Após uma quinta-feira (7/9) triste, marcada por apresentações protocolares de bandas de pop dançante como Maroon 5 e Chainsmokers, o dia dedicado ao rock foi um oásis no festival The Town.
A programação apresentou-se como um espelho do próprio gênero: repleto de contrastes, nostalgia e experimentação. Numa demonstração poderosa do protagonismo feminino no cenário atual, cantoras como Pitty, Shirley Manson (do Garbage), Karen O (do Yeah Yeah Yeahs) e as jovens do Wet Leg chamaram atenção de forma positiva, ressaltando a diversidade do rock em suas múltiplas vertentes. E, cereja do bolo, Foo Fighters se provou o melhor headliner do evento.
O melhor do rock brasileiro
Pitty inaugurou o dia no palco Skyline com uma performance que homenageou os 20 anos de seu álbum de estreia, “Admirável Chip Novo”. A cantora surpreendeu o público ao colaborar com a Nova Orquestra, grupo sinfônico de jovens talentos, que enriqueceu o conjunto da obra, transformando o show em um evento multidimensional.
O álbum “Admirável Chip Novo” não é apenas o primeiro capítulo na trajetória musical de Pitty, mas também um marco do rock brasileiro. Lançado em um período de declínio do gênero no país, o disco ajudou a revitalizá-lo, abrindo espaço para uma nova geração de artistas nos anos 2000 com hits como “Teto de Vidro”, “Máscara” e “Equalize”.
Mesmo 20 anos após seu lançamento, o repertório demonstrou seu impacto duradouro, refletido no entusiasmo unânime dos presentes. Com uma presença carregada de nostalgia, mas também de muito significado, a cantora mostrou o valor do rock brasileiro num dia cheio de bandas americanas.
O pior do rock brasileiro
Por outro lado, o festival também teve maus exemplos do rock nacional. No palco The One, a aparição do Detonautas marcou principalmente pela falta de originalidade e pela participação questionável do convidado Vitor Kley. Terno Rei, com seu indie confortável, caiu no clichê com cover de Legião Urbana. Já o Barão Vermelho fez pior que isso. Agora com seu terceiro vocalista, Rodrigo Suricato, virou praticamente uma banda cover, tocando inclusive o repertório solo de seus antigos vocalistas, Cazuza e Roberto Frejat.
Show da MTV dos anos 1990
A primeira atração internacional da noite, Garbage, fez uma apresentação marcante, com um setlist que privilegiou sucessos da MTV dos anos 1990. “Somos sobreviventes dos anos 1990, estamos honrados em estar aqui”, disse a cantora Shirley Manson, que cativou o público, especialmente ao tocar hits como “Only Happy When it Rains” e “Stupid Girl”.
A banda mantém a mesma energia, sete anos desde sua última passagem pelo Brasil. Butch Vig, produtor de álbuns icônicos como “Nevermind” do Nirvana e “Siamese Dream” do Smashing Pumpkins, equilibra o som com sua bateria precisa. Shirley Manson, por sua vez, comanda o palco com sua voz multifacetada, capaz de mergulhar em lamentos etéreos ou proclamar uma revolta punk, com direito a cantar cover de “Cities in Dust”, clássico gótico de Siouxsie and the Banshees. Faixas mais recentes do álbum “No Gods No Masters” de 2021 também tiveram espaço, ainda que em menor quantidade.
A cantora não poupou palavras durante a performance. “A vida é estranha, não sabemos se vamos voltar. Esperamos que sim, mas somos velhos e cansados”, expressou a cantora de 57 anos. A artista também fez questão de motivar a plateia: “Sejam corajosos e gentis. Amem a si mesmos, nós te amamos, São Paulo, obrigada por tudo”.
Dissonância no festival
O Yeah Yeah Yeahs subiu ao palco Skyline do festival The Town em uma posição delicada. Convocado para preencher o espaço deixado pelo Queens of the Stone Age, que cancelou por “orientações médicas”, o grupo nova-iorquino tinha a difícil tarefa de conquistar um público que esperava por algo completamente diferente.
Formado nos anos 2000, o grupo liderado por Karen O fez sua primeira apresentação no Brasil em uma década, felizmente privilegiando as músicas mais antigas do que o repertório do álbum “Cool it Down”, lançado em 2022, que não agradou. O repertório incluiu “Zero”, “Heads Will Roll”, que trouxe uma chuva de papel picado, o rock de “Date with the Night” e a icônica “Maps”, que foi dedicada ao Queens of the Stone Age, Shirley Manson do Garbage e Dave Grohl do Foo Fighters, numa tentativa de engajar o público.
Logo após “Maps” veio momento mais inusitado da noite, quando Karen O interrompeu o show perplexa com uma mulher presa na tirolesa, que cruzava o espaço à frente do palco. “Ela está bem. O socorro chegou”, informou.
Foi um concerto em clima ambíguo, com um instrumental dissonante/atmosférico de arrepiar e uma performance energética da cantora, que emocionou os fãs. O problema é que quase não haviam fãs, já que a plateia indiferente apenas aguardava o Foo Fighters, a próxima atração.
Fofura indie para poucos
A emergente banda britânica Wet Leg, liderada pelas vocalistas e guitarristas Rhian Teasdale e Hester Chambers, trouxe frescor ao line-up do evento. Com um único álbum e apenas um quase hit, “Chaise Longue”, o grupo indie fechou o palco The One sem iluminação especial, convidados ou covers, mas com crise de choro e timidez, diante da plateia mais esvaziada do dia.
Enquanto muitos se acomodavam para a chegada do Foo Fighters no palco principal, o Wet Leg fez uma grande entrega emocional do repertório de seu único disco. O horário não favoreceu o grupo, que fez o último show da turnê atual. A certa altura, Rhian se sentou no palco e começou a chorar, enquanto Hester repetia como estava impressionada por tocar no Brasil, falando para dentro, quase balbuciando. Elas são de uma cidadezinha pequena de uma ilha que só tem acesso à Inglaterra de barco, e a timidez foi tanta que Rhian tocou de costas quase todo o tempo, quando não se escondeu no fundo do palco.
O som do Wet Leg combina elementos de pós-punk e influência de bandas dos anos 1990 como Breeders, com muitas letras irônicas e uma fofura que só bandas indie preservam. Mas tocou no festival errado. Seria um estouro no Primavera Sound.
O fecho triunfal
O encerramento ficou por conta da banda mais esperada da noite. Após o cancelamento do show do Foo Fighters em 2022 devido à morte do baterista Taylor Hawkins na véspera, a volta da banda americana ao Brasil levou o Autódromo de Interlagos a um estado de euforia coletiva. Liderada pelo vocalista Dave Grohl, a apresentação se transformou em um misto de tributo e celebração.
Impactado pela quantidade de pessoas e o entusiasmo do público, Dave Grohl expressou sua surpresa diversas vezes, pedindo para as luzes se acenderem, de modo a ter a noção exata da plateia, que ele regeu com corais de refrões e gritos numa verdadeira catarse. “Amo tocar para vocês. A plateia brasileira é louca. Já tocamos em vários lugares, mas os brasileiros… É verdade. E vocês sabem disso, né?”, afirmou o músico, banhado pelo “mar de luzes” formado pelos celulares.
O show também se tornou um momento para homenagear Taylor Hawkins. Em um dos pontos altos da noite, durante a execução de “Breakout”, Grohl agradeceu ao baterista Josh Freese, que assumiu as baquetas na ausência de Hawkins. “Por favor, dêem boas vindas calorosas e carinhosas para o cara que tornou possível estarmos aqui essa noite: Josh Freese”, proclamou Grohl. Posteriormente, a banda executou “Aurora”, descrita por Grohl como a canção favorita de Hawkins. “Vamos tocar essa música todos as noites até o fim de nossas vidas. Ela era a preferida do Taylor Hawkins”, ressaltou o vocalista.
O Foo Fighters fez um espetáculo para agradar aos fãs, desfilando hits consagrados como “Learn to Fly” e “My Hero”, além de músicas do álbum mais recente, “But Here We Are”, lançado em julho deste ano. Todas as faixas foram recebidas com entusiasmo durante mais de duas horas, que foram encerradas, de forma apoteótica, com “Everlong”.
Um showzaço de rock, que mostrou que as bandas não precisam fazer metal para tocar pesado, nem gravar música comercial para ter seu repertório cantado integralmente em coro pelo público. Com Grohl conversando com o público o tempo inteiro, foi como se, em vez de mais de 100 mil pessoas, ele tocasse num bar para amigos, numa noite emocional, em que demonstrou enorme prazer de tocar tudo o que o público queria ouvir.
Tudo isso é rock, bebê
Com as guitarras, baixos e baterias, The Town teve sua melhor noite, mostrando que o pop pode atrair gente, mas é o rock que dá a alma a eventos desse porte, com uma entrega total do público. Até a troca do Queens of Stone Age pelo Yeah Yeah Yeahs foi, de certa forma, interessante por ajudar a tornar o line-up mais abrangente, numa mostra da grande diversidade do rock contemporâneo.
Reunindo artistas que marcaram os anos 1990 como Shirley Manson e Dave Grohl, os anos 2000 como Pity e Yeah Yeah Yeahs, e talentos emergentes como Wet Leg, o festival desfilou subgêneros num panorama pouco usual às produções de Roberto Medina, que no Rock in Rio demonstra acreditar que rock é só som pesado, tipo Guns ‘N Roses e Iron Maiden. Rock é muito mais, como o Primavera Sound chega em breve para reforçar.