, onde trabalha fantasiada de sereia. O único novato da lista é o carioca Angelo Defanti, que escreveu a minissérie de true crime “O Caso Evandro” e agora estreia na direção de ficção com “O Clube dos Anjos”, combinação de culinária e suspense baseada no best-seller dos anos 1990 de Luis Fernando Verissimo. Entre os longas-metragens internacionais, destacam-se “El Camino de Sol”, dirigido por Claudia Sainte-Luce (“La caja vacía”), sobre uma mãe que inicia uma busca frenética para recuperar seu filho sequestrado, “O Último Animal”, co-produção brasileira e portuguesa dirigida por Leonel Vieira, cujo primeiro filme, “A Sombra dos Abutres” (1998), foi premiado em Gramado, e “Cuando Oscurece”, filme argentino/uruguaio dirigido por Néstor Mazzini (“Deixe a Noite Pagar por Isso”), sobre uma menina que pensa estar de férias com o pai, mas na verdade foi sequestrada por ele. Cum uma mostra separada de documentários, Gramado ainda vai exibir “Ademã – A Vida e as Notas de Ibrahim Sued”, novo trabalho do documentarista Paulo Henrique Fontenelle, diretor dos elogiados “Loki: Arnaldo Baptista” (2008), “Dossiê Jango” (2013) e “Cássia Eller” (2014). Fontenelle assina a direção desse novo filme ao lado de Isabel Sued Perrin. Além das sessões de cinema, estão marcadas homenagens ao diretor Joel Zito Araújo, vencedor do Festival de Gramado de 2004 com “Filhas do Vento”, que receberá o Troféu Eduardo Abelin, e à atriz gaúcha Araci Esteves, vencedora do Festival de Brasília de 1997 por “Anahy de las Misiones”, agraciada com o Troféu Cidade de Gramado. O Festival de Gramado vai até 20 de agosto, quando serão conhecidos os trabalhos premiados. Confira abaixo a lista completa dos filmes selecionados. Longas-metragens brasileiros “A Mãe”, de Cristiano Burlan “A Porta ao Lado”, de Julia Rezende “Marte Um”, de Gabriel Martins “Noites Alienígenas”, de Sérgio de Carvalho “O Clube dos Anjos”, de Angelo Defanti “O Pastor e o Guerrilheiro”, de José Eduardo Belmonte “Tinnitus”, de Gregório Graziosi Longas-metragens estrangeiros “9” (Uruguai/Argentina), de Martín Barrenechea e Nicolás Branca “Cuando Oscurece” (Argentina/Uruguai), de Néstor Mazzini “El Camino de Sol” (México), de Claudia Sainte-Luce “Inmersión” (Chile), de Nicolas Postiglione “La Boda de Rosa” (Espanha/França), de Iciar Bollain “La Pampa” (Peru/Chile/Espanha), de Dorian Fernández Moris “O Último Animal” (Portugal/Brasil), de Leonel Vieira Longas-metragens gaúchos “Casa Vazia”, de Giovani Borba “Campo Grande é o Céu”, de Bruna Giuliatti, Jhonatan Gomes e Sérgio Guidoux “Despedida”, de Luciana Mazeto e Vinícius Lope “Don Never Raised – Cachorro Inédito”, de Bruno de Oliveira “5 Casas”, de Bruno Gularte Barreto Documentários “Um Lugar para Chamar de Meu”, de Kelly Cristina Spinelli “Ademã – A Vida e as Notas de Ibrahim Sued”, de Isabel Sued Perrin e Paulo Henrique Fontenelle “Elton Medeiros – O Sol Nascerá”, de Pedro Murad “Eu Nativo”, de Ulisses Rocha “O Destino Está na Origem”, de Pedro de Castro Guimarães Curtas-metragens brasileiros “Benzedeira”, de Pedro Olaia e San Marcelo “Deus Não Deixa”, de Marçal Vianna “Fantasma Neon”, de Leonardo Martinelli “Imã de Geladeira”, de Carolen Meneses e Sidjonathas Araújo “Mas Eu Não Sou Alguém”, de Gabriel Duarte e Daniel Eduardo “O Elemento Tinta”, de Luiz Maudonnet e Iuri Salles “O Fim da Imagem”, de Gil Baroni “O Pato”, de Antônio Galdino “Serrão”, de Marcelo Lin “Socorro”, de Susanna Lira “Último Domingo”, de Joana Claude e Renan Barbosa Brandão “Um Tempo pra Mim”, de Paola Mallmann “Solitude”, de Tami Martins e Aron Miranda “Tekoha”, de Carlos Adriano Curtas-metragens gaúchos “A Diferença entre Mongóis e Mongoloide”, de Jonatas Rubert “Apenas para Registro”, de Valentina Ritter Hickmann “Drapo A”, de Alix Georges e Henrique Lahude “Fagulha”, de Jéssica Menzel e Jp Siliprandi “Johann e os Imãs de Geladeira”, de Giordano Gio “O Abraço”, de Gabriel Motta “Madrugada”, de Leonardo da Rosa e Gianluca Cozza “Mby’a Nhendu”, de Gerson Karaí Gomes “Mora”, de Sissi Betina Venturin “Nação Preta do Sul – O curta”, de Nando Ramoz e Gabriela Barenho “Nós que Fazemos Girar”, de Lucas Furtado “Olho por Mim”, de Marcos Contreras “Perfection”, de Guilherme G. Pacheco “Possa Poder”, de Victor Di Marco e Márcio Picoli “Sinal de Alerta Lory F”, de Fredericco Restori “Sintomático”, de Marina Pessato “Tudo Parece em Constante Movimento”, de Cristine de Bem e Canto
Kim Ki-duk (1960 – 2020)
O polêmico cineasta sul-coreano Kim Ki-duk morreu de complicações decorrentes de covid-19 na madrugada desta sexta (11/12), num hospital da Letônia, aos 59 anos. Ele teria viajado para o país báltico com a intenção de comprar uma casa e obter uma autorização de residência. A notícia foi confirmada por Vitaly Mansky, o documentarista russo que mora na Letônia e dirige o ArtDocFest local, e o Ministério de Relações Exteriores da Coreia do Sul foi citado como tendo confirmado a morte do diretor em reportagens da mídia coreana. Nascido em 20 de dezembro de 1960, em Bonghwa, Coreia do Sul, Kim se estabeleceu como autor de cinema de arte premiado, com filmes de temas sombrios e polêmicos, sempre em evidência no circuito dos festivais internacionais. Mas nos últimos anos vivia um ostracismo forçado, após ser acusado de má conduta sexual por atrizes com quem trabalhou, durante a mudança sísmica da indústria cinematográfica, decorrente do movimento #MeToo. Ele sempre foi queridinho dos festivais europeus, fazendo premières no continente desde sua estreia cinematográfica de 1996. Seu debut de baixo orçamento, “Crocodile”, foi lançado no Festival Karlovy Vary, na Reública Tcheca, assim como os dois longas seguintes, “Animais Selvagens” (1997) e “Paran Daemun” (1998). Sua consagração veio com o quarto lançamento, “A Ilha” (2000), premiado nos festivais de Veneza, Bruxelas e Fantasporto. “A Ilha” também ganhou notoriedade por suas cenas terríveis de violência, inclusive contra animais – supostamente reais – , e conteúdo abertamente indigesto, um padrão que se tornaria marca do diretor. Reza a lenda que, durante a exibição em Veneza, o público abandonou as sessões entre surtos de vômitos e desmaios. O longa nunca foi exibido no Reino Unido, onde teve a projeção proibida. Também recebeu críticas extremamente negativas da imprensa sul-coreana, que o considerou de péssimo gosto. Mas os elogios europeus acabaram prevalecendo e a controvérsia ajudou a projetar seu nome. “Endereço Desconhecido” (2001) levou-o de volta a Veneza, “Bad Guy” (2001) inaugurou sua relação com o Festival de Berlim e “The Coast Guard” (2002) lhe rendeu três troféus em Karlovy Vary. Mas o filme que realmente o popularizou entre os cinéfilos acabou não tendo nada a ver com os caminhos que ele vinha trilhando. “Primavera, Verão, Outono, Inverno… e Primavera” (2003) abordava um mosteiro budista que flutuava num lago em meio a uma floresta intocada, e representava uma suavidade inédita em sua carreira. Venceu o Leopardo de Ouro e mais quatro troféus no Festival de Locarno, além do Prêmio do Público no Festival de San Sebástian, e graças à repercussão amplamente positiva – sem nenhum resquício de polêmica – conseguiu distribuição internacional da Sony. Só que seu lançamento seguinte voltou a mergulhar no horror. “Samaritana” (2004) acompanhava um prostituta amadora numa história de amor, morte e desespero, apontando um guinada sexual para o sadismo do diretor. Foi o começo de uma radicalização, que, no entanto, não se deu de uma hora para outra. Kim Ki-duk seguiu alimentando sua fama com a conquista do Leão de Prata de Melhor Diretor por “Casa Vazia” (2004), no Festival de Veneza. Ele ainda adentrou o Festival de Cannes com “O Arco” (2005), antes de retomar o cinema extremo com “Time – O Amor Contra a Passagem do Tempo” (2006), sobre uma mulher que decide sofrer cirurgia plástica extensa para salvar seu relacionamento. Este filme passou e foi premiado apenas em festivais de terror, como Fantasporto e Sitges. Após um par de dramas românticos incomuns, ele realizou seu primeiro documentário, “Arirang” (2011), refletindo sobre sua própria carreira. A obra autocongratulatória venceu a mostra Um Certo Olhar no Festival de Cannes. Só que o sangue voltou a rolar logo em seguida, no impressionante “Pieta” (2012). O filme venceu o Leão de Ouro, mas causou muita controvérsia devido a uma cena forte de estupro. Alguns espectadores abandonaram a première em Veneza, diante dos desdobramentos da relação entre um violento cobrador de dívidas, que fere devedores de forma brutal, e uma mulher que afirma ser sua mãe. Kim Ki-duk disse que as cenas polêmicas eram uma metáfora do capitalismo. A premiação de “Pieta” serviu de incentivo para o diretor explorar ainda mais seu sadismo cinematográfico. O lançamento seguinte, “Moebius”, foi recusado nos cinemas sul-coreanos, pelo conteúdo com incesto, castração e outras formas de situações “impróprias”, segundo a Korea Media Rating Board (KMRB), responsável pela classificação etária dos filmes no país. A trama apresentava uma família destrutiva, questionando os seus desejos sexuais básicos. “One On One” (2014) buscou mais violência, com o assassinato em série de suspeitos da morte de uma jovem estudante. Dividido entre o desejo dos fãs por filmes cada vez mais radicais e a falta de interesse dos festivais na brutalidade gratuita, a carreira de Ki-duk acabou à deriva, como o protagonista de seu filme “A Rede” (2016), encontrado perdido entre as Coreias do Norte e do Sul. Uma reviravolta marcou o lançamento de “Humano, Espaço, Tempo e Humano” (2018) no Festival de Berlim, que foi marcado por protestos – não por imagens terríveis, mas pelo homem atrás das câmeras. Kim deixou de ser um cineasta de cenas sádicas para virar um cineasta sádico, ao ser condenado por agressão contra uma atriz durante as filmagens de “Moebius” (2013). A vítima, cuja identidade foi mantida em sigilo, acusou Kim em 2017 de lhe dar três tapas e forçá-la a realizar cenas sexuais sem roupa, que não estavam no roteiro, nos bastidores da produção. A acusadora afirmou que Kim forçou-a a pegar o pênis de um ator, apesar de uma garantia anterior de que uma prótese seria usada. Devido a seus protestos, ela foi substituída por outra atriz no filme. O que a levou a entrar na justiça. Um tribunal sul-coreano multou Kim em US$ 4,6 mil por agressão, mas os promotores não consideraram as acusações de abuso sexual citando a falta de provas. Foi uma quantia irrisória. Mas custou sua carreira. Kim tentou aproveitar o palco oferecido pelo Festival de Berlim para se defender, afirmando que os tapas foram dados como instruções para atuação. Mas, logo em seguida, mais duas atrizes denunciaram abusos ainda piores cometidos pelo diretor. Uma delas disse que Kim exigiu vê-la nua durante um processo “humilhante” de seleção, enquanto a outra contou que Kim e seu ator favorito, Cho Jae-hyeon, a estupraram após convocá-la para um encontro num hotel para “discutir detalhes de um roteiro”. O diretor ainda conseguiu exibir seu último filme, “Din” (2019), no Festival de Cannes, mas não houve interessados para lançá-lo comercialmente. Inconformado, ele tentou processar as atrizes denunciantes. Fracassou. As últimas notícias afirmavam que ele tinha entrado em depressão profunda e não tinha nenhum trabalho em desenvolvimento.




