Ficção versus realidade sertaneja
O anúncio das atrizes Gabz e Isadora Cruz como protagonistas de “Coração Acelerado”, próxima novela das 19h da Globo, chama atenção para uma disparidade histórica: enquanto a ficção aposta em duas cantoras negras no centro da trama sertaneja, a realidade do gênero musical ainda é marcada por predominância branca e espaço restrito para artistas negras.
Gabz, reconhecida por sua atuação em outros gêneros musicais, fará par com Isadora Cruz em uma trama que destaca a formação de uma dupla feminina de sucesso no sertanejo. A escolha do elenco destaca o atual momento de valorização da diversidade na dramaturgia da emissora, mas contrasta com os principais palcos e listas do mercado sertanejo brasileiro, onde vozes negras são exceção.
Por que a presença de cantoras negras no sertanejo é tão rara?
A escassez de artistas negras de destaque no sertanejo é reconhecida por especialistas e pelo próprio público do gênero. Mas a Globo ignorou isso até na série “Rensga Hits!”, em que buscou aumentar a representatividade ao escalar Jeniffer Dias. Não por acaso, a própria atriz destacou em entrevistas a dificuldade de encontrar referências negras no gênero.
Nem é preciso pesquisar muito para perceber: o sertanejo, um dos gêneros musicais mais populares do país, é majoritariamente marcado pela presença de artistas brancos e pardos claros – que não se autodenominam negros. Desde a popularização do ritmo, poucos nomes declaradamente negros conseguiram destaque em carreira nacional. E as raras exceções são todas masculinas. Entre eles, estão João Paulo, que formou dupla com Daniel até sua morte em 1997, e as duplas Pena Branca & Xavantinho e Rick & Renner — Rick segue em carreira solo desde 2015. No mainstream feminino, onde se enquadra Yasmin Santos, de pele mais clara, o abismo racial oferece um desafio maior. Mesmo artistas pardas – algumas bem famosas – buscam se distanciar do identitarismo.
O que esperar da abordagem da novela?
Sem detalhes sobre a trama, ainda não se sabe se “Coração Acelerado” vai abordar as dificuldades enfrentadas por artistas negras no sertanejo ou criar um cenário de fantasia em que não existem barreiras raciais no gênero.
Caso a discussão sobre diversidade e obstáculos reais seja ignorada, a novela poderá ser encarada como um faz de conta sem compromisso com a realidade. Por outro lado, a produção também pode optar por refletir os problemas claros do gênero e, assim, encabeçar o debate sobre a urgência de representatividade no último bastião da branquitude na música brasileira. Nos Estados Unidos, Beyoncé já popularizou esta pauta em relação à música country.