BBB 23 mostra que Brasil consegue discutir racismo, mas não machismo

O experimento social do “BBB 23” está sendo bem-sucedido em repercutir o Brasil de hoje, pós-bolsonarista e em busca de um discurso mais afinado com as minorias? Foram várias palestras na boca […]

Divulgação/Globo

O experimento social do “BBB 23” está sendo bem-sucedido em repercutir o Brasil de hoje, pós-bolsonarista e em busca de um discurso mais afinado com as minorias? Foram várias palestras na boca do próprio apresentador do programa, Tadeu Schmidt, chamando atenção para a questão racial, inclusa no reality desde a seleção dos integrantes. Mas e a discriminação sexual? Quantas palavras foram gastas contra a objetificação e estereótipos como “omissa”, “histérica”, “fraca”, “chata”, “cadela”, “piranha”, “periguete”. O que a produção mencionou contra o machismo? Relacionamento tóxico no segundo paredão e nunca mais.

Fred Nicácio virou ícone da questão racial no programa, com direito a discurso de Tadeu Schmidt e repercussão nacional. Sofreu preconceito na pele, em episódio de racismo religioso de três supostos aliados brancos, e voltou na repescagem para um ajuste de contas, com planos de fazer um BBP, um Big Brother Preto, militando para eliminar os integrantes brancos e assim conseguir uma final toda preta.

A despedida de Sarah Aline no domingo (16/4) também foi marcada por acenos do apresentador à causa racial. Ele citou até a ativista Angela Davis em seu elogio à militância interna da psicóloga.

Seria este o sinal de um Brasil melhor, curado das feridas do extremismo de direita? Infelizmente, não. Muito longe disso.

Afinal, a pauta do antirracismo foi cooptada pelas páginas de fofocas e colunistas/torcedores de portais, e distorcida de tal forma que criou um personagem novo, o “racista do bem”.

Insuflados pela permissividade das redes, a torcida politicamente correta disparou as maiores barbaridades racistas contra Aline Wirley, apenas por ela ter como aliada três mulheres brancas do quarto Deserto. Foi chamada até de capitã do mato num mutirão em favor de integrante do Fundo do Mar, de mucama, sinhazinha, moradora da casa grande, falsa preta e outras ofensas raciais seríssimas, postadas por gente que acha errado escrever “denigrir” no Twitter. Antirracistas?

Muito poderia ser dito sobre a hipocrisia. Porém, isto desviaria a atenção da questão principal. De como a pauta antirracista se impôs ostensivamente contra a pauta feminista.

O ator Bruno Gagliasso deu exemplo claro no fim de semana de como essa questão se tornou um problema para os ditos progressistas. Em nome de um suposto antirracismo, ele decidiu atacar Betty Faria por ela defender Patricia Poeta na polêmica contra Manoel Soares no “Encontro”, comparando-a a Regina Duarte, heroína do bolsonarismo. Betty o lembrou que estava apenas defendendo uma mulher e apontou a contradição, ao citar que a atitude dele é que era típica do bolsonarismo, de desautorizar mulheres e a defesa de mulheres.

Isto, em suma, é o que o Brasil está vivendo neste “BBB”, num quadro muito mais abrangente que a discussão de duas celebridades pelo Twitter.

Larissa Santos foi a integrante que mais sofreu machismo em todos os 23 anos de História do “BBB”, objetificada e ofendida por seis pessoas diferentes na edição, três brancos e três negros. Mas este fato foi basicamente ignorado pela produção. Não houve uma sílaba de Tadeu Schmidt sobre o assunto, e o tema foi minimizado como costuma acontecer com as vozes das mulheres, como se não fosse importante. Nem após dois integrantes do Deserto serem expulsos por importunação sexual, o tema foi abordado.

Quando Larissa voltou ao programa por repescagem e indicou que Domitila Barros, conhecida por trabalhos de empoderamento feminino, foi uma das que mais a agrediu pelas costas com palavras machistas, todas as páginas agenciadas pela Mynd8 e colunistas cúmplices voltaram-se contra a professora. A vítima de machismo passou a merecer os piores adjetivos dos ditos progressistas. Os tuiteiros não só decidiram interditar sua voz como praticaram gaslighting para esconder ofensas que realmente aconteceram. Ela virou a chata, como a própria produção frisou, ao incluir na tela da Globo um tuite negativo contra seus protestos. Com este aval, o cyberbullying escalou, inativando a dor de Larissa com argumentos do tipo “ela fala errado” e com as mesmas palavras de baixo nível que usaram contra ela no reality.

Apenas isso faria de Larissa exemplo nacional de como o machismo cala mulheres no país. Mas não ficou nisso.

Sua ofensora Domitila, mesmo após reconhecer o erro e pedir desculpas, foi poupada de qualquer comentário negativo da parte dos fofoqueiros e mesmo assim ela e sua torcida se sentiram injustiçadas. Domitila então criou a narrativa de que Larissa tinha vindo “brifada por uma agência” para trazer a “palhaçada” de ser vítima de racismo para a edição, como se ela própria não tivesse admitido que foi realmente machista, reconhecido o erro e pedido desculpas em rede nacional.

Domitila fez esse discurso para todos confinados do Fundo do Mar. Apenas Ricardo Alface protestou. Quando ela trouxe num Jogo da Discórdia, Larissa ficou chocada, explicando que sua “assessoria” era sua família (a mãe e suas irmãs), mais uma voluntária que, por ser da mesma Igreja, veio da Itália para ajudá-la. As redes sociais começaram então a atacar a religião da professora. “É crente” viralizou com mais força que a indignação seletiva contra o preconceito religioso sofrido por Fred Nicácio.

Cezar Black, que decidiu desestabilizar as adversárias do Deserto mudando-se para o quarto delas, pegou a deixa de Domitila e passou a confrontar Larissa com a história da agência/assessoria (cujo e-mail é @gmail), aumentando a intriga a cada nova menção. Conseguiu fazer Larissa ter uma crise nervosa e chorar pela primeira vez no reality. Mesmo com Alface dizendo que seu argumento subestimava a inteligência de Larissa (traduzindo: era machista), Black voltou a insistir no dia seguinte em conversa com Domitila. Bruna Griphao ouviu e saiu como uma leoa em defesa da amiga. Gritou muito e chamou o adversário de machista.

Só que na leitura das páginas, colunistas e parte das redes sociais, Bruna se comportou como uma racista histérica, pois Black é negro e a atriz já havia feito rimas aleatórias, em outros momentos, que foram consideradas racistas pelos militantes de plantão. O antirracismo tentou calar de vez o feminismo.

O que seria um momento forte de sororidade, daqueles de ser exaltado numa novela da Globo, acabou virando o ponto de ruptura da edição, onde ficou claro que o antirracismo tinha engolido todas as outras pautas, tanto no próprio programa quanto em sua cobertura, impedindo qualquer reação feminina de ser considerada como tal.

Enquanto quem cometeu racismo religioso virava puxador de mutirões junto à torcida antirracista, a falta de consideração a Larissa e Bruna foi virando outra coisa. Misoginia. Caricaturas de Bruna como uma pinscher raivosa tomaram as redes, lembrando cartuns repulsivos de feministas nos anos 1970. Ofensas de baixo calão a Larissa se multiplicaram, lembrando também a época do assassinato de Ângela Diniz. E as palavras inapropriadas não pouparam Amanda Meirelles, aquela que não poderia ter torcida, e a já vítima de “racismo do bem” Aline Wirley. Apelidos maldosos viralizaram. Acamanda, Curissa, Laritruce, Gritão etc. E assim, de repente, gente “do bem”, antirracistas estimulados por colunistas libertários, criaram uma onda de ódio gigante, em que misóginos puderam surfar esfregando as mãos, com todos seus ressentimentos contra mulheres.

Muitas espectadoras sentiram o gatilho. Elas reconheceram o que viram no programa e é reforçado nas redes. E se identificaram com Amanda, cuja opinião costumava ser ignorada por homens dos dois grupos, com Larissa e suas reclamações de machismo ridicularizadas, com Bruna, por defender a amiga com unhas e dentes, e com Aline, a mais famosa delas, mas considerada fraca pelos rivais por ser a integrante negra do quarteto. E essa identificação virou paixão, torcida, votos, mutirões.

Há cinco paredões, nenhuma integrante do grupo Deserto sai da casa mais vigiada do Brasil, porque o empenho da torcida das desérticas decidiu ser mais eloquente que a incompreensão manifestada por Tadeu Schmidt ao anunciar a eliminação consecutiva dos integrantes do quarto Fundo do Mar.

Por optar em não trazer a discussão do machismo para a edição, chegando até a esconder situações na exibição noturna da Globo, a produção do “BBB 23” perdeu a oportunidade de assumir a frente do tema.

Quem assumiu foram as próprias desérticas, entre elas e sem saber. Apenas por demonstrar sororidade, numa amizade forjada na adversidade do programa, que tem dancinhas fúteis sim, mas também muito apoio afetivo para os choros e desgastes compartilhados, além de momentos de um empoderamento feminino coletivo e factual nunca antes visto num “BBB”. A sororidade foi abraçada de forma inédita, mas também de maneira tão evidente que chega a causar surpresa o fato de os produtores simplesmente a ignorarem nos VTs da semana. Logo os produtores que fizeram um vídeo tão lindo sobre a força das tranças negras femininas, nos primeiros episódios – demonstrando, e logo esquecendo, que antirracismo e feminismo são bandeiras que podem ser levantadas juntas.

Mas se o “BBB” finge não ver a sororidade icônica, a parte do público que se identificou com o quarteto fez mais que perceber, ficou cativada. De repente, surgiu outra onda gigante, de gente que nunca se declarou progressista, mas assumiu a defesa intransigente das quatro amigas, projetando-se numa sororidade virtual. O fenômeno abrangeu não apenas uma, mas várias torcidas, de diferentes sisters e até de pares de sisters, que compraram a ideia de se juntar como elas se juntaram no programa, e têm virado madrugadas, mutirão atrás de mutirão, para provar uma lição que o Brasil já devia saber de cor: se mexeu com uma, mexeu com todas.

A luta desses não militantes com causa continua e ainda faltam dois paredões. Mas já está mais que demonstrado que as fãs de todos os matizes raciais e também os fãs homens, aliados das mulheres, estão muito motivados para encarar captchas e quantos votos no Gshow forem necessários para fazer de Amanda, Bruna, Aline e Larissa as últimas remanescentes do “BBB 23”, como uma resposta à altura às tentativas de diminui-las e a suas dores.

Amanda tem maior torcida, vai vencer, mas realmente não importa quem vença. O que importa é a mensagem que a torcida unificada do Deserto deixa para os espectadores brasileiros: nada justifica a luta contra a discriminação racial virar discurso incel de ódio contra mulheres. Nada.

Sim, precisamos falar sobre machismo no Brasil. Após o “BBB 23”, precisamos mais que nunca.