Por que “Vale Tudo” fracassou? Medo de refletir o Brasil real

Adaptação do texto, direção contestada, escalação do elenco e mudanças em personagens estão no centro da insatisfação com a novela das nove da Globo

Divulgação/Globo

Remake enfrenta rejeição com comparações negativas

O remake de “Vale Tudo”, em exibição desde 31 de março na faixa das nove da Globo, terminou a última semana como a novela original menos assistida da Globo. Concebida para celebrar os 60 anos da emissora, a produção perdeu espaço para “Garota do Momento” e “Dona de Mim”, novelas das seis e das sete, além de sofrer pressão da reprise de “Tieta” e da estreia de “A Viagem” no “Vale a Pena Ver de Novo”. Mesmo com a aceleração da trama promovida pela Globo na edição dos capítulos mais recentes, a insatisfação do público só tem aumentado.

A decisão de realizar cortes na história para tornar os capítulos mais ágeis faz parte dos sintomas da baixa audiência. A mesma estratégia marcou a trajetória de “Mania de Você”, considerada o maior fracasso do horário.

Críticas nas redes sociais

A Globo assumiu, desde o fracasso do BBB 25, um discurso que valoriza a repercussão nas mídias sociais. A lógica aplicada pelo chefão da emissora, Amauri Soares, para contestar a baixa audiência do reality foi que o programa estava sendo muito falado nas redes. “Vale Tudo” também, e pelos mesmos motivos. Ambos lideram tópicos do X por críticas negativas ao que estão entregando. O canal vê os números e enxerga de forma positiva, sem considerar o tom negativo do conteúdo. Se tivesse um olhar mais atento, compreenderia melhor as causas dos desacertos.

Os consensos sobre os motivos do fracasso da nova versão da novela clássica dos anos 1980 são claros.

Adaptação genérica

O primeiro grande ponto de desgaste é o texto da adaptação. A condução de Manuela Dias optou por alterações profundas na estrutura original, cortando cenas emblemáticas, acelerando conflitos e impondo uma nova lógica à personalidade de personagens clássicos. O que era esperado como celebração da força dramatúrgica de Gilberto Braga se transformou em uma trama repleta de passagens breves, diálogos menos sofisticados e motivações apressadas, sem tempo para que o público desenvolvesse empatia ou identificação.

Essa quebra de expectativa, reforçada pelo histórico do sucesso original, se agravou com a ausência de figuras ligadas ao texto clássico ou ao autor Gilberto Braga, como Aguinaldo Silva e Ricardo Linhares, no processo de criação. O resultado é uma narrativa que frequentemente soa estranha mesmo para quem não assistiu à primeira versão, pois carece de densidade emocional e da famosa elegância dos diálogos que fizeram de “Vale Tudo” um marco dos anos 1980.

Ausência do Padrão Globo de Qualidade

A direção de Paulo Silvestrini, segundo ponto de desgaste, não conseguiu criar o ritmo e a atmosfera que a história exige. O remake sofre com falhas de continuidade, cenas de impacto visual limitado e ausência de elementos clássicos como trilha incidental marcante. O Padrão Globo de Qualidade, que durante décadas serviu como referência de produção, virou alvo de comparação negativa, seja pela simplicidade de sets ou por soluções cenográficas que não sustentam o peso dramático das sequências.

Elenco mal escalado

O elenco também se tornou um fator de polêmica desde o anúncio da escalação. Bella Campos, à frente da protagonista Maria de Fátima, enfrenta resistência e se tornou símbolo das críticas. Enquetes e debates nas redes sociais evidenciam o distanciamento do público em relação à sua interpretação, agravado por episódios de tensão nos bastidores, como a discussão com Cauã Reymond, o César Ribeiro. Outros papéis relevantes também foram enfraquecidos ou descaracterizados, incluindo Afonso (Humberto Carrão), Heleninha (Paolla Oliveira), Leila (Carolina Dieckmann) e Eugênio (Luís Salém), que perderam funções essenciais na dinâmica da novela.

Mudanças rejeitadas

A rejeição ao elenco e às alterações no roteiro ganhou desdobramentos nas redes sociais e motivou uma série de memes e comentários irônicos sobre cenas consideradas forçadas ou incoerentes. O público não perdoou, por exemplo, a decisão de transformar Odete Roitman em uma vilã cômica, com apetite sexual exagerado e até envolvimento em jogos de realidade virtual — recursos que destoaram da construção original da personagem.

Mudanças tecnológicas e sociais, necessárias para atualizar o enredo, acabaram criticadas como enxertos artificiais, comprometendo a credibilidade da narrativa. Situações vistas como excesso de contemporaneidade se tornaram datadas — conversas sobre “resistência” e “black blocks”, por exemplo — viraram motivo de piada.

O peso das comparações

Qual a diferença do remake de “Vale Tudo” para outras regravações bem-sucedidas, como “Pantanal” e até “A Viagem”, atualmente com boa audiência em reprise nas tardes? Para Antônio Fagundes, intérprete de Ivan na versão original o folhetim de Gilberto Braga, o problema está justamente na possibilidade de comparação. Ele apontou que “Vale Tudo” está disponível para ser revista no Globoplay, o que torna inevitável a análise cena a cena e aumenta o grau de exigência. Já tramas como “Pantanal” e a primeira versão de “A Viagem” eram praticamente desconhecidas da maior parte do público atual, por não poderem ser acessadas digitalmente.

Falta de coragem para incomodar

O que qualquer um com acesso às duas versões é capaz de notar é a falta de coragem do remake. Enquanto o original gerava falas icônicas em sua capacidade de afrontar o público com cenas e diálogos que escancaravam o racismo, o preconceito social e o cinismo da elite, a nova versão evita maiores polêmicas.

Só que o incômodo era justamente o DNA da novela: os personagens exibiam, sem disfarce, o pior do Brasil, expondo falas xenófobas, atos de corrupção e a hipocrisia das classes privilegiadas. O remake ameniza tudo, neutralizando o que poderia ofender para soar mais “atual”. Na ânsia de mostrar um país “mais evoluído”, a novela ignora que, em muitos sentidos, o país na verdade involuiu, com a elite conservadora cortando direitos da população no Congresso Nacional e viralizando com discursos preconceituosos nas redes sociais. O resultado é uma trama sem potência diante do Brasil real, ao contrário do texto de Gilberto Braga.

Novela ainda busca reação

A Globo continua realizando ajustes em “Vale Tudo” na tentativa de reverter a queda de audiência e conter a rejeição do público. Mas a trajetória do remake, marcada por comparações negativas e críticas intensas, permanece em descendência diária na medição do Kantar Ibope.