A Prefeitura do Rio, por meio da Secretaria Municipal de Ordem Pública (Seop), ameaçou fechar a Bienal do Livro. Uma equipe de fiscais foi ao evento logo na sua abertura na manhã desta sexta (6/9), acompanhada por subsecretário militar, para recolher todos os exemplares de uma graphic novel dos Vingadores, que o prefeito e bispo Marcelo Crivella (PRP) considerou “imprópria”.
Comandada pelo subsecretário de operações da Seop, o coronel Wolney Dias, os fiscais buscaram a graphic novel “Vingadores: A Cruzada das Crianças” nas estantes do evento com ordem de apreender tudo. Mas não encontraram. Os quadrinhos sumiram do estande da Panini, que publicou a história em parceria com a editora Salvat há dois anos. O livro também está indisponível no site da Salvat. E não pode ser encontrado em nenhuma outra estande da Bienal.
Oficialmente, os expositores afirmam que a história foi toda vendida e os exemplares acabaram se esgotando.
Além de proibir a venda da publicação, os fiscais pretendiam criar um flagrante para cassar a licença do evento, com o objetivo expresso de “proteger as nossas crianças” de material LGBTQ+.
“Em caso de descumprimento, o material sem o aviso será apreendido e o evento poderá ter sua licença de funcionamento cassada”, disse a Seop em comunicado que antecedeu a ação, deixando clara a missão de fechar a Bienal.
A ação aconteceu após a Bienal se recusar a censurar a publicação, repudiando um vídeo em que o bispo prefeito disse ter mandado recolher o livro. Impedido pela Constituição de fazer isso, Crivella na verdade enviou uma notificação extrajudicial para que os livros fossem lacrados e viessem com uma classificação indicativa, ou aviso de que há material ou cenas proibidas para menores de idade.
Em sua nota, a Bienal afirmou que não iria recolher nem embalar a publicação, pois seu conteúdo não era impróprio e nem pornográfico. A organização do evento disse ainda que “dá voz a todos os públicos, sem distinção, como uma democracia deve ser. Este é um festival plural, onde todos são bem-vindos e estão representados. Inclusive, no próximo fim de semana, a Bienal do Livro terá dois painéis para debater a literatura Trans e LGBTQA+”.
Isto gerou a ação de repressão assumida, com a desculpa de verificar se os livros tinham sido lacrados e acompanhados pelos avisos.
Como não encontraram o gibi que procuravam, os fiscais foram aos estandes que vendiam quadrinhos folhar vários exemplares em busca de desenhos com cenas “impróprias” (de afeto LGBTQ+), num ato flagrante de autoritarismo, que lembra a ação nazista contra livros considerados “degenerados” na Alemanha dos anos 1930.
Foi a primeira vez que uma fiscalização do tipo aconteceu na história da Bienal do Livro, cuja trajetória coincide com a abertura política e o fim da ditadura militar no Brasil.
O aparato do governo municipal foi mobilizado apenas porque a publicação inclui heróis homossexuais.
O que causou tudo foi um desenho de dois jovens se beijando. Completamente vestidos. Veja a cena “polêmica” abaixo.
A série dos Jovens Vingadores, que envolve “A Cruzada das Crianças”, é uma das mais premiadas da Marvel, tanto pela GLAAD, organização LGBTQ+ que destaca os produtos mais inclusivos da mídia americana, quanto pelo prestigioso Harvey Award.
Um vereador extremista, Alexandre Isquierdo (DEM), também repudiou a obra numa sessão ordinária na Câmara Municipal do Rio na quarta (4/9), deixando claro qual era o “problema” da publicação. “Absurdo um livro que está sendo comercializado na Bienal do Livro: ‘Vingadores – A Cruzada das Crianças’, no qual o autor, que é assumidamente gay, coloca dois super-heróis em um relacionamento homossexual”, apontou.
A escalada da ultradireita intolerante chegou à prefeitura na quinta, quando Crivella publicou um vídeo falando da repressão. “Pessoal, precisamos proteger as nossas crianças. Por isso, determinamos que os organizadores da Bienal recolhessem os livros com conteúdos impróprios para menores. Não é correto que elas tenham acesso precoce a assuntos que não estão de acordo com suas idades”.
A Bienal discordou, considerando que o desenho de dois rapazes se beijando não era pornografia.
O alvo foi decididamente o afeto LGBTQ+, que pelo entendimento do governo municipal é impróprio para menores. Beijos heterossexuais não foram alvo da repressão.
Paralelamente, várias condenações ao material se multiplicaram em sites de tendências nazistas (também atacam cotas raciais, direitos das mulheres e exigem o fim do estado laico), com textos irônicos que acusam os quadrinhos de “lacração”.
As manifestações seguem a orientação do presidente Bolsonaro, que fez crítica similar em relação a séries com a temática LGBTQ+ e mandou suspender edital que aprovava produção de programas do gênero.
A tentativa de censura aconteceu no dia em que a rede Globo efetivamente censurou o beijo entre duas personagens femininas de sua novela das 18h. O carinho entre o casal Valéria (Bia Arantes) e Camila (Anajú Dorigon) deveria ir ao ar no capítulo de “Órfãos da Terra” antecipado em streaming na quinta – e que chega na TV nesta sexta (6/9) – , mas foi cortado por “decisão artística”, segundo a emissora, que passou a semana alardeando o “beijo apaixonado” na divulgação oficial da novela.
São sinais perigosos, que desenterram o fantasma do nazismo. Políticos brasileiros voltam a proibir, reprimir e provocar uma histeria de quase um século atrás contra a cultura “degenerada”, que seria capaz de desviar a formação dos jovens e transformá-los em… gays!
Daí para queimar livros é um passo. O resto é consequência.