
Divulgação/Festival de Tiradentes - Universo Produção
Jean-Claude Bernardet, referência da crítica de cinema, morre aos 88 anos
Intelectual belga naturalizado brasileiro marcou gerações como crítico, cineasta, escritor e professor, e teve legado reconhecido em obras e homenagens
O adeus a um mestre
Um dos nomes mais influentes da crítica cinematográfica nacional, Jean-Claude Bernardet morreu neste sábado (12/7), aos 88 anos. A informação foi confirmada pelo cineasta Eugênio Puppo, colaborador próximo em projetos que exploraram a relação entre cinema e jornalismo. Amigos relataram que Bernardet sofreu um AVC e estava internado no Hospital Samaritano, em São Paulo.
O intelectual belga naturalizado brasileiro, portador do vírus HIV, convivia com a saúde fragilizada devido a um câncer de próstata reincidente, não tratado com quimioterapia, e problemas de visão causados por degeneração ocular. O velório está marcado para domingo (13), na Cinemateca Brasileira, em São Paulo, das 13h às 17h. Segundo Eugênio Puppo, a filha do crítico, Lígia Bernardet, viaja dos Estados Unidos para o funeral.
Uma vida marcada pelo cinema
Nascido na Bélgica em 1936 e criado em Paris, Bernardet chegou ao Brasil com 13 anos. Sua trajetória incluiu atuação, direção, roteiro, docência e publicações, influenciando gerações no cinema brasileiro.
A jornada começou como cineclubista, professor e crítico. Durante os anos 1950, Bernardet trabalhou na Cinemateca Brasileira e integrou o cineclube do Centro Dom Vital, onde começou a escrever críticas — inicialmente sobre cineastas internacionais, depois voltando-se para a produção nacional e dialogando com nomes do Cinema Novo. Seus textos influentes também defendiam o vigoroso cinema paulista, representado por “São Paulo S/A”, de Luis Sergio Person. As críticas inspiraram o convite de Person para que escrevesse “O Caso dos Irmãos Naves”, sua estreia na indústria cinematográfica em 1967, baseado em caso real de tortura durante o Estado Novo.
Paralelamente, publicou “Brasil em Tempo de Cinema” (1967), considerado um marco da crítica ao Cinema Novo, e ajudou a criar o curso de cinema na UnB. A ditadura militar o proibiu de dar aulas, então ele se tornou ator, aparecendo em dezenas de filmes a partir de “Anuska, Manequim e Mulher” (1968) e até contracenou com Zé do Caixão em “O Profeta da Fome” (1969). Em 1970, juntou-se ao cineasta João Batista de Andrade para começar a carreira de diretor, assinando em parceria três documentários consecutivos – “Paulicéia Fantástica” (1970), “Eterna Esperança” (1971) e “Vera Cruz” (1972). Em 1974, ainda roteirizou “A Noite do Espantalho”, de Sergio Ricardo, passando a se dedicar aos livros em seguida.
A carreira após o fim da ditadura
A Anistia de 1980 o devolveu às aulas na USP e alimentou sua produção literária. Ao todo, Bernadet publicou 25 livros, entre críticas, historiografia e ficção, com títulos como “Piranha no Mar de Rosas” (1982), “Cineastas e Imagens do Povo” (1985), “Voo dos Anjos: estudo sobre o Processo de Criação na Obra de Bressane e Sganzerla” (1990), “O Autor no Cinema” (1994), “Historiografia Clássica do Cinema Brasileiro” (1995), “A Doença, uma Experiência” (1996) e “Caminhos de Kiarostami” (2004).
A escrita cinematográfica também seguiu em filmes de Tata Amaral, como “Um Céu de Estrelas” (1996), “Através da Janela” (2000) e “Hoje” (2011). Também escreveu e estrelou “FilmeFobia” (2008) e “Periscópio” (2013), de Kiko Goifman, “Fome” (2015), de Cristiano Burlan, e “Uma Noite Não é Nada” (2019), de Alain Fresnot, e voltou a dirigir com o curta “São Paulo – Sinfonia e Cacofonia” (1994), que reuniu fragmentos de 100 filmes rodados na capital, e o longa “#eagoraoque” (2020), feito em parceria com Rubens Rewald. Foi premiado quatro vezes no Festival de Brasília, três delas como Roteirista (“O Caso dos Irmãos Naves”, “Um Céu de Estrelas” e “Hoje”) e a quarta como ator (“FilmoFobia”).
Luta contra doenças e últimos trabalhos
Nas últimas décadas, porém, Bernardet enfrentou lutas persistentes por sua saúde. Foi diagnosticado com HIV ainda nos anos 1990 e também convivia com um câncer de próstata reincidente, optando por não se submeter a quimioterapia por considerar os efeitos colaterais “agressivos”. Para completar, sua saúde visual se deteriorou devido a uma degeneração ocular que comprometeu seriamente a visão. Em seu livro “O Corpo Crítico” (2021), Bernardet criticou o sistema médico que prioriza o lucro em detrimento da qualidade de vida dos pacientes. Ele descreveu seu estado com palavras duras: “Vivo num clima de morte, respiro a morte. […] A opressão me sufoca”
Até o fim, ele se manteve ativo intelectualmente. Em agosto de 2024, recebeu retrospectiva inédita no CCBB de São Paulo, Brasília e Rio de Janeiro, destacando os filmes em que participou como diretor, roteirista ou ator. No mesmo ano, codirigiu o curta “A Última Valsa” (2024) com Fábio Rogério e atuou em “Ulisses”, de Cristiano Burlan, seu último trabalho nas telas.
Como o cinema brasileiro reagiu à perda de Bernardet?
A Cinemateca Brasileira, onde Bernardet trabalhou e cujo acervo preserva documentos do crítico, manifestou pesar em nota: “figura central e incontornável do pensamento e da produção cultural brasileira, na historiografia do cinema nacional”. O Arquivo Jean-Claude Bernardet, doado em 1988, recebeu novas contribuições do próprio autor nos anos seguintes. “Um nome de importância ímpar nos estudos de cinema no Brasil, teve uma capacidade excepcional de análise de forma totalizante, acreditando na interlocução entre a crítica e a produção cinematográfica”.
A Abraccine lembrou do livro “Bernardet 80: Impacto e Influência no Cinema Brasileiro” (2017), organizado por Ivonete Pinto e Orlando Margarido. “À época do lançamento, Ivonete Pinto destacou Bernardet como ‘o intelectual mais produtivo em ação; o mais polêmico, o mais inventivo e que tem, dentro do cinema, os mais variados interesses’. Orlando Margarido ressaltou Bernardet como ‘um pensador em busca de se redefinir sempre’”.
Anna Muylaert, diretora de “Que Horas Ela Volta?”, escreveu nas redes sociais: “Jean Claude, patrimônio nacional, partiu desse mundo e com ele um tanto da beleza do mundo inquieto e profundo que ele nos ensinou a ver. Obrigado mestre por ser tanto e tantas coisas. Pra sempre em nossos corações e mentes”.