A Comic-Con está completando 50 edições nesta quinta (18/7) em San Diego, nos Estados Unidos. E meio século mudou tudo em sua organização, assim como na própria indústria do entretenimento que ela reflete.
Imagine que nos primeiros anos de sua existência o evento atraía apenas leitores e artistas de quadrinhos, que discutiam exclusivamente os temas das publicações da época. Não havia Comic Con de Nova York, de Chicago ou aquela do Brasil que tem nome inglês. Hollywood nem chegava perto de suas portas. E quem frequentava ainda era zoado como nerd.
O império comercial erguido com apoio de empresas de cinema, TV, brinquedos e games torna difícil lembrar que a primeira Comic-Con reuniu apenas algumas dezenas de pessoas no subsolo de um hotel barato do centro de San Diego em março de 1970 para discutir quadrinhos.
Foi ideia de um letrista de quadrinhos desempregado de 36 anos, Shel Dorf, e de cinco amigos adolescentes, que queriam falar sobre seus personagens e revistas favoritos. Dorf já tinha participado de convenções precursoras em sua cidade natal, Detroit. E aproveitou seu conhecimento para originar a primeira Comic-Con.
O nome oficial do evento inaugural foi Golden State Comic-Con e reuniu 100 pessoas durante algumas horas do dia 21 de março de 1970. Os organizadores se empolgaram com o “sucesso” e cinco meses depois, em agosto, realizaram uma Comic-Con de fôlego, com três dias de duração, com participação do escritor de sci-fi Ray Bradbury e do mestre de quadrinhos Jack Kirby, que serviu de embrião para o formato atual do evento. O resultado rendeu três vezes mais “sucesso”: 300 espectadores.
A partir de 1973, o evento abandonou o “Golden State” e passou a ser conhecido como San Diego Comic-Con. Mas seu crescimento manteve-se gradual.
O ponto de virada veio em 1976, quando um assessor da Lucasfilm enviou cartazes e outros itens para promover o novo filme da produtora (então) indie, chamado “Guerra nas Estrelas”. O que inspirou essa iniciativa foi o lançamento da adaptação em quadrinhos do roteiro original, editada pela Marvel antes da estreia do longa.
A simples presença dos cartazes originou boca-a-boca, num dos primeiros casos de “marketing viral”, que ajudou a lotar os cinemas e serviu para a Comic-Con identificar que o público dos quadrinhos era o mesmo dos filmes de ficção científica.
Hollywood prestou atenção, especialmente com o lançamento de “Superman, o Filme” em 1978. E os próprios organizadores perceberam que podiam abrir seu foco para além dos quadrinhos, mirando outras convenções bem-sucedidas da cultura pop, como os eventos relacionados à série “Jornada nas Estrelas” (Star Trek) – os primeiros a reunir atores, equipe criativa e fãs dispostos a comprar material relacionado a uma série, além de inspirar seus frequentadores a usarem os uniformes de seus personagens favoritos, dando origem ao cosplay.
A parceria com o cinema começou tímida. Mas o lançamento de “Batman” (1989) intensificou a relação. Hollywood percebeu o potencial comercial dos quadrinhos e desse público-alvo.
Os frequentadores até mesmo deixaram de ser chamados de nerds. Viraram geeks (nerds “especializados”). E a convenção se agigantou. Mudou de hotéis e universidades para o Centro de Convenções de San Diego em 1991. Para redimensionar a nova etapa, também alterou seu nome. Transformou-se em Comic-Con International.
Na década de 1990, a programação passou a dar mais destaque aos estúdios e redes de televisão que aos próprios quadrinhos, graças ao investimento dos grandes conglomerados de mídia em patrocínio. Logotipos de cinema e TV passaram a diminuir o espaço dos estandes de gibis usados. E participações de astros e cineastas se tornaram mais concorridas que os eventos dos artistas da Marvel e da DC.
Ao entrar nos anos 2000, a Comic-Con passou a ser frequentada até por sex symbols que os nerds originais jamais imaginariam ver em suas bancadas, como Megan Fox, Scarlett Johansson e Kristen Stewart.
Mas a popularização trouxe complicações nada geeks: filas longas, corredores abarrotados e um comercialismo desvairado. Os pequenos lojistas de quadrinhos, que sustentaram o começo do evento, agora nem sequer podem participar devido aos custos elevados.
Embora a convenção continue a trazer os artistas da Marvel, da DC e até indies, quem ganha atenção da imprensa são outros nomes, como Arnold Schwarzenegger, Patrick Stewart e o elenco da série “Game of Thrones”, cuja presença no evento deste fim de semana já atrai centenas de repórteres e cobertura intensa da TV.
Esta concentração de mídia faz parte de outra transformação da Comic-Con nos últimos anos, reconfigurada como uma espécie de porta-voz de projetos da indústria cultural americana.
Desta quinta até domingo, várias novidades serão anunciadas pelas empresas de entretenimento dos Estados Unidos, aproveitando a atenção – que hoje é mundial – no evento.
A expectativa é especialmente elevada em torno da volta da Marvel à Sala H do Centro de Convenções de San Diego, após pular a Comic-Con do ano passado. Até agora reticente em relação a seus próximos filmes, o estúdio presidido por Kevin Feige deve finalmente oficializar as produções de sua chamada Fase 4.
Por outro lado, a ausência dos estúdios Warner, Sony e Universal, que optaram por ignorar a atual edição, indica que os superpoderes da Comic-Con já foram maiores. A proliferação de Comic Cons (sem hífen) tem pulverizado verbas e planos de marketing, o que contribui para a banalização do conceito original e reflete a guerra por conteúdo exclusivo em curso na indústria.
A Disney já teve a ideia de fazer a sua própria Comic Con, a D23, e a Netflix vem ensaiando algo parecido. São sinais de mudanças e evolução no negócio das convenções de entretenimento. O que antes era um esforço amador de nerds adolescentes, é cada vez mais identificado como ferramenta profissional de publicidade no mundo das ativações e pop-ups.