Bernardo Bertolucci (1941 – 2018)

O cineasta italiano Bernardo Bertolucci morreu nesta segunda-feira (26/11), aos 77 anos. Celebrado por clássicos como “O Último Tango em Paris” (1972) e “O Último Imperador” (1987), ele lutou por anos contra […]

O cineasta italiano Bernardo Bertolucci morreu nesta segunda-feira (26/11), aos 77 anos. Celebrado por clássicos como “O Último Tango em Paris” (1972) e “O Último Imperador” (1987), ele lutou por anos contra um câncer, mas não resistiu. Com a saúde deteriorada, locomovia-se com uma cadeira de rodas há cerca de uma década, porém nem isso o impediu de realizar um último filme recentemente.

Bertolucci foi um dos maiores nomes do cinema italiano e mundial, o mais novo e último remanescente de uma geração que contava com Fellini, Antonioni, Pasolini e Visconti, cuja obra autoral marcou gerações. Vencedor do Oscar de Melhor Direção por “O Último Imperador” – filme que conquistou ao todo nove troféus da Academia – , ele também foi homenageado com a Palma de Ouro, do Festival de Cannes, pelo conjunto da obra.

E que obra.

Filho de Attilio Bertolucci, um famoso poeta italiano, ele costumava acompanhar seu pai ao cinema em Parma, a cidade onde ele nasceu e cresceu, e começou a fazer filmes de 16mm aos 16 anos de idade. Conheceu o poeta Pier Paolo Pasolini através de seu pai, e quando Pasolini dirigiu seu primeiro filme, “Accattone – Desajuste Social” (1961), Bernardo foi contratado como assistente de produção.

Um ano depois, ele dirigiu seu primeiro longa-metragem, “A Morte” (1962), baseado em um esboço de cinco páginas de Pasolini. Rodado quando ele tinha 22 anos de idade, o filme investigava o mistério de um assassinato por meio de flashbacks e diferentes perspectivas de testemunhas, que narravam o que viram ao investigador do caso, um figura invisível para os espectadores. O estilo era diferente e ousado já naquela época, resultado, segundo ele, de quem “tinha visto muitos e muitos filmes”.

“Antes da Revolução” (1964) foi um trabalho muito mais pessoal, explorando os problemas de um jovem egoísta de classe média que se vê dividido entre política radical e conformidade, e entre um caso apaixonado com sua jovem tia e seu casamento burguês. Ele opta por respeitabilidade em ambos os casos. Vagamente baseado no romance “A Cartuxa de Parma”, de Stendhal, o filme chamou atenção por ser tecnicamente impressionante e pela capacidade de Bertolucci de articular temas, como o pai traidor e a conexão da libido com a política, que ele exploraria ao longo da carreira.

Em “Partner”, ele adaptou “O Duplo” de Dostoiévski, atualizando a trama para a Roma de 1968 e incluindo uma homenagem à novelle vague, ao mostrar o protagonista, interpretado por Pierre Clémenti, falando francês, enquanto todos os demais falam italiano.

No mesmo ano, Bertolucci assinou o roteiro do filme que passou a ser celebrado como auge do gênero spaghetti western, “Era uma Vez no Oeste”, de Sergio Leone, em que manifestou pela primeira vez suas aspirações épicas.

Sua carreira estourou na década seguinte, após dar ao operador de câmera de “Antes da Revolução” o status de diretor de fotografia. A parceria com Vittorio Storaro marcou época. Fizeram oito filmes juntos, sendo o primeiro “A Estratégia da Aranha” (1970), que transpôs a história de Jorge Luis Borges da Irlanda para a Itália, mudando o contexto político para um retrato do fascismo dos anos 1930, ao mostrar que o pai, que o protagonista considerava um herói, era realmente um traidor.

Um de seus maiores clássicos foi rodado quase ao mesmo tempo. “O Conformista” (1970) juntou as preocupações freudianas e políticas de Bertolucci em um estudo da Itália fascista, que procurava captar o pensamento da extrema direita por meio de um protagonista reprimido. Um homossexual que se recusava a se assumir, vivido por Jean-Louis Trintignant, e que por isso optava por valores burgueses e pela violência, recebendo do partido fascista a missão de assassinar seu ex-professor. O roteiro adaptado da obra de Alberto Moldavia rendeu ao cineasta sua primeira indicação ao Oscar. Impressionante, por ser um “filme falado em língua estrangeira”.

O longa também se destacou pelo florescimento do estilo cinematográfico de Bertolucci, com tomadas elaboradas, ângulos de câmera barrocos, cores opulentas, cenografia repleta de ornamentos e um intrincado jogo de luz e sombra, que quase transformavam o filme em 3D só pelo impacto visual.

Mas nenhum filme marcou mais sua carreira, para o bem e para o mal, que o que veio em seguida. “O Último Tango em Paris” se tornou um clássico do cinema erótico, por seu retrato de um relacionamento anti-romântico, baseado apenas em sexo, entre uma ninfeta e um homem bem mais velho, vividos por Maria Schneider, então com 19 anos, e Marlon Brando, de 48, que não querem saber nada um do outro, nem mesmo o nome. Altamente sensual, mas também violento, o filme provocou muitas discussões na época e rende assunto até hoje.

Na ocasião, o cineasta foi indiciado por um tribunal em Bolonha por fazer um filme pornográfico. Embora tenha sido absolvido, perdeu seus direitos civis (incluindo seu direito de voto) por cinco anos e os tribunais italianos ordenaram que todas as cópias do filme fossem destruídas. Mas a obra estourou no exterior, lotou cinemas, gerou frisson e rendeu a segunda indicação ao Oscar para Bertolucci, desta vez como Melhor Diretor.

Muito já se falou sobre a cena da manteiga, usada para simular lubrificação numa simulação de estupro. Uma violação não consentida que, na trama, levava a jovem protagonista a encerrar o relacionamento, algo que o homem não consegue entender. Maria Schneider denunciou Bertolucci e Brando, anos depois em sua autobiografia, pela violência da encenação. Mesmo que o estupro fosse simulado, ela se disse vítima de agressão, já que o uso da manteiga não estava no roteiro ou tinha sido combinado, e foi resultado de um ato violento, com Brando jogando-a no chão e tocando sua partes íntimas. Em uma entrevista de 2007, quatro anos antes de morrer, Schneider disse que suas “lágrimas eram verdadeiras” no filme.

Em dezembro de 2016, a polêmica voltou à tona, quando uma entrevista antiga de Bertolucci ressurgiu nas redes sociais. Nela, Bertulucci assumia: “A sequência da manteiga foi uma ideia que eu tive com Marlon na véspera da filmagem. Eu queria que Maria reagisse, que ela fosse humilhada. Eu não queria que ela interpretasse a raiva, eu queria que ela sentisse raiva e humilhação”.

A confissão ultrajou feministas. “A todos que gostaram do filme, vocês estão vendo uma jovem de 19 anos sendo violentada por um homem de 48 anos. O diretor planejou a agressão. Isso me dá nojo”, tuitou a atriz Jessica Chastain, que, depois, tomaria a frente do movimento Time’s Up, contra abusos e discriminação contra as mulheres em Hollywood.

Essa discussão demorou décadas para assumir contornos mais negativos, o que levou Bertolucci a passar seus últimos anos se defendendo.

Entretanto, ele também se beneficiou bastante da controvérsia. O interesse gerado pelas reputação de “O Último Tango em Paris” ajudou Bertolucci a obter o financiamento necessário para embarcar em seu projeto mais ambicioso, “1900”. O filme de 1977 foi o primeiro grande épico de sua carreira como diretor, com uma duração de nada menos de cinco horas, além de consumir um dos maiores orçamentos do cinema italiano.

O diretor ainda quis aproximar duas escolas rivais de cinema, as grandes produções hollywoodianas e o realismo socialista do cinema russo dos anos 1930, para narrar a história da Itália sob o ponto de vista da luta de classes, representado pelos dois protagonistas: Olmo (Gérard Depardieu), o filho de uma camponesa, e Alfredo (Robert De Niro), o filho do dono da fazenda (Burt Lancaster), ambos nascidos no mesmo dia, 27 de janeiro de 1901. Imponente, mas também didático, o filme atinge o ápice em seus últimos 30 minutos, para encerrar seu painel histórico no Dia da Libertação da Itália pelos aliados, em 25 de abril de 1945.

Ao buscar a grandiosidade, Bertolucci se afastou da introspecção que marcava seus trabalhos anteriores. E “1900” acabou considerado uma anomalia em sua filmografia.

Suas obras seguintes voltaram aos temas psicológicos e políticos, em mergulhos na sexualidade e na relação paternal. “La Luna” (1979) foi a história de um relacionamento apaixonado, quase incestuoso, entre mãe e filho, rodado com simbolismos edipianos e virtuosismo cinematográfico. E “A Tragédia de um Homem Ridículo” (1981) representou o reverso de “A Estratégia da Aranha”, com um pai investigando a vida do filho, sequestrado misteriosamente e acusado de conspirar com a extrema esquerda.

A ambiguidade das obras não agradaram público e crítica. Mas suas inclinações políticas de esquerda lhe permitiram ser bem-recebido na China, onde retomou o cinema épico, atingindo o ápice artístico de sua carreira. “O Último Imperador” foi o primeiro filme ocidental inteiramente rodado na China, e contou com participação oficial do governo do país, que lhe deu acesso à Cidade Proibida e outras locações imponentes, nunca antes registradas numa produção falada em inglês.

O filme contava a história real de Pu Yi, o último imperador da China, que nasceu para governar e acabou como um jardineiro comum, após ser “reeducado” pelo regime maoísta, numa trajetória de 60 anos que cobria o período histórico mais controvertido da China. O filme era o equivalente chinês a “1900”, um novo retrato da luta de classes, mas muito mais suntuoso, ecoando o esplendor dourado do palácio na Cidade Proibida.

As imagens deslumbrantes e a história inacreditável, mas real, impressionaram crítica e público em todo o mundo. Bertolucci venceu não um, mas dois Oscars, de Direção e Roteiro Adaptado, enquanto o longa colecionou 9 troféus, incluindo Melhor Filme e Fotografia (de Vittorio Storaro).

“O Último Imperador” mudou os rumos da carreira de Bertolucci, que a seguir decidiu completar uma “trilogia oriental”, abrindo seu trabalho à temas existenciais e filosóficos por meio de “O Céu que nos Protege” (1990), filmado na Argélia e Marrocos, e “O Pequeno Buda” (1993), filmado no Butão e no Nepal. Mas embora fossem igualmente dispendiosos e exóticos, nenhum dos dois repetiu o êxito do longa chinês.

Ele voltou para casa, descartou os excessos, retomou o cinema intimista e redescobriu o sexo com “Beleza Roubada” (1996), drama sobre o despertar sexual de uma adolescente americana (Liv Tyler) em uma vila na Toscana, habitada por artistas e boêmios, e “Assédio” (1998), ambientado em Roma, que se concentra na relação entre um pianista inglês recluso e sua jovem empregada africana (Thandie Newton).

Com “Os Sonhadores” (2003), Bertolucci voltou a seus dias de juventude, tanto em termos de tema quanto de repercussão. Passado no ano de 1968, o filme juntava sexo e revolução, dois dos assuntos favoritos do diretor, usando a Primavera de Paris como pano de fundo para um relacionamento a três. Enquanto uma praia se revelava sob os paralelepípedos das ruas, os personagens se fechavam entre quatro paredes, como em “O Último Tango” passado na mesma Paris, para explorar sua paixão sexual e pelo cinema. O resultado se tornou a apoteose da cinefilia de Bertolucci e deslanchou a carreira dos jovens Louis Garrel, Michael Pitt e Eva Green, que fazia sua estreia nas telas.

Foi um sucesso. Mas em vez de marcar um renascimento em sua carreira, foi quase uma despedida, pois logo em seguida ele passou a sofrer sérios problemas nas costas.

Bertolucci se viu confinado a uma cadeira de rodas e não fez outro filme por nove anos. Foi buscar energia e vontade de filmar nos aplausos dos colegas, durante uma homenagem do Festival de Cannes, que lhe rendeu tributo pela carreira em 2011. Um ano depois, lançou “Eu e Você” (2012), seu primeiro filme italiano desde 1981 e último longa de sua filmografia. Foi um trabalho relativamente modesto com um pequeno elenco e, novamente, uma locação minimalista – um porão em que um adolescente se escondia com sua meia-irmã.

Nos últimos anos, sua saúde deteriorou, acumulando um câncer. E, em vez de aplausos, Bertolucci precisou lidar com acusações de abusos cometidos num filme que ele dirigiu aos 31 anos de idade.

Em sua derradeira manifestação pública, ele se defendeu: “Eu gostaria, pela última vez, de esclarecer um mal-entendido ridículo que continua a gerar reportagens sobre ‘O Último Tango em Paris’ em todo o mundo. Vários anos atrás, na Cinémathèque Française, alguém me perguntou detalhes sobre a famosa cena da manteiga. Eu especifiquei, mas talvez não tenha sido claro o suficiente, que eu decidi com Marlon Brando não informar a Maria de que usaríamos manteiga na cena. Queríamos sua reação espontânea ao uso impróprio. E é nisto que se resume o mal-entendido. Alguém pode ter achado que Maria não tinha sido informado sobre a violência que aconteceria contra ela. Isso é falso! Maria sabia de tudo porque ela tinha lido o roteiro, onde tudo foi descrito. A única novidade foi a ideia da manteiga. E isso, eu aprendi muitos anos depois, ofendeu Maria. Não foi a violência a que ela foi submetida na cena, que estava escrita no roteiro.”

Na entrevista citada, ele explicou com mais detalhes que “estava especificado no roteiro que teríamos que mostrar seu estupro de alguma forma. E enquanto eu e Marlon tomávamos café da manhã no piso do apartamento onde estávamos filmando, havia um baguette e havia manteiga, e olhamos um para o outro e, sem dizer nada, sabíamos o que queríamos fazer”.

Ele acrescentou que se sentiu horrível pela forma como tratou Schneider, mas defendeu-se, explicando que “queria a reação dela como garota, não como atriz”. “Eu não queria que Maria interpretasse sua humilhação e sua raiva, eu queria que ela sentisse… a raiva e a humilhação. Então ela me odiou pelo resto de sua vida.”