Uma Noite de 12 Anos relembra a repressão das ditaduras militares na América Latina
Nos anos 1960 e 1970, pipocaram ditaduras militares por toda a América Latina. Contavam com apoio civil relevante, internamente, e apoio decisivo internacional, em especial dos governos dos Estados Unidos, que atuavam como financiadores e capacitadores das ações de repressão. O que se viu no Brasil por longos 21 anos aconteceu no mesmo período, ainda que por menos tempo, na Argentina, no Chile e no Uruguai. Os níveis de violência, tortura e morte dos opositores variam bastante, mas os métodos se assemelham. Vivia-se o mesmo período de trevas e supressão da democracia, em todos os lugares. Assim como havia o terrorismo de Estado, também se desenvolveu a luta armada de resistência. O padrão de resposta à opressão também variou muito, mas com elementos comuns. No caso uruguaio, foram de 12 para 13 anos de ditadura, de 1972 a 1985, e a resistência armada foi protagonizada por um forte e ousado grupo de guerrilheiros urbanos, do movimento de libertação nacional conhecido como Os Tupamaros. O filme “Uma Noite de 12 Anos” trata da prisão e sequestro de três membros dos Tupamaros, que estiveram nas mãos dos militares nesse período. A saber: José Mujica, o Pepe (Antonio de la Torre, de “Os Amantes Passageiros”), que acabaria sendo eleito presidente do Uruguai em 2010, Eleuterio Fernandez Huidoro (Alfonso Tort, de “O Silêncio do Céu”), que depois foi senador e ministro, e o jornalista e escritor Maurício Rosencof (Chino Darín, também de “O Silêncio do Céu”). A prisão que eles amargaram por esses 12 anos é algo absolutamente inominável, como mostra o filme do diretor uruguaio, que vive na Espanha, Álvaro Brechner (“Sr. Kaplan”). A opressão é absoluta, desmedida. As condições de encarceramento em isolamento, desumanas e degradantes, sem nenhum respeito aos direitos humanos. Numa situação tal que é um milagre conseguir sobreviver sem enlouquecer. O filme mostra claramente esse dia a dia abominável, em que a tortura psicológica atua e complementa a tortura física, nas condições mais humilhantes que o ser humano pode conceber. Também mostra os poucos respiros que surgem na convivência humana, mesmo nessas condições. Inclui imagens de memória, sonho ou imaginação, que aliviam a carga dramática. Mas faz um retrato da desumanidade que é assustador. Como foi possível que todo aquele sofrimento pudesse gerar uma figura tão cativante quanto o presidente Pepe Mujica? É absolutamente incrível! Assistir a “Uma Noite de 12 Anos” é politicamente recomendável para entendermos a que ponto pode chegar o autoritarismo de um regime de força. Ainda que o filme seja sofrido e pesado – e não tenha uma intenção de exploração histórica do período, com referências ao que estava acontecendo tão perto, como o regime de terror de Pinochet no Chile, por exemplo. A entrega dos atores às filmagens das condições do cárcere ilegal compõe um retrato realista, que acaba tornando tudo muito claro e didático. Por se tratar de uma situação extrema, a que nenhum ser humano pode ser submetido – mas que continua acontecendo pelo mundo, em meio às guerras e perseguições de toda ordem – , resta-nos lutar pela preservação da democracia, para que, ao menos, possamos usufruir de um convívio civilizado que respeite a vida, a integridade e a dignidade das pessoas.
A Fábrica de Nada reflete o crescimento do desemprego na fase atual do capitalismo
Condição necessária para a existência da produção e, consequentemente, do lucro no sistema capitalista, é a mão de obra geral e especializada, que vem dos trabalhadores. Mas em tempos de tecnologia avançada, robótica e que tais, o próprio trabalhador começa a ser dispensável. Máquinas podem ser eliminadas ou substituídas por equipamentos mais recentes, que chegam a tornar obsoletos a própria estrutura física das fábricas e seu maquinário tradicional. Ou esse maquinário pode ser deslocado para onde a tecnologia não se sofisticou e que mantém custos de mão de obra tão baixos que se aproximam da escravidão. Esse é o pano de fundo da história do filme português “A Fábrica de Nada”, dirigido por Pedro Pinho (“Um Fim do Mundo”) a partir de ideia original do cineasta Jorge Silva Melo (“Agosto”), com base na peça “The Nothing Factory”, da escritora holandesa Judith Herzberg. A referência teatral não impede que o realizador trabalhe o material fílmico de forma documental, inclusive dedicando a obra aos trabalhadores da Fateleva, que, entre 1975 e 2016, levaram a cabo uma experiência de autogestão na fábrica de elevadores Otis portuguesa. Experiência que, certamente, inspirou “A Fábrica de Nada”, tanto quanto a peça original holandesa. Trata-se, de qualquer modo, de uma ficção. Quando equipamentos da fábrica vão desaparecendo, ou são roubados, à noite, esvaziando as condições de trabalho e produção, seus operários decidem fazer vigílias para impedir que isso continue a acontecer. A fábrica, porém, para de produzir. Eles não têm o que fazer e agora são os seus empregos que estão em jogo. Há um plano evidente de desativar a fábrica e dispensar os trabalhadores. Eles partem para a greve, recurso histórico e legítimo dos operários. Mas greve numa fábrica que já parou? A ideia do roteiro é ótima, muito bem desenvolvida e com um elenco convincente, que nos põe no mundo dessa fábrica estranha que, no entanto, é tão representativa dos dias econômicos atuais. E, de quebra, reflexões teóricas sobre a presente etapa do capitalismo, que se caracteriza pelo desemprego, vão sendo lançadas ao longo do filme, ilustrando as encenações, ou melhor, dando a elas um caráter mais geral, extrapolando o caso concreto que está sendo mostrado. Apesar das quase três horas de projeção, o filme flui bem, cria uma situação de expectativa e de suspense que mantém o espectador interessado no que vai ocorrer em seguida.
As Herdeiras é surpresa paraguaia premiada em Berlim e Gramado
Chela (Ana Brun) e Chiquita (Margarita Irún) são “As Herdeiras”. Juntas há 30 anos e já em idade avançada, dependem da venda de seus bens, herdados das famílias abastadas de ambas, para sobreviverem com dignidade. Ainda que não consigam manter o padrão sofisticado da classe alta de Assunção, elas têm uma relação homoafetiva aparentemente tranquila e as coisas caminham razoavelmente bem, apesar dos contratempos atuais. Dívidas não quitadas, porém, produzirão uma separação que dará origem a novas possibilidades e, quem sabe, desejos que se renovem. No meio disso, um modelo de transporte particular, ao estilo Uber, tem um grande peso na trama. “As Herdeiras” é audacioso na abordagem, apesar da aparência convencional e do ambiente discreto que cria. Tem uma narrativa bem construída, atrizes competentes, que dão o tom preciso às personagens e às situações. Tudo se passa em tom baixo, sem grandes sobressaltos. Mas a vida muda. E não é fácil reconhecer e aceitar isso. É um desafio que pode aparecer em qualquer momento da existência. Mesmo após um longo tempo de convívio, cuidadosamente protegido. O modesto cinema paraguaio, de poucas produções anuais e dependente do apoio de coproduções, como é o caso dessa, com Alemanha, Brasil e Uruguai, mostra aqui uma realização cinematográfica de peso, premiada em Berlim e Gramado. E que também pode ser vista como uma metáfora da elite de seu país, segundo o diretor Marcelo Martinessi.
A Vida em Família mostra tipos desencontrados com leveza
Uma pequena comunidade no sul da Itália, em que todos se conhecem e têm laços, experiências em comum, é algo que pode ser equiparado a uma grande família. Ainda assim, chamar a comédia “La Vita in Comune” de “A Vida em Família” não corresponde ao que se vê na tela. Disperata, a comunidade, reúne muitos tipos desencontrados consigo mesmos, que não se sentem parte integrante de um contexto social harmonioso. Ao contrário, todos parecem estar fora do lugar, à procura de algo que lhes falta ou com o que se identifiquem. A estreiteza do pequeno mundo onde vivem não lhes permite grandes voos, exceto os imaginários. Um prefeito poeta, incompetente no cargo, busca se realizar por meio de discussões literárias com um pequeno grupo de presos. Mirabolante tentativa de assalto, que acaba em violência contra um cão, produz complicações inúteis e uma culpa insuperável. E assim, a comédia do diretor Edoardo Winspeare (“Sangue Vivo”) rola solta. Um roteiro muito competente, atores talentosos e com ótimo timing para o humor, uma direção que trabalha o clima provinciano da localidade com graça e sutileza, fazem de “A Vida em Família” um programa cinematográfico muito bem feito, leve e divertido.
Javier Bardem e Penélope Cruz são justificativa de mais um filme sobre Pablo Escobar
Um filme espanhol que tem como protagonistas o ator Javier Bardem e a atriz Penélope Cruz não pode passar em branco. Só pelo desempenho deles, costumeiramente brilhante, vale a atenção. O diretor Fernando León de Aranoa já tem uma filmografia relevante, com destaques para “Segredos em Família” (1996) e “Um Dia Perfeito” (2015). Mas nesta nova produção, falada em inglês, o tema já parece um tanto gasto. O personagem Pablo Escobar (Javier Bardem), o famoso chefão do cartel de Medellín, Colômbia, já foi bastante abordado pelo jornalismo, pela literatura, pelo cinema (“Escobar: Paraíso Perdido”, “Conexão Escobar”), pela televisão (“Pablo Escobar: O Senhor do Tráfico”) e pelo streaming (“Narcos”). Um bandido que fascina pelo seu poder, pela ousadia, pela violência e por suas excentricidades. Em “Escobar: A Traição”, a ótica é a de sua amante Virgínia Vallejo (Penélope Cruz), uma popular apresentadora de TV que o amou e se interessou pela forma como Escobar usava o dinheiro que tinha. Ela não se preocupava com a origem do dinheiro, mas com sua destinação. E com isso tinha acesso a bens luxuosos, mas também admirava as benesses que o grande traficante oferecia à população local. O jeito arrojado de Pablo Escobar enfrentar os poderosos, entrar na própria política colombiana, pela via eleitoral, para encarar a caçada norte-americana, promovida pelo governo de Ronald Reagan, tinha um charme todo especial. Mas quando o perigo ronda forte e a vida está mesmo em risco iminente, a traição pode ser um caminho de sobrevivência. Virgínia Vallejo escreveu “Amando Pablo, Odiando Escobar” sobre o que viveu ao lado dele, sua perspectiva, suas lembranças, o que entendeu e avaliou daquela aventura extraordinária. É a sua história com ele que o filme mostra. É uma trama cheia de lances surpreendentes, perigosos, inusitados. Dá margem a um filme que mescla ação, suspense, violência, política e um drama amoroso. Não acrescenta muita coisa ao que já se conhece daquele que foi um dos maiores traficantes de cocaína da história. Mas dá para ver pelo ângulo da amante traidora e curtir a atuação, sempre segura, de Penélope Cruz e Javier Bardem.
A Outra Mulher faz comédia leve sobre a força do desejo
O ator e diretor Daniel Auteil explora, na comédia francesa “A Outra Mulher”, o filão daquilo que acontece quando uma atração bate forte e de forma inesperada. Daniel (Daniel Auteil) vive bem com a esposa Isabelle (Sandrine Kiberlain) e tudo segue tranquilo até que o grande amigo Patrick (Gérard Depardieu), que se separou da esposa, aparece com a nova namorada. A esposa de Patrick é amiga de Isabelle, de modo que a separação não foi bem vista. Patrick, porém, insiste em ir jantar na casa de Daniel, para apresentar ao casal seu novo amor, Emma (a espanhola Adriana Ugarte). Parece justo. Afinal, ele tinha o direito de reconstruir sua vida amorosa. Ocorre que Emma é uma daquelas mulheres jovens, lindíssimas, de corpo escultural, e Daniel simplesmente não resiste. Impulsionado pelo desejo, passa a imaginar coisas, sonhar acordado, e se entrega da forma mais óbvia. O filme explora seu comportamento bizarro, seus atos falhos, sua sem-graceza e os estragos que tudo isso causa. A maior atingida será a própria Emma, que terá seu vestido emporcalhado pelas trapalhadas do novo amigo desejante. A comédia vai bem, é divertida, ao expor a vulnerabilidade de quem deseja, sem conseguir se controlar. Mostra como a atração sexual pode atropelar princípios, planos e comportamentos, quando é avassaladora. E que isso pode acabar pondo a vida de cabeça para baixo. Ou não. Haverá tempo de reconstruir as coisas, se desfazendo dos equívocos? Ou terá sido só coisa da cabeça, da imaginação, do sonho? Um time de atores e atrizes charmoso e competente contribui para fazer o filme fluir com leveza e graça. Despretensioso, mas bom entretenimento.
A Festa ironiza intelectuais e poderosos de partidos políticos
“A Festa” é uma comédia irônica, de sorrisos, não de gargalhadas. Ao revelar-nos um universo perverso, que escamoteia todas as questões, o que fica é só aparência e vazio. O que é objeto de reflexão sobre o mundo dos bem-sucedidos e poderosos. Um encontro íntimo reúne sete amigos, com a intenção de celebrar a ida de Janet (Kristin Scott Thomas) para o prestigioso Ministério da Saúde, no Reino Unido. É bom lembrar que o atendimento britânico de saúde é referência mundial . Pois bem, o filme tratará de pôr em cheque isso também. O mais importante é que uma doença terminal, revelações sobre uma gravidez inesperada, infidelidades várias, lesbianismo e dependência de drogas serão elementos detonadores dessa celebração. O desnudamento da burguesia poderosa que o filme apresenta faz lembrar o mestre espanhol Luís Buñuel e seu estilo corrosivo. No entanto, aqui não há propriamente surrealismo ou non sense. Tudo se dá numa dimensão que cabe no terreno racional. Com dificuldade, é verdade, mas cabe. O mais próximo do surreal é o ótimo personagem de Bruno Ganz, Gottfried, com sua energia positiva descolada da realidade, sua atitude de autoajuda e suas crenças alternativas. Já a militante do partido que vai virar ministra nos é bastante familiar, no seu cinismo e descrença do seu papel republicano no governo. A intelectualidade real, ou simulada, dos demais não resiste ao crivo da razão e do equilíbrio. Jogam pesadamente na deslealdade, no que está encoberto ou omisso. Detonam a si mesmos e aos outros. O título original “The Party” refere-se tanto à festa que implode quanto ao partido político – supostamente de esquerda. Um bom roteiro, diálogos atraentes, um elenco de peso e uma interessante opção pelo preto e branco, que reforça a ligação com o Buñuel dos primeiros tempos, faz do filme da cineasta Sally Potter (do clássico “Orlando, a Mulher Imortal”) uma ótima atração do presente ano cinematográfico.
Tesnota usa sequestro para explorar tensão das divisões étnicas e sociais da ex-União Soviética
“Tesnota” é o primeiro longa-metragem do diretor russo Kantemir Balagov, que também responde pela montagem e pelo roteiro do filme, este em parceria com Anton Yarush. Indícios claros de um trabalho autoral, que se confirma desde as primeiras imagens, nada convencionais. Apresenta uma fotografia que enfatiza tons escuros e cores fortes ao mesmo tempo, fazendo sobressair as tensões do ambiente. O foco do filme é uma comunidade judaica, fechada e marginalizada, na localidade de Nalchik, cidade natal do diretor e capital da República Cabárdia-Balcária, parte da Federação Russa. O ano: 1998. A personagem central Ilana (Darya Zhovnar), de 24 anos, trabalha na oficina do pai como mecânica e ama um personagem cabardino, num relacionamento algo clandestino, não aceito pela família. Trata-se do que na própria trama do filme é referido como sendo as tribos, que são discriminadas pelos russos. O evento central da narrativa é o sequestro de um casal de noivos, logo após a cerimônia de compromisso deles. David, o noivo, é o irmão mais novo de Ilana. E a questão que se colocará é a de como pagar o resgate pedido sem mexer com a polícia, para evitar maiores complicações. O dinheiro servirá para mostrar, de um lado, um espírito de coletividade e solidariedade, mas, de outro, o ressentimento de alguns, a chantagem e também a tentativa de se aproveitar da situação para conseguir algum objetivo, difícil de ser alcançado por outro meio. A família de Ilana e David não tem posses suficientes e a própria oficina mecânica, que é sua fonte de sustento, estará em questão. Assim como o casamento de Ilana. Passaram a vida se mudando de um lado para o outro, para tentar sobreviver e escapar dos preconceitos. O sequestro parece levá-los de volta para a estrada. Inevitável será enfrentar questões éticas, que poderão complicar ou arruinar a vida de cada um deles: pai, mãe, irmãos e parceiros amorosos. As decisões que todos têm de tomar são vitais, decisivas e urgentes. Todo esse clima de angústia e tensão é muito bem trabalhado ao longo do filme, em ritmo lento e seguro. Pouco é explicitado verbalmente, o que importa é o que está por trás do não dito. Está muito presente nos semblantes, gestos, posturas, silêncios. Elementos fundamentais em “Tesnota”, que dependem do bom desempenho do elenco. O cineasta tem uma referência e fonte de influência muito fortes. Estudou e atuou no departamento de cinema da Universidade de Stravropol, com Alexander Sokurov, um grande cineasta russo da atualidade que, por sinal, é um dos produtores de “Tesnota”. O filme foi exibido nos festivais de Munique, Montreal e Cannes, onde se destacou na mostra Um Certo Olhar (Un Certain Regard), recebendo o prêmio da crítica internacional (FIPRESCI).
Café dialoga com o alcance global e econômico da bebida do título
“Café”, o filme, não deixa de ser uma homenagem ao nosso sofisticado hábito de tomar café com algum requinte. Seja sendo uma produção super especial, única, seja sendo servido num bule valiosíssimo, seja lendo a sua borra na xícara. Ou, ainda, discorrendo sobre os seus três sabores básicos: amargo, azedo e perfumado. Outra constatação muito importante, o café é um hábito planetário, alcança todo o mundo. A prova disso é que o filme, do diretor italiano Cristiano Bortone, conta três histórias passadas em países distintos: Itália, Bélgica e China (é uma coprodução dos três países) e envolve personagens árabes. Uma trama permeada pelo café, como elemento simbólico e econômico, que pode vir a frequentar o noticiário policial e mexer de forma intensa com a vida das pessoas. As histórias têm um fio tênue que as liga, como, de algum modo, todos nos ligamos enquanto seres humanos, ainda que longe uns dos outros, mundo afora. Um precioso bule de café roubado leva um árabe pacífico a se envolver com violência na Bélgica, para recuperá-lo. Questões políticas, manifestações de rua em Bruxelas, insatisfações com a situação econômica, falta de empregos e de opções para os jovens e conflitos familiares imbricam-se num relato policial, a partir de um ladrão imaturo e inepto. A mesma questão do colapso das políticas de austeridade europeias encontra em Trieste, na Itália, uma fábrica e um museu de café que serão objeto de um assalto que põe em evidência a combinação entre a questão ética e o desespero numa sociedade de consumo que não se sustenta. Na China, não é diferente. Uma fábrica de café põe em risco o meio ambiente e a comunidade, pela ganância e rigidez de seus donos, insensíveis ao sofrimento humano que podem causar. E faz-se um chamamento para a revalorização do cultivo romântico e tradicional do café. Isso entremeado por uma história de amor e, claro, pela redescoberta de um sabor artesanal da bebida. Cada uma das histórias teria condição de alimentar um longa, porque oferecem muito ainda a explorar. O resultado encontrado, no entanto, é bom pela dimensão globalizada em que situa o café e os dramas que podem cercá-lo. Considerando que os maiores produtores, como o Brasil e a Colômbia, estão fora da trama, tem-se a dimensão da representatividade do café no contexto mundial. “Café” é um bom produto cinematográfico global, que se vale da força simbólica da bebida que o mundo aprecia para contar histórias envolventes que dialogam com a realidade econômica atual. A narrativa salta de uma história a outra, ao longo de todo o filme, sem chegar a cansar ou a confundir o espectador, pela mão segura de um bom cineasta e de um bom e diversificado elenco.
Alguma Coisa Assim é moderno como poucos no cinema brasileiro
Longa brasileiro com coprodução alemã, “Alguma Coisa Assim” retoma os personagens de um curta homônimo, premiado em Cannes em 2006. Os realizadores, o ator e a atriz protagonistas são os mesmos, a trama incorpora a história original e a amplia, para ser experimentada dez anos depois. Mas essas explicações não importam muito, são apenas referências para situar o trabalho. O que conta é o resultado do longa atual, independentemente da sua história passada – não vi o curta e não senti nenhuma falta de vê-lo. “Alguma Coisa Assim” é um filme moderno na forma e nas questões temáticas que propõe. A partir das baladas das casas noturnas da rua Augusta e seu clima transgressivo e colorido, o neon invade a tela, mesmo constatando que a cidade mudou e os jovens estão diferentes. A história dos dois personagens, Mari (Caroline Abas) e Caio (André Antunes) vai ser retomada em outro contexto urbano, também aberto a experimentações: a vibrante e pulsante cidade de Berlim. Os jovens estão em busca de algo novo. O que poderia ser isso? Basicamente, a ideia de um viver sem rótulos, para além das convenções sociais. O que significa namorar hoje? E a amizade que chamávamos de colorida? Que tal o casamento, em especial o casamento gay? Como se define hoje a família, com suas novas formas? Como se pode entender a sexualidade, em suas múltiplas e plásticas formas? E os gêneros? Os cisgêneros e os transgêneros? Os relacionamentos afetivos e amorosos contemporâneos jovens desafiam convenções e tentativas de enquadrá-los. Rejeitam e superam os rótulos. Por que queremos tanto classificar, enquadrar, rotular as coisas? Em princípio, isso seria preciso para tentar entendê-las. Mas quase nunca ajuda nos relacionamentos humanos. Porque, por trás disso, está a noção do controle social e da busca de impor uma visão conservadora do mundo aos jovens e à sociedade como um todo. “Alguma Coisa Assim” é um jeito mais livre de ser, de experimentar, de arriscar, de viver. Também com muitas frustrações e incompreensões. Mas isso é do jogo, está sempre presente. São personagens se descobrindo, se redescobrindo, percebendo-se mutantes, em transformação constante. Um filme que vem em boa hora para o nosso Brasil, que anda para trás em tanta coisa, brecando avanços conquistados nos costumes, atacando a questão de gênero, a diversidade sexual, as novas famílias, o feminismo e o direito mais amplo ao aborto. No caso do aborto, “Alguma Coisa Assim” é de uma clareza e de uma honestidade que merecem aplausos. Não faz qualquer proselitismo, mas toca no ponto. Todo o clima do filme respira uma modernidade digna e bonita. Esmir Filho e Mariana Bastos fizeram um belo trabalho. Os atores Caroline Abras e André Antunes também vestem a camisa dos personagens com muita sinceridade e força. Estão muito convincentes. Caroline já na estrada como atriz, se saindo muito bem e sendo premiada. André, tentando sair da profissão de ator, abraçando a psicologia como profissão, mas sem conseguir fugir do personagem que começou a interpretar dez anos antes. Que tal acumular as duas coisas? Destaque também para a trilha musical de Lucas Santana e Fábio Pinczowskit. Está mais do que na hora de alguma coisa assim poder se afirmar na vida das pessoas. Menos rótulos, mais autenticidade. Pode ser moderno, mas também faz lembrar de “Jules e Jim – Uma Mulher para Dois”, de François Truffaut, de 1962, e de “As Duas Faces da Felicidade’, de Agnès Varda, de 1965, filmes icônicos de uma fase que revolucionou os costumes nos anos 1960 e que tem muito a nos dizer hoje. Sabendo ou não seus realizadores, “Alguma Coisa Assim” segue essas pegadas, com competência.
Documentário sobre os 100 anos de Bergman projeta defeitos no brilho do gênio
O cineasta sueco Ingmar Bergman (1918-2007) é, indubitavelmente, um dos maiores talentos revelados pela história do cinema, em todos os tempos. Um dos poucos que merece, genuinamente, ser chamado de gênio. Seu trabalho no cinema inclui uma obra tão densa, rica e sofisticada, que não pode ser esquecida e merece ser sempre revista, principalmente na tela grande. Isso tem acontecido por conta do centenário de Bergman neste 2018. Algumas de suas obras-primas têm sido reexibidas em cópias restauradas nos cinemas. É o caso de “Gritos e Sussurros” (1972), “Persona” (1966), “Fanny e Alexander” (1982), “Cenas de um Casamento” (1974), “Face a Face” (1975), entre outras. O documentário recém-lançado “Bergman – 100 Anos”, de Jane Magnusson, reconhece esse talento todo e enfatiza a espantosa produtividade de Bergman, apontando para o ano de 1957. É incrível constatar que duas das maiores obras-primas do cinema tenham sido realizadas por ele nesse mesmo ano: “O Sétimo Selo” e “Morangos Silvestres’. Ainda em 1957, ele faria o filme “No Limiar da Vida”, montaria duas peças importantíssimas no teatro sueco, “Peer Gynt”, de Ibsen, e “Fausto”, de Goethe. Faria, ainda, duas outras peças teatrais e um telefilme. Isso aos 38 anos, já com seis filhos de três mulheres diferentes. Nesse ano, e nos seguintes, essa produtividade se manteve, em meio a dores estomacais que faziam com que ele se alimentasse basicamente de bolacha Maria e iogurte, tendo tido episódios de internação hospitalar por conta disso. O filme de Jane Magnusson está interessado em compreender como esse homem lidou com essas coisas simultaneamente e de que modo vida e obra se imbricam. Com isso, celebra a genialidade do trabalho que Bergman realizou, mas se debruça no lado negro da força, ou seja, nos problemas e defeitos pessoais que marcaram o diretor. Aborda, por exemplo, seu gênio difícil, sua competitividade com lances de crueldade, sua infidelidade em relação às mulheres e seu descaso em relação aos filhos. E sua condição de workaholic, indispensável para explicar tal produtividade. Lembra que Bergman chegou a ser um admirador de Hitler na juventude, e outras coisas mais. Uma homenagem nada chapa branca, portanto. Confesso que não me agradou muito essa “humanização” do artista, que se comporta como desconstrução de sua figura mítica. Ele próprio tratava de questões como essas em seus escritos, reconhecendo defeitos, admitindo erros e falhas de caráter. Mas, segundo o documentário “Bergman – 100 Anos”, ele mentia frequentemente. Muitas histórias que ele conta que viveu na infância, segundo seu irmão mais velho, não foram vividas por ele, mas pelo irmão. Enfim, não se poderia confiar nem no que ele escreveu a respeito de si mesmo. Pode ser, mas que importa isso agora? Tudo que ele viveu ou observou serviu de base para suas histórias, seus questionamentos, e habitou alguns dos personagens mais complexos de sua filmografia, com destaque para as mulheres. Um grande criador se vale de tudo isso, mescla e retrabalha lembranças, modifica, amplia, inventa. Além do que, a memória é seletiva, para todo mundo. Quantas vezes a gente acredita que viu e viveu coisas que, de fato, não aconteceram. Ou não desse modo, pelo menos. A obra de Ingmar Bergman é tão grande que tudo isso parece pouco relevante e não explica muita coisa, não. Temer a morte, ou as dores e sofrimentos que podem vir antes dela, todo mundo teme. Mas quantos, em função disso, produziram obras de arte significativas para nos fazer refletir sobre o tema, como Bergman fez em muitos de seus filmes? Bergman viveu 89 anos e deixou uma marca inconfundível na produção artística mundial. Seus filmes estão aí para testemunhar. Os livros que escreveu, também. Das grandes montagens teatrais restaram fotos e depoimentos. Celebrar os 100 anos do seu nascimento deve ser motivo de orgulho para toda a humanidade.
Egon Schiele – Morte e a Donzela retrata vida e obra do famoso pintor expressionista
Egon Schiele (1890-1918) viveu pouco, apenas 28 anos, mas produziu uma obra pictórica grande, importante e inovadora. O pintor austríaco do começo do século 20 é considerado um nome de destaque do expressionismo. Os desenhos e pinturas em que efeitos distorcidos são explorados foram, na grande maioria dos casos, nus femininos. E ele tinha como modelos garotas muito jovens, a começar por sua própria irmã, sua primeira modelo. A ênfase não só na nudez, mas, principalmente, na expressão erótica das jovens parece indicar tendência a pedofilia, não no sentido de abuso sexual, mas de atração por meninas novas. O convívio com essas meninas que frequentavam sua casa, seu ateliê, ao lado do erotismo do trabalho, acabou lhe valendo um processo e uns dias de cadeia, em 1912, pela acusação de imoralidade e inadequação da obra, como ofensiva para as crianças que a ela estavam expostas, quando não eram os próprios modelos. O desfecho poderia ter sido bem pior se a suposta perda da virgindade delas tivesse sido provada, o que não aconteceu. A obra vigorosa e provocativa, para alguns francamente pornográfica, aí está, permanecendo para a posteridade. O talento é evidente. Já era no seu curto tempo de existência para os que conheciam as artes plásticas. Caso de seu contemporâneo Gustav Klimt (1862-1918), o grande pintor simbolista austríaco, que teria sido incentivador de Schiele, comprado seus trabalhos, lhe apresentado pessoas influentes e lhe arranjado algumas modelos. Quase trinta anos mais velho, Klimt já era um artista de peso, a essa altura. Curiosamente, Schiele e Klimt vieram a falecer no mesmo ano, que marcava o fim da 1ª Guerra Mundial. O filme austríaco “Egon Schiele – Morte e Donzela”, dirigido por Dieter Berner, é uma boa cinebiografia do pintor. Tenta recriar o clima de sua vida e mostra um pouco da sua obra. Tem sequências muito bonitas e bem filmadas, um elenco jovem que não chega a brilhar, mas atua com empenho, e explora a nudez e o erotismo que combinam com o trabalho do pintor. Não vai mais fundo nos questionamentos que a vida e a obra de Egon Schiele suscitam, mas traça um retrato razoável disso. Um filme anterior sobre o mesmo pintor, “Excesso e Punição”, de Herbert Vesely, de 1981, com Mathieu Carrière e Jane Birkin, era mais forte e sombrio, no retrato de Egon Schiele. Não chegou a obter sucesso, talvez por ser menos sedutor e de ritmo lento. Eu diria que os dois filmes se complementam, ao tentar trazer para um público mais amplo a história e o trabalho do jovem Schiele, que se despediu da vida por conta da gripe espanhola. O pai dele morrera de sífilis. Tempos em que a medicina ainda podia pouco e a inevitabilidade da morte em idade precoce se impunha. O subtítulo do filme de Dieter Berner: “Morte e a Donzela” faz referência a um quadro famoso, de 1915-16, assim denominado, incluindo os artigos. A morte e a donzela é um motivo renascentista, aqui explorado com um casal entre lençóis, visto de cima, envolvido por formas que parecem agitadas, remetendo à ideia de morte. O filme, bem realizado, é uma oportunidade para que, quem não conhece, entre em contato com a arte de Egon Schiele. E quem já o admira possa conhecer algo mais de sua vida e obra. Vale por isso.











