Cyrano, Mon Amour diverte com bastidores da obra-prima do teatro francês
“Cyrano de Bergerac” é a mais importante peça do teatro francês. Sua primeira encenação data de 1897 e, desde então, já foi vista nos palcos milhares de vezes. É um sucesso que teve início no século 19 e permanece no século 21. Seu autor, Edmond Rostand (1868-1918), a escreveu toda em versos e tinha menos de 30 anos quando a completou, em meio aos ensaios da primeira encenação. Dezenas de filmes também foram feitos com base na peça. Quem for ver “Cyrano, Mon Amour” não se apresse em sair do cinema, uma cena de cada um desses filmes é exibida, e identificada, junto com os créditos finais. O filme “Cyrano, Mon Amour” é uma homenagem a Rostand, tanto que no original o filme se chama apenas “Edmond”. De qualquer modo, o centro da história é o processo de criação e concretização da peça de maior sucesso de todos os tempos na França e também muitíssimo apreciada em todo o mundo. O diretor, roteirista e também ator Alexis Michalik (da série “Versailles”) é ainda o autor da peça teatral que serve como base ao filme “Cyrano, Mon Amour”, seu primeiro longa, porém, um trabalho já sólido e maduro. Ele passou anos estudando “Cyrano de Bergerac”, escreveu a peça que conta o processo de criação a partir do autor Edmond Rostand e, finalmente, realizou o filme, já dominando sua própria peça inteiramente e conhecendo fala por fala. O trabalho tem ritmo, não perde o gás, se passa em grande parte no teatro, mas é tão cinematográfico quanto é teatral. Na verdade, é também uma bela homenagem ao fazer teatral. O filme é metalinguístico, sobre os percalços, dificuldades e prazeres da criação à execução do espetáculo. Cria-se uma narrativa essencialmente cômica a partir desse difícil processo, que tem lances dramáticos. E tudo se passa como filme de época, no contexto histórico do fim do século 19. Um período que testemunhou o nascimento do cinema com os irmãos Lumiére, o que é mostrado, dois anos antes da estreia do Cyrano. Os primeiros carros, o início da aviação, a popularização da eletricidade, um período eufórico de avanços tecnológicos e artísticos. Entre os personagens que entram na história de Edmond e seu Cyrano estão George Feydeau (1862-1921), papel vivido pelo diretor Alexis Michalik, Sarah Bernardt (1844-1923), vivida por Clémentine Célarsé (“Uma Família de Dois”), e Constant Coquelin (1841-1909), o ator que interpretou Cyrano pela primeira vez no palco, vivido com maestria no filme por Olivier Gourmet (“Troca de Rainhas”). No papel de Edmond, o jovem e talentoso Thomas Solivérès (“Respire”) protagoniza com brilho o seu personagem. E tem ainda Mathilde Seigner (“Viva a França!”), como Maria Legaut, e Lucie Boujenah (“Inocência Roubada”), como Jeanne, a intérprete de Roxanne, e Tom Leeb (“Papillon”), como Léo, todos muito bem. As locações em Praga, na República Tcheca, procuram recriar o clima e os ambientes da Paris daquele período. O que os figurinos, adereços, penteados, perucas, maquiagem, se encarregam de completar com sucesso. Uma comédia inteligente, que trata de um tema cultural relevante, especialmente para a França, mas não só para ela, que diverte, informando, e não deixa de oferecer sua quota de dramaticidade e romantismo. O filme foi visto por mais de 500 mil pessoas na França, foi bem recebido por aqui, na recente estreia do Festival Varilux do Cinema Francês e oferece bom divertimento com qualidade.
Maya reflete busca pela paz após trauma de guerra
O improvável encontro amoroso entre Gabriel (Roman Kolinka), correspondente de guerra, e Maya (Aarshi Banerjee), uma jovem indiana, parece inviável. Ele, aos 30 anos, já tem experiências de vida muito fortes, enquanto ela é uma adolescente que leva uma vida tranquila, no seu espaço, certamente em busca de voos maiores, mas até aqui as tradições que a prendem falaram mais alto. Esse encontro se dá porque Gabriel resolve revisitar a Índia de sua infância, sua cidade original, Goa, onde vivem seu padrinho e a jovem Maya, e Mumbai (Bombaim), onde vive sua mãe, de quem ele sempre esteve distante. De passagem, ele vai a outras localidades da Índia, o que permite à diretora francesa Mia Hansen-Love (de “Eden” e “O Que Está Por Vir”) explorar belezas e locais históricos do país. Gabriel acabou de passar por uma experiência terrível, ao cobrir a guerra da Síria e ser sequestrado e aprisionado por terroristas por quatro meses, escapando literalmente de ser degolado por eles. O que acabou acontecendo com um colega jornalista. Mas ele reluta em assumir uma notoriedade e uma espécie de heroísmo, ao lado de outro colega, ambos devolvidos à França numa negociação com o então chamado Estado Islâmico. Em vez de permanecer em Paris, prefere ir ao encontro de suas origens indianas. O elenco é muito bom. A química entre Roman Kolinka e Aarshi Banerjee vai bem, são ótimos desempenhos. E há sempre uma expectativa no ar quanto ao que pode acontecer. O que move um correspondente de guerra? O que ele busca, quando se dirige ao centro do conflito, sabendo dos enormes riscos envolvidos? Por que caminha para os lugares de onde todos estão fugindo? Essas são questões que se colocam diante do personagem Gabriel e que não deixam de ser enigmáticas. Há mais coisas entre o céu e a terra do que supõe a nossa vã filosofia, diria Shakespeare. Isso vale para o inescrutável ser humano que, muitas vezes, nos soa como muito estranho, incompreensível, até. Os caminhos da mente são surpreendentes. A história é boa, prende a atenção, apesar de o roteiro claudicar em uns tantos momentos. A filmagem, porém, de muita beleza e atualidade, compensa um pouco isso. O filme é falado em francês e inglês.
Dor e Glória reflete criatividade e desejo de Pedro Almodóvar
“Dor e Glória”, de Pedro Almodóvar, centra-se no personagem Salvador Mallo, um cineasta que já traz no nome a convivência dos contrários. Seu momento atual e suas lembranças são marcados pela dor e pela glória. A dor porque já está envelhecido e sentindo-se sem condições de filmar, a razão de ser de sua vida, com as doenças tomando conta de seu corpo. Desde as dores de coluna, as dores de cabeça, os engasgos frequentes, até a depressão pela perda de amores e de vitalidade. Uma animação, muito bem realizada, nos mostra o que são essas dores que acometem o corpo, cheia de cores, com didatismo e humor. Com Almodóvar, a dor também fica divertida. Como sempre foi nos seus filmes. A cabeça continua produzindo, escrevendo histórias a partir de experiências vividas, desejadas ou imaginadas, que agora não se destinarão ao cinema. Mas também não são contos literários. Um momento de declínio que produz uma crise existencial. Esses belos escritos, que acabarão sendo representados ou filmados, são a revelação de uma vida de criatividade, de sucesso e admiração internacionais, que é evidente. O relançamento de um filme chamado “Sabor”, realizado há 30 anos e que produziu uma inimizade com o ator principal, faz com que se reate seu contato e, por meio dele, um velho amor reaparece. A glória também vem das lembranças infantis, da vida na casa caverna, da mãe pobre, forte, batalhadora, do canto que abriu caminho ao estudo patrocinado junto aos padres, do primeiro desejo que se manifesta numa febre. O talento de escritor e a inclinação precoce na direção do cinema já dominam a cena. Desde sempre. Embora hoje doloroso, há um caminho a seguir e não será pela via da heroína que combate a dor, mas escraviza. Será novamente pelo desejo que novos ânimos poderão surgir. Não por acaso, a produtora de Pedro e seu irmão Agustín Almodóvar chama-se El Deseo. Ele é visto como o motor da existência. O protagonista Salvador Mallo, brilhantemente interpretado por Antonio Banderas, remete, é claro, à própria figura de Pedro Almodóvar, mas não pode se considerar uma autobiografia. Aí estão lembranças, recordações, mas também acontecimentos que poderiam ter existido ou ser fictícios, expectativas, decepções, hipóteses, exageros. Sentimentos e impressões que passam, se transformam. Elementos de uma vida que abrem perspectivas para um novo personagem, que dialoga com seu inspirador. Este, por sua vez, realiza sua autoanálise, encarando a morte como algo já mais próximo e palpável. Em alguns momentos, até desejável. O filme é lindo, profundo, e traz um time de atores e atrizes magnífico, além de Banderas. O argentino Leonardo Sbaraglia, como Federico, um ator já muito tarimbado e conhecido do cinema dos hermanos. Penélope Cruz, sempre luminosa, faz Jacinta, a mãe. Ambos vivem papéis de coadjuvantes, mas brilham. Asier Etxeandia, como Alberto Crespo, tem um trabalho competente num papel importante. E outras grandes mulheres estão lá: Nora Navas, como Mercedes, Julieta Serrano, como a mãe já idosa, Susi Sánchez e a participação de Cecília Roth, que já atuou em tantos filmes do diretor, compõem um elenco à altura para esse novo grande trabalho almodovariano. Há poucos anos, escrevi um livro destacando a sexualidade e a transgressão no cinema de Almodóvar. O diretor continua fiel a esses temas norteadores, assim como à utilização da metalinguagem. Em seus filmes, outros filmes e peças são feitos – aqui, “Vício” e “O Primeiro Desejo” são as realizações. O construir artístico, a escrita, a filmagem, a distribuição e exibição dos filmes, o trabalho dos atores e atrizes, além do próprio diretor, evidentemente, enriquecem a experiência cinematográfica do espectador. Recentemente exibido no Festival de Cannes, “Dor e Glória” teve excelente acolhida. Levou o prêmio de Melhor Ator para Antonio Banderas. Mas merecia mais.
Rocketman presta tributo empolgante à carreira de Elton John
O garoto Reginald Dwight (ou Reggie) tinha muitos problemas afetivos em família. Um pai incapaz de abraçar e elogiar. Uma mãe complicada e infiel. Brigas em casa, posterior separação. O elemento salvador seria a avó, que sempre pensou nele e o colocou para a frente, ajudando-o a vencer a timidez que seu corpo, algo rechonchudo, só complicava. No entanto, esse garoto tinha ouvido absoluto, uma capacidade de captar e reproduzir instantaneamente as músicas, que logo descobriu como fazer no piano de casa. Colocá-lo para estudar música foi lapidar um diamante bruto. Foi a partir daí, do encontro de um parceiro e de uma descoberta pessoal de como se libertar das amarras convencionais e lidar com a homossexualidade, que surgiu um grande astro pop: Elton John. Uma virada impressionante, uma explosão no palco, a partir de um figurino excessivo, exagerado, muita fantasia e imaginação levaram o músico, cantor e compositor de imenso talento a um sucesso internacional retumbante. Tudo muito turbinado. Quando uma trajetória assim se constrói, também cobra seu preço. Geralmente alto. A dependência de álcool, cocaína e outras drogas, de sexo, do próprio sucesso e da exposição pública. Passando, ainda, pela aprendizagem em gerenciar e colocar limites na própria loucura em que se converte uma carreira tão vertiginosa. Tudo isso está claramente contemplado no ótimo musical biográfico “Rocketman”, que leva o título de um dos maiores sucessos musicais do cantor. O trabalho cinematográfico de Dexter Fletcher (“Voando Alto”) faz jus à importância do astro e, sobretudo, à sua criação artística. Targon Egerton (“Kingsman: O Círculo Dourado”) vive Elton John de forma visceral, entregando-se plenamente ao papel e com performances empolgantes. E o que é melhor, cantando muito bem o repertório de Elton. Com tanta música boa, acompanhada também de danças bem coreografadas e vozes complementares, o musical se enche de brilho e tende a conquistar o público. Segundo o próprio biografado, o filme mostra os baixos bem baixos e os altos bem altos e era assim mesmo que ele queria. De fato, “Rocketman” passa longe de um produto chapa branca ou falseado. Permite-se a fantasia, propõe-se épico, mas isso faz um retrato coerente e apropriado da figura de Elton John. É da batalha dos anos de formação, progresso e comprometimento com os vícios, não só das drogas, mas de tudo o mais, que trata a trama. O sucesso já está todo lá, mas a decadência pessoal também. Curiosamente, grandes contribuições de Elton John em questões como a prevenção da Aids, a oficialização do casamento gay e a adoção de crianças por casais homossexuais só são citadas nos créditos finais. Assim como o fato de que ele está há 28 anos sóbrio. O título de Sir que lhe foi outorgado pela rainha da Inglaterra nem é lembrado, só o fato de que ela gosta de sua música é mencionado. Até seus lances de moda já encontraram caminhos mais equilibrados, não diria discretos, claro, mas um pouco mais suaves. Maturidade, velhice? A música de Elton John empolga, como sempre, sua presença no palco é muito forte. Já há, no entanto, muito a comemorar e rememorar, talvez ressignificar. “Rocketman” cumpre bem esse objetivo, ao focalizar Elton John com realismo e profundo respeito à sua música e à sua trajetória artística de ídolo pop.
Crime de O Caravaggio Roubado não compensa
Depois de “Viva a Liberdade”, em 2013, e “As Confissões”, em 2016, o cineasta italiano Roberto Andò vem com um suspense cheio de mistérios e coisas a serem descobertas pouco a pouco. O fio condutor é um crime ocorrido há 50 anos, numa capela de Palermo, na Sicília, o roubo da pintura Nativitá, de Caravaggio, que segue sem solução. Não seja por isso, a ficção se encarrega de criar uma história que envolve uma escritora fantasma de um roteirista bem sucedido, que é conhecida apenas como secretária de um produtor de cinema. Ela tem acesso a uma oferta de uma história espetacular, mas muito perigosa. Vai dar na máfia, claro. Afinal, estamos em Palermo. Uma trama intrincada vai se desenvolvendo. Nada, ou pouco, se dá a conhecer à primeira vista. O quebra-cabeças vai se formando, fazendo sentido, e trazendo muitos outros elementos à trama. Em especial, pelos relacionamentos que se estabelecem e se transformam, dando ritmo aos eventos. “O Caravaggio Roubado” tem boas sequências, é visualmente bonito, tem ótimos desempenhos, mas se perde na falta de fluidez. Há uma preocupação excessiva em permanecer num clima de mistério constante que, se estimula de um lado, cansa de outro. Tensão e enigma não faltarão aos espectadores que forem ver o filme. O grande destaque vai para a protagonista Valéria, desempenho excelente de Micaela Ramazzotti (atriz de “Loucas de Alegria”), e para o papel de Renato Carpentieri (“Corpo Celeste”), muito bom. Alessandro Gassman (filho do lendário ator Vittorio Gassman) está num papel menor, mas central da trama, como o roteirista Alessandro Paes. O filme conta, ainda, com a participação especial do grande cineasta polonês Jerzy Skolimovski (“Matança Necessária”).
A Grande Dama do Cinema é homenagem surpreendente a Crepúsculo dos Deuses
O título em português de “A Grande Dama do Cinema”, que batiza o filme argentino “El Cuento de las Comadrejas”, enfatiza uma das características do novo trabalho de Juan José Campanella: a homenagem ao clássico de Billy Wilder “Crepúsculo dos Deuses” (Sunset Boulevard, 1950). Esse filme seminal de Wilder é sempre lembrado como referência ou reencenado, como é o caso do musical teatral que está em cartaz em São Paulo. “A Grande Dama do Cinema” retoma essa história. Mas não se limita a trazê-la para a Argentina atual com seus personagens – a atriz, o diretor, o roteirista, agora envelhecidos, que perderam o sucesso nos anos 1970, quando vigorava a ditadura militar no país – , como acrescenta inúmeros outros elementos e situações. O marido aparece como ator e em cadeira de rodas, como um novo personagem, o quarto da trama. E, para abordar a questão da diferença geracional, um casal de jovens entra nas relações, trazendo os conceitos capitalistas de lucro máximo e ética mínima, ou nenhuma, ao contexto. Ou seja, o ponto de partida é claro, o de chegada, não. O filme de Campanella surpreende em muitos aspectos. Faz um passeio pelos gêneros cinematográficos, de forma muito competente e segura. Com muito ritmo, passa da comédia ao drama e ao suspense, com um roteiro muito rico e bem engendrado. Os diálogos, que compõem um relacionamento corrosivo, sarcástico e competitivo entre os personagens, são admiráveis, inteligentes, divertidos, tocam nas feridas, provocam e, ao mesmo tempo, esclarecem os fatos. As artimanhas dos personagens fazem jus ao seu passado glorioso, jogos exigem planejamento, ensaios e atuações para enfrentar a situação-problema que vivem no momento. O final “natural” versus o final concebido para virar o jogo é um dos grandes trunfos do filme. Há muitas sequências interessantes para se apreciar. Em uma delas, Mara fala, enquanto um filme, com seu rosto jovem, aparece projetado, os rostos e lábios se superpõem e se descolam, unindo passado e presente. A forma como se constrói a narrativa que resulta em um assassinato e a disputa por um antídoto para um veneno é realizada com perfeição. O cineasta Juan José Campanella já é bem conhecido e faz sucesso no Brasil há um bom tempo. Quem não viu “O Filho da Noiva”, de 2001, “Clube da Lua”, de 2004, e o fabuloso “O Segredo dos Seus Olhos”, de 2009? Ele é um grande talento do cinema contemporâneo de nossos hermanos, com quem rivalizamos tanto no futebol, mas de quem gostamos muito no cinema. No caso deste filme, é importante destacar o incrível trabalho do elenco, brilhante, e de quem Campanella extraiu o melhor. A grande atriz Graciela Borges vive Mara Ordóz, uma antiga diva das telas, que vive de lembranças e objetos de seu sucesso, em que se destaca um “Oscar”, pesado a ponto de ser responsável por uma morte (lembremos que Campanella levou o Oscar de filme estrangeiro por “O Segredo dos Seus Olhos”). A escadaria que notabilizou Gloria Swanson como Norma Desmond, em “Crepúsculo dos Deuses”, é coadjuvante do notável desempenho de Graciela. Mas seus parceiros de cena alcançam também grandes performances: Luis Brandoni, como Pedro, o marido de Mara, Oscar Martinez, como Norberto, o diretor, com quem ela sempre trabalhou. E o roteirista desta história passada de êxito, Martin, é vivido pelo grande Marcos Mundstock. Talvez nem todo mundo saiba que Marcos Mundstock é um multiartista, músico, escritor e comediante, um dos fundadores de um grupo extraordinário de música e humor, chamado Les Luthiers, que encanta as plateias de língua espanhola, por toda a América e Espanha, há 40 anos. Infelizmente, é pouco conhecido no Brasil. Mas seu humor sarcástico, muito característico no Les Luthiers, está magnificamente bem aproveitado em “A Grande Dama do Cinema”. Além deles, o casal de jovens atores, Clara Lago, como Bárbara, e Nicolás Francella, como Fernando, não se intimida diante dos veteranos talentos com quem contracenam, dando conta do recado muito bem.
A Espiã Vermelha simplifica questões profundas com romantismo de época
Quando se fala de espionagem, a ideia imediatamente associada a ela é a de traição. Traição a seu país, à sua causa política, aos seus companheiros de trabalho ou militância, a seus amores, amigos, familiares. Mas o mundo é complexo e muitos elementos entram nessa equação. Por exemplo, num tempo de guerra, há alianças. Será correto que um país aliado esconda informações essenciais do outro? A lealdade a um país não poderia ser um entrave ao equilíbrio necessário para reconquistar a paz mundial? No terreno das relações pessoais, como amar e se dedicar a alguém que professa teses arriscadas, que soam parciais ou manipuladas? Enfim, é possível e desejável dormir com o inimigo? É justo excluir amigos e familiares de informações que podem colocá-los em risco? Por outro lado, deixá-los na ignorância pode ser uma forma de protegê-los? E aos companheiros de militância política ou científica é possível omitir ou compartilhar dados sigilosos? Em que medida e com que objetivo? Todas essas questões perpassam a leitura do romance “A Espiã Vermelha” (Red Joan), de Jennie Rooney, uma criação inspirada em fatos e personagens reais da história, no Reino Unido, no período que antecedeu a 2ª Guerra Mundial, passou por toda a conflagração e continuou após a bomba atômica, em Hiroshima, e a vitória dos aliados ocidentais e da União Soviética. A personagem da espiã Joan Stanley é complexa e cheia de nuances, sentimentos, valores, lealdades pessoais e políticas. É inspirada livremente na espiã britânica Melita Norwood, que agiu municiando a União Soviética de informações sigilosas. Só foi descoberta 50 anos após, quando já contava com 87 anos de idade, levando uma vida calma e tranquila nos subúrbios londrinos, viúva e com um filho advogado. O filme homônimo, de Trevor Nunn, adapta essa história surpreendente e atraente, respeitando a proposta do livro, mas reduzindo significativamente o impacto político e a força que esse envolvimento tem na vida da personagem principal e de seus contatos mais importantes. O comunismo como ideia-força dessa juventude retratada, o papel heroico e ambíguo de Stalin na guerra (haja visto o pacto de não-agressão firmado com Hitler), a opressão que se seguiu, assim como o papel do Reino Unido como aliado preferencial dos norte-americanos, porém, reticente em relação aos soviéticos, o rompimento do que restava do pacto civilizatório com o ataque brutal da bomba em Hiroshima e Nagasaki e o desequilíbrio do mundo com a emergência da superpotência dos Estados Unidos, tiveram um papel de fundamental relevo na trama. Isto é claro no livro, mas tímido no filme. Os elementos românticos da narrativa são mais explorados pelo filme do que talvez fosse necessário. Parece que houve uma preocupação de tornar mais palatável ao grande público uma trama que deixasse a contextualização política num plano mais geral, sem entrar em muitos detalhes. No entanto, a espionagem em si é apenas um elemento do sentimento político reinante naquele período da história. Não é o centro dela, embora seja o elemento detonador que une o presente ao passado. Evidentemente, o nome da grande atriz inglesa Judi Dench, que faz Joan idosa nos dias atuais, vai atrair o público aos cinemas. Seu papel, porém, é relativamente pequeno, já que o maior tempo é dedicado ao relembrar do passado que está sub judice da Joan jovem, papel de Sophie Cookson, que está bem, mas não passa a densidade política que a personagem precisaria ter. O elenco como conjunto é muito bom, a produção é bem cuidada, a caracterização de época é ótima, oferecendo um programa cinematográfico de boa qualidade. Mas o livro que inspirou o filme, lançado pela editora Record, aprofunda questões que “A Espiã Vermelha”, no cinema, não conseguiu explorar suficientemente.
Varda por Agnès é filme-testamento de uma artista imensa
Agnès Varda (1928-2019) foi uma das maiores diretoras do cinema, em toda a sua história de mais de 120 anos. Considerada precursora da nouvelle vague, pelo filme “Le Pointe Courte”, em 1954, participou desse período muito especial do cinema francês, que deixou frutos permanentes até hoje, ao lado de seu marido Jacques Demy (1931-1990), François Truffaut (1932-1984), Jean-Luc Godard (nascido em 1930), Alain Resnais (1922-2014), Eric Rohmer (1920-2010), Jacques Rivette (1928-2016), Claude Chabrol (1930-2010), Louis Malle (1932-1995) e outros. Como se vê, um time de peso, que tem nessa mulher feminista, preocupada com as causas sociais, um de seus maiores destaques, como cineasta e multiartista. Ela realizou seu último filme, este “Varda por Agnès”, pouco antes de falecer, aos 90 anos. Está sendo lançado agora, postumamente. Quando um cineasta importante morre, costumamos buscar na sua obra, sobretudo nas produções finais, um filme-testamento, aquele que serviria de síntese ou deixasse a marca definitiva de seu trabalho. No caso de Varda, ela mesma se encarregou de fazer seu testamento artístico, por meio de um balanço pessoal de seu legado cinematográfico, ao abordar seus filmes que obtiveram maior destaque, já que sua obra é grande demais para ser toda lembrada. Foram 64 anos de dedicação ao cinema. Em “Varda por Agnès”, ela expõe os três pilares do seu fazer cinematográfico: a inspiração, a criação e o compartilhar. E comenta o início de sua trajetória com “Le Pointe Courte”, fala de “Cleo das 5 às 7” (1962), que se detém em duas horas de perambulação de uma mulher jovem por Paris, enquanto aguarda o resultado de um exame para saber se tem ou não câncer. Passa por “As Duas Faces da Felicidade” (Le Bonheur, 1965), que mexeu com os valores da época de forma suave mas firme, ao questionar a possibilidade de amor simultâneo por duas pessoas. Comenta os trabalhos dedicados a Demy, o grande amor de sua vida, com quem viveu de 1962 até sua morte, em 1990. “Jacquot de Nantes” (1990) trata das recordações de infância e “O Universo de Jacques Demy” (1993), da obra dele, que ela trabalhou bastante para restaurar e preservar. Trata também do belo filme de ficção que fez em 1985, “Os Rejeitados” ou “Sem Teto Nem Lei”, de “Jane B. por Agnès” (1987), dos magníficos documentários “Os Catadores e Eu” (2002), “As Praias de Agnès” (2008) e “Visages Villages” (2017), de outros trabalhos na fotografia, nas artes plásticas, com instalações muito criativas, inclusive uma casa feita de películas de filmes. Enfim, ela expõe com simplicidade e consciência do que fez, uma obra artística monumental. Não por acaso, ela recebeu, em 2015, a Palma de Ouro honorária do Festival de Cannes e também o Oscar honorário, em 2017, ambas premiações pelo conjunto da obra. Agnès Varda deixa um grande legado para a história do cinema, que merece ser visto e revisto, concluído por esse trabalho-testamento, que chega em boa hora aos nossos cinemas. “Varda por Agnès” é um filme obrigatório para quem gosta de cinema e para quem quer conhecer mais dessa senhora cineasta, pequena no tamanho, imensa na arte.
Amanda reflete perda e inconformidade com o mundo atual
Amanda é o nome de uma garota de 7 anos de idade (Isaure Multrier), que terá de encarar uma mudança muito grande de vida, já tão cedo. Elaborar uma grande perda, realizar novas adaptações e reconstruir a existência é algo exigente demais para uma criança dessa idade, por mais viva e inteligente que ela seja. Na dimensão do adulto jovem, o filme trabalha a questão da identidade ainda em construção de David (Vincent Lacoste), de 20 anos, que terá de deixar um jeito blasé de lidar com a vida, quando uma exigência incontornável o fará assumir alguma coisa para a qual decididamente não está preparado. Seus modestos trabalhos como podador de árvores e entregador de apartamentos alugados para turistas, enquanto tenta conquistar a bela locadora Lena (Stacy Martin), serão atropelados pelo destino. Destino não é bem a palavra. O que abala sua vida é um atentado terrorista realizado por um atirador numa praça de Paris, sem motivação conhecida. Desses que têm mesmo acontecido por lá e em várias outras partes do mundo. E que de maneira inesperada e violenta atingem a população civil, produzindo o caos na vida das pessoas e na sua comunidade mais próxima. E gerando medo em todos. No entanto, a vida sempre continua e, com os recursos que cada um já tem ou procura adquirir, ela se reorganiza, podendo gerar novas descobertas e impulsionar o crescimento das pessoas. A crise pode realmente produzir novas e surpreendentes situações, que são transformadoras. “Amanda” é um filme de afetos e de drama, com respiros de leveza, apesar do tema dolorido. Sua narrativa é envolvente, realista, surpreendente. Sem pieguismo, sem lições de moral, o que seriam iscas fáceis de serem perseguidas num assunto como esse. O elenco tem um ator extraordinariamente natural e convincente, Vincent Lacoste (de “Primeiro Ano”), a quem acompanhamos o tempo todo, vivendo suas aflições, mas também sua forma simples de se relacionar com os outros, numa interpretação em baixo tom, mas sem peso, até alegre. Entre risonha e envergonhada, eu diria. A menina estreante Isaure Multrier é viva, exuberante, esperta, mas também capaz de nos transmitir a dor e o incômodo que sente nos momentos mais dramáticos do filme. O elenco é complementado por duas atrizes jovens muito expressivas e de interpretações firmes: a mais conhecida Stacy Martin (a “Ninfomaníaca”) e Ophélia Kolb (“A Incrível Jornada de Jacqueline”. Ao vê-las, no auge da juventude, marcadas por momentos trágicos, o sentimento é de inconformidade com o mundo violento em que vivemos. Afinal, o filme de Mikhaël Hers (“Aquele Sentimento do Verão”) fala de hoje e da mítica cidade-luz, farol do mundo.
Tudo o que Tivemos dramatiza dilema familiar diante do Alzheimer
Uma mulher idosa sai de casa a pé e caminha por uma nevasca. O passo seguinte é a família, marido e dois filhos, um que vive próximo ao casal e outra, que vem de cidade diferente, entrarem em pânico e fazerem buscas para encontrar a idosa desaparecida. Claro, o que está em jogo aqui é um comportamento determinado pela doença de Alzheimer, que envolve conflitos e decisões difíceis a afetar toda a família. Em “Tudo o que Tivemos”, Blythe Danner (“Entrando numa Fria”) é a idosa com Alzheimer. Robert Forster (“Jackie Brown”) é o marido com quem ela viveu 60 anos de amor e que crê que pode continuar cuidando dela e amando-a como sempre aconteceu, em casa, sem mudanças. O filho que está sempre com eles, porque vive próximo, Michael Shannon (“A Forma da Água”), já encontrou a saída, um lugar muito apropriado para internar a mãe, enquanto o pai ficaria próximo, em outro local apropriado. Será preciso vender a casa onde vivem. Hilary Swank (“Menina de Ouro”) encarna o papel da filha mais distante, que pode se permitir parar para pensar e considerar todas as possibilidades. O que mais interessa na trama do filme é esse conflito básico que hoje muitas famílias enfrentam, no mundo todo, e que não é nada fácil. Não há muita novidade na narrativa, concebida e conduzida pela diretora estreante Elizabeth Chomko, nem qualquer inovação a apontar. O filme é uma boa produção independente, convencional na forma, que vale por um ótimo elenco e um tema cada vez mais presente e relevante nos dias atuais, em que a longevidade alcançada pela medicina exige novos approaches humanos.
O Último Lance coloca arte e afeto em primeiro plano
“O Último Lance” é uma das poucas possibilidades para se assistir a filmes finlandeses na tela grande (ou em qualquer tela, na verdade) no Brasil. É um bom trabalho, que dá chance para pensarmos em questões de relacionamento familiar e geracional e nas relações da arte com o mercado. O personagem Olavi (Heikki Nousiainen), de 72 anos, é marchand, dono de uma antiga loja de arte figurativa em Helsinki. Ele cuida da loja, como sempre fez há muitos anos, no estilo mais tradicional, mas com muito cuidado e carinho. É um amante das artes, muito dedicado a elas. Dedicação que falta em relação a sua própria família, filha e neto. Pressionado a admitir seu neto de 15 anos, Otto (Amos Brotherus), como estagiário em seu negócio, ele aprenderá a conviver, mesmo que inicialmente a contragosto, com as novidades tecnológicas, o informalismo e o dinanismo do jovem. O que acabará por lhe ser muito útil, quando ele resolver tentar um lance arriscado, que sua experiência lhe recomenda. Mas que pode ser o fim de seu comércio, já cambaleante há tempos. Será também uma oportunidade de rever erros passados e encontrar novos caminhos para o relacionamento familiar conturbado, especialmente com a filha Léa (Pirjo Lonka). A injeção de sangue jovem de seu neto será reveladora de que sempre é preciso estar aberto ao mundo, superar preconceitos, aceitar e valorizar a ajuda, ao mesmo tempo em que também é necessário defender–se da malandragem e da falta de ética que pululam no chamado mercado. Bem turbinado nos dias atuais. O valor da arte, no caso da pintura, no mercado tem muito de especulativo na venda de coisas como confiança, autenticidade, assinaturas legítimas ou ausentes. Tal como ações na Bolsa, os leilões podem trazer grandes ganhos ou grandes prejuízos. Enriquecimento ou ruína. O filme do diretor Klaus Härö (“O Esgrimista”) desenvolve uma narrativa tradicional, acompanhando seu protagonista. Mas tem uma bela fotografia, em tons dourados e escuros, que remete à arte pictórica que é o centro da trama. Tem um grande ator no papel central, um jovem ator que dá conta do recado e uma atriz intensa nas emoções. Enfim, um elenco capaz de nos transmitir a importância e o significado do afeto nas vidas humanas. Todo o suspense que o filme apresenta está escorado na questão afetiva, enquanto a pintura ocupa o primeiro plano, especialmente a de Ilya Repin (1844-1930), um dos mais importantes artistas do realismo russo.
Sobibor recria com realismo levante histórico da 2ª Guerra Mundial
Sobibor foi um campo de concentração conduzido pela Alemanha nazista na Polônia, nos anos de 1942 e 1943, que chegou a exterminar cerca de 250 mil prisioneiros judeus, de diversas nacionalidades. Entre eles, os russos. Foi um prisioneiro de guerra soviético, o oficial Alexander Pechersky, que conseguiu realizar o impensável: organizar um motim de detentos que assassinou os 12 principais comandantes alemães do campo e resultou numa fuga em massa, de 300 pessoas, na única ação desse tipo bem sucedida durante toda a 2ª Guerra Mundial. Ainda que muitos dos fugitivos tenham sido mais tarde capturados e mortos, foi um feito e tanto. Os compatriotas de Pechersky que sobreviveram engrossaram as linhas defensivas russas na guerra. Não surpreende que Alexander Pechersky tenha se tornado um grande herói russo, postumamente premiado com a Ordem de Bravura, e que hoje é celebrado nos livros escolares de História, dá nome a uma Fundação, teve um busto inaugurado em 2017, uma exposição no Museu da Vitória e inspirou vários livros publicados sobre os fatos. Um poema “Luca“ dedicado à rebelião deu origem a uma campanha internacional de resgate dessa memória e dos atos corajosos, heroicos, de todo o grupo comandado por Pechersky. Uma ação que conseguiu ser realizada apesar do estrito controle de uma prisão tenebrosa, envolvendo diferentes idiomas. Neste filme russo “Sobibor”, de 2018, dedicado ao 75º aniversário da rebelião no campo de concentração nazista, o elenco representa essa diversidade de línguas – os personagens falam russo, alemão, polonês, holandês e iídiche. Um trabalho de peso, em busca da autenticidade, que exigiu bastante do diretor e também protagonista do filme, Konstantin Khabenskiy – que estreia como diretor de longas. O processo de criação e reconstrução desse episódio foi especialmente complicado, apesar da existência de objetos, fotos, informações escritas e outras. Sobibor foi inteiramente destruído, para que nada de sua estrutura física restasse, e o terreno recebeu o plantio de muitas árvores. O filme consegue recuperar essa estrutura física histórica, o que é importante para que o espectador tenha a dimensão dos fatos nos espaços correspondentes. Direção de arte, fotografia e um elenco talentoso dão à produção grande sustentação. “Sobibor” é eficiente, ao mostrar o cotidiano, a realidade do campo de extermínio, os sentimentos dos personagens, e alcança bom resultado em termos de ação e suspense, ao mostrar como a revolta se formou e se desenvolveu. A questão do heroísmo numa luta para combater o mal escapa ao clichê, na medida em que o nazismo conseguiu ser pior do que a mais cruel das ficções poderia imaginar. Assim, esse movimento político de extrema direita, variante requintada do fascismo, acabou virando a própria representação desse mal. Os que conseguiram combatê-lo e vencê-lo, ainda que parcialmente, certamente merecem a designação de heróis. O filme foi baseado no livro “Alexander Pechersky: Breakthrough to Imortality”, de Ilya Vasilyev, que inclui as memórias de Pechersky e o poema “Luca”, de Mark Geylikman. O autor é chefe da Fundação Pechersky e produtor criativo do filme. Apesar de o assunto ser pouco conhecido e difundido internacionalmente, “Sobibor” não é o primeiro filme sobre o tema. Em 1987, Rutger Hauer protagonizou o telefilme britânico–iugoslavo “Fuga de Sobibor”, que chegou ao mercado internacional em DVD. Agora, com “Sobibor” tendo representado a Rússia na disputa do Oscar de filme estrangeiro, a história conquista uma parcela do público mundial mais expressiva.











