O cinema brasileiro, todos sabem, é plural. Como o país. Há tempos deixou de ser exclusividade do Rio de Janeiro e de São Paulo. Cidades do interior, como Contagem-MG e agora também Cachoeira, no Recôncavo Baiano, aparecem no cinema brasileiro contemporâneo como áreas de explosão afetiva e artística. Os jovens cineastas baianos Ary Rosa e Glenda Nicácio têm chamado a atenção desde “Café com Canela” (2017), o lindíssimo filme sobre amizade, superação diante das adversidades e valorização da cultura afro-descendente. Isso dentro de uma estrutura que mistura experimentação com um pouco de classicismo.
A descrição até faz lembrar seu mais novo filme, “Até o Fim”, exibido e premiado na 23ª Mostra Tiradentes, no começo do ano. O filme foi aplaudido de pé e, pelos testemunhos, dá-se a entender que foi a mais intensa recepção popular de um filme exibido no evento. Muito disso tem a ver com a aguardada expectativa de um novo filme da dupla, que ainda fez “Ilha” (2018), talvez seu trabalho mais arriscado.
“Até o Fim” agrada mais por ser feminino e cheio de afetividade, como “Café com Canela”. Mas, em vez de se focar em amizades, aqui o elo que une as protagonistas, depois de tantos anos de distância, é o sangue. Pelo menos três das mulheres da trama são irmãs.
O filme começa, curiosamente, na mesma barraca de “Ilha”, além de fazer uma referência direta e explícita a essa obra. Isso acaba por trazer uma familiaridade ao filme, apesar dos diretores ainda terem poucos trabalhos realizados.
É nesta barraca que conhecemos Geralda (Wal Diaz), uma mulher de meia idade que é dona daquele espaço. Ela recebe a notícia da morte iminente de seu pai, que está internado no hospital. Essa situação será o elemento que reunirá as irmãs de Geralda. Primeiro aparece a simples e alegre Rose (Arlete Dias) e depois a bem-sucedida Bel (Maíra Azevedo, a Tia Má do YouTube). A quarta personagem aparecerá para balançar ainda mais a noite.
Toda a narrativa acontece no espaço de uma noite, onde muitas feridas são expostas em uma discussão calorosa. A começar pelo desabafo de Geralda, que se sente abandona pelas irmãs. Elas deixaram a cidade sem muita explicação e Geralda ficou sozinha, cuidando do pai. Pautada em diálogos, a trama beira a verborragia teatral, mas isso não chega a incomodar, porque os diálogos são cheios de tensão, emoção e espontaneidade.
A figura do pai também é importante, pois ele se revela o principal responsável pelos rumos distintos das vidas daquelas mulheres. Mesmo sem nunca aparecer em cena, é como um espírito ruim que paira no ambiente, cuja morte é esperada ansiosamente pela maior parte daquelas mulheres. Ele simboliza a questão do abuso sexual, do ataque ao candomblé, da homofobia, da transfobia, do machismo etc.
Como opção estética, os diretores optaram por enquadrar a trama numa janela em formato quadrado, que faz com que haja uma aproximação maior daquelas personagens na tela – além de passar um ar claustrofóbico. Vez ou outra, vemos dois quadros. A movimentação e os ângulos de câmera também são bem atípicos e apontam para uma vontade de experimentar, sem cair no experimentalismo puro. O resultado é uma junção muito bem orquestrada de um racionalismo ditado pela forma e de um sentimentalismo ditado pelos traumas e situações de fragilidade das personagens.
Além do mais, a presença da quarta personagem, Vilmar (Jenny Muller), faz com que essas emoções explodam em um convite às lágrimas, que nem sempre representam a tristeza, mas também a alegria da superação, de estar lidando com coragem com as dores do passado que seguem vivas no presente. Disponibilizado brevemente no YouTube, é um filme que deve crescer muito na telona.