Despontam os anos 1990 e há quase uma década a descoberta da Aids já produziu mudanças muito intensas no comportamento e na vida das pessoas. Estigmatizando grupos, como os homossexuais, bissexuais, prostitutas, dependentes de drogas, hemofílicos, pessoas encarceradas. A sociedade ainda não sabia lidar bem com uma questão que mexia diretamente com a vida sexual, com valores, comportamentos, hábitos. Que exigia prioridade e investimentos do Estado e um grande trabalho educacional, que envolvia, sobretudo, o combate aos preconceitos e a necessidade de encarar a vida real, sem tabus. Mais ainda do que isso: era preciso encarar a morte de frente.
O filme de Robin Campillo trata desse momento político fundamental, na França, a partir da atuação de um grupo de ativistas, o Act Up Paris, que reunia soropositivos, doentes com Aids e colaboradores, em luta por uma prevenção eficaz e tratamento para os portadores do vírus HIV e para os doentes que acumulavam um número de mortes trágico. Enfrentar uma sentença de morte sem que a pesquisa evoluísse o suficiente para gerar esperanças, sem poder contar com tratamento efetivo e disponibilização dos medicamentos então existentes – AZT e DDI – e tendo de enfrentar o preconceito social e o descaso das autoridades, exigia, como ainda exige, que as pessoas se organizassem.
O grupo retratado, como o filme mostra, partia para ações agressivas para poder ser ouvido e notado, como jogar tinta vermelha em pessoas e instituições que estavam sendo questionadas, denotando um desespero e a falta de mecanismos de diálogo eficazes. A ponto de simbolizar o rio Sena todo vermelho do sangue que contamina e mata. As sequências finais, que não vou revelar aqui, são muito fortes e representativas de uma luta radicalizada.
Gente jovem encarando tanto uma sexualidade que buscava se expressar, apesar da contaminação, quanto a perspectiva da morte, se organiza politicamente e parte para o ativismo, tentando ser democrática. Não é fácil. A urgência acirra os conflitos, produz dissenção, julgamentos às vezes injustos, competitividade. E excessos. Mas a vida pulsa, os desejos se manifestam, ainda que não possam ser duradouros. É de tudo isso que o filme fala, em personagens emotivamente fortes e impactantes, que fizeram emocionar às lágrimas o presidente do júri do Festival de Cannes, Pedro Almodóvar. Ele sempre trabalhou com essa temática, mas num registro diferente, em que a compreensão, a solidariedade e o humor encontravam guarida e davam um respiro à situação retratada. Esses elementos também estão presentes em “120 Batimentos por Minuto”, mas são minoritários e a luta política se sobrepõe a tudo.
Chama atenção no filme o contexto fortemente opositor entre a organização da sociedade civil, o governo, os laboratórios e as seguradoras. A realidade brasileira do período foi, certamente, menos conflitiva e alcançaram-se grandes avanços na prevenção e no tratamento da Aids, com a disponibilização universal dos medicamentos alcançando a todos. A ação das ONGs e do Estado resultou em sucesso no controle da epidemia e as ações educacionais prosperaram, detendo o quadro apocalíptico que muitos pintavam.
Trabalhei bastante nessa área de prevenção, naquele período, e posso aquilatar que os avanços eram reais. Tanto que me preocupa, hoje, o retrocesso que estamos experimentando, tentando retornar a valores morais do século 19, em pleno século 21. Parece que temos de voltar a proclamar a necessidade do uso da camisinha, da discussão das relações de gênero e da diversidade sexual, como se isso fosse uma coisa nova. Será que a sanha por cortes no tamanho do Estado também vai atingir as políticas de saúde bem sucedidas do Brasil nesse terreno? É bom que o cinema trate do assunto com clareza, como faz “120 Batimentos por Minuto”. É hora de avançar, nunca de retroceder.