“Tinta Bruta” nos apresenta o personagem Pedro (Schico Menegat), um jovem solitário, que parece incapaz de conviver com as pessoas, expressar-se naturalmente junto a elas. Ao mesmo tempo, há um mistério na sua história: um processo criminal a que ele está respondendo. Pedro parece depender de sua irmã, com quem mora, e que é muito amiga e próxima, mas ela se muda para longe e, com isso, só lhe resta mesmo a solidão. E ficar em casa. Ele quase nunca sai de casa.
Na contemporaneidade, porém, como sabemos, a nossa casa é a nossa fortaleza e a tecnologia nos faz interagir virtualmente com o mundo. Pedro, então, se transforma no Garoto Néon em transmissões eróticas, via internet, em que consegue ganhar algum dinheiro. Ele veste seu corpo de tintas que, no escuro, com a iluminação, dá um belo efeito visual. Ele virá a conhecer Léo (Bruno Fernandes) porque descobre que ele o está imitando e criando uma concorrência na internet. É por aí que algo vai mudar na vida de Pedro.
O interessante no filme de Felipe Matzembacher e Márcio Reolon é justamente o contraste entre a persona pública e a pessoa real. No mundo virtual, cada um pode criar sua personalidade, sua história, inventar personagens, shows, expressões, aparentemente preservado do mundo exterior. Interagindo por meio de câmeras, que se podem desconectar a qualquer momento, no anonimato. Sem riscos, portanto. Será mesmo?
Bem, a vida não se resume ao mundo virtual, por mais atraente e fantasioso que ele possa ser. Nada pode substituir efetivamente o contato físico, o afeto, que são transformadores. Interagir é estabelecer vínculos, é dar colorido à vida, é correr riscos, é humanizar-se. Não tem nada a ver com os compartilhamentos, comentários e interações via internet. Que, no entanto, serviram para nos mostrar que a evolução do ser humano não se deu como se poderia esperar. No anonimato, real ou aparente, as pessoas mostram sua grossura, intolerância, idiotice. Fica-se surpreso ao constatar que tantas pessoas se expressem assim.
O espaço da internet também permite, como no caso de Pedro, o Garoto Néon, a expressão de uma sexualidade reprimida, sufocada e, ao mesmo tempo, atraente para muitos seguidores na web. E até fonte de trabalho e ganho num empreendedorismo individualizado, de baixo custo. Vender o próprio corpo não é exatamente uma novidade, mas é possível encontrar uma forma original de fazê-lo, enquanto imagem, como Pedro.
Qual o limite para tudo isso ainda não sabemos. Assim como as consequências a longo prazo. O que já podemos constatar é bastante preocupante, mas inconclusivo. A questão do confronto entre a chamada vida real e a virtual traz elementos importantes para reflexão. Temos muito a pensar, conhecer, entender sobre isso. Personagens como Pedro e também Léo, de “Tinta Bruta’, são relevantes para o momento em que vivemos. Eles trazem a diversidade sexual, a temática LGBT+ a esse contexto. Mas o assunto é mais amplo e abrange todas as expressões da sexualidade, da intimidade, dos sentimentos tornados públicos.
O filme “Tinta Bruta” foi exibido no Festival de Berlim e premiado no Festival do Rio como Melhor Filme, Roteiro, Ator e Ator Coadjuvante. De fato, os atores merecem mesmo esse destaque, o roteiro é muito bom (em que pese o sumiço da personagem da irmã) e a realização, de qualidade.