Quando “Corpo Fechado” foi lançado em 2000, a indústria tinha medo de apostar em filmes baseados em histórias em quadrinhos. O que deu um caráter único à visão de M. Night Shyamalan em sua imersão na mitologia de HQs, mas com os dois pés fincados na realidade. Sua proposta foi imaginar os quadrinhos como resultados da inspiração nas histórias verdadeiras de pessoas com habilidades extraordinárias que podem caminhar entre nós. No fundo, apenas um pretexto para Shyamalan fazer o que gosta: uma fábula a respeito do quanto o sobrenatural quebra o ceticismo do dia a dia.
É um filmão, com Bruce Willis e Samuel L. Jackson, que não pode ser comparado com nenhum outro (provavelmente só com “Vidro”); difícil sim, pois exige demais dos espectadores que pagam ingresso em busca de diversão escapista com um longa de alguma forma ligado a super-heróis. Mas Shyamalan não teve medo do ridículo ao empregar uma abordagem séria para um tema que nem todos estavam preparados para levar tão a sério. Como de praxe, muitos reclamaram do diretor, porque esperaram e cobraram por muito tempo um novo “O Sexto Sentido” (1999). Mas o tempo, o melhor crítico de todos, reconheceu a grandeza de “Corpo Fechado”.
Hoje, ironicamente, os quadrinhos representam a maior fonte de renda em Hollywood, o que fez muita gente redescobrir o filme e chamá-lo de “o melhor trabalho de M. Night Shyamalan” (não é, pois sempre foi “O Sexto Sentido”). Mais que isso, o diretor fez uma nova geração correr atrás do filme quando encerrou “Fragmentado”, de 2016, com o David Dunn de Bruce Willis fazendo uma ponta para provar que as duas produções fazem parte da mesma realidade. E pronto! Shyamalan, como fazem Marvel e DC, estabeleceu seu próprio universo cinematográfico e o crossover foi prometido para “Vidro”, que encerraria uma trilogia que ninguém imaginou existir ou ser possível da forma como foi construída.
Com seus filmes mais recentes, Shyamalan deu uma reviravolta na carreira após amargar diversos fracassos, de “A Dama na Água” (2006) a “Depois da Terra” (2013). Bancado pela Blumhouse, do produtor James Blum, ele retornou com “A Visita” (2015), terror modesto, de baixíssimo orçamento, mas surpreendentemente acima da média. Depois veio “Fragmentado”, que conta a história de um maluco sequestrador de garotas: Kevin (James McAvoy), suas 24 personalidades, além de uma outra que é guardada para “ocasiões especiais” e é conhecida como “A Fera”, que é muito forte, devora suas vítimas (!) e escala paredes (!!). Só que a revelação dessa personalidade não foi a reviravolta tradicional de Shyamalan, mas sim a tal ponta de Bruce Willis. Enfim, nada a ver com nada, porque até aquele ponto, “Fragmentado” valia muito mais pela ótima atuação de McAvoy, não tinha a menor ligação com quadrinhos e, muito menos, com “Corpo Fechado”.
Mas esse foi o gancho para “Vidro”, que já nasceu com a responsabilidade de justificar sua existência e entregar algo fora do comum. A expectativa, porém, foi demasiada, e deixa claro que “Corpo Fechado” precisava menos de uma continuação que “Fragmentado”, por mais que Shyamalan tente convencer os fãs do contrário.
Embora mostre que os personagens fazem as mesmas coisas de sempre, o primeiro ato de “Vidro” é bem construído, com Shyamalan fingindo que abandonou sua pretensão de ser reconhecido como autor genial para focar somente no que o roteiro exige. Mas ele enche o espectador de expectativa só para… trancá-lo com Willis, McAvoy e Jackson num manicômio em um segundo ato que compromete o ritmo, mas tem seus pontos altos nos atributos técnicos – um excesso de close-ups com fundos desfocados, que torna íntima a crença na história contada por Shyamalan. Sua opção pelo frontal ainda reforça a violência psicológica como algo mais poderoso que a violência física (da qual ele foge o tempo todo).
Também se destaca a montagem esperta e, hmm, fragmentada, principalmente no interrogatório inicial dos personagens que parecem estar na mesma cena, só que não. São artifícios que compensam o blá-blá-blá irritante e didático da psiquiatra vivida por Sarah Paulson.
E, então, vem o terceiro ato, onde se espera a já tradicional reviravolta de Shyamalan. E o que ele faz? Entrega mais de uma.
É exatamente onde o filme divide opiniões, entre erros e acertos, mostrando que Shyamalan manteve a atenção do público do início ao fim, como um habilidoso mágico e contador de histórias.
E com o público atento, ele aproveita para introduzir os tópicos que quer realmente discutir, sobretudo a conclusão de que existem pessoas muito piores no mundo real do que os vilões da ficção. São indivíduos e grupos que tentam reprimir tudo e todos que são diferentes, em nome de uma fé presa a conceitos e costumes antigos e ultrapassados.
“Vidro” tem muito mais a dizer do que parece. A grande reviravolta de Shyamalan é fazer você pensar que o filme é ruim quando, na verdade, ele é bom.