Maior estreia da semana, “Doutor Estranho” ocupa os shoppings com um novo super-herói da Marvel, numa história repleta de efeitos visuais e elenco acima da média do gênero, liderado por Benedict Cumberbatch. O filme conquistou a crítica internacional – 91% de aprovação no site Rotten Tomatoes – , mas o mais surpreendente é a forma como incorporou e traduziu a psicodelia dos desenhos originais de Steve Ditko na linguagem dos blockbusters modernos. O fato de a Marvel fazer um filme sobre uma criação da fase hippie da editora também diz muito sobre a confiança, a capacidade e o status de seu estúdio, numa lição de como criar franquias e expandir um universo cinematográfico com personagens considerados “estranhos”.
Há dois outros filmes hollywoodianos na programação. “A Luz Entre Oceanos” é um melodrama rasgado, baseado num best-seller. O elenco também é ótimo, e pelo menos para o casal central foi um trabalho prazeroso – Michael Fassbender e Alicia Vikander começaram a namorar durante as filmagens. Eles interpretam um casal num farol isolado, que encontra um bebê num barco à deriva e, depois de cuidar da menina por vários anos, descobre a verdadeira mãe (Rachel Weisz), que acredita ter pedido a filha no mar. Segue-se então o embate entre Fassbender, moralmente compelido a contar a verdade, e Vikander, para quem a criança é sua filha de verdade. A trama é de partir o coração, mas também digna de telenovela. Com 59% de aprovação da crítica americana, naufragou nas bilheterias dos EUA, dando prejuízo com apenas US$ 12 milhões de arrecadação.
“Indignação” rendeu ainda menos em circuito bastante restrito. Mas conquistou a crítica, com 81% de aprovação. Drama de época baseado no livro homônimo de Philip Roth (“Revelações”), marca a estreia na direção do roteirista e produtor James Schamus, grande parceiro do cineasta Ang Lee em filmes como “O Tigre e o Dragão” (2000), “O Segredo de Brokeback Mountain” (2005), “Desejo e Perigo” (2007) e “Aconteceu em Woodstock” (2009). O filme também destaca uma interpretação surpreendente de Logan Lerman, como um jovem judeu de Nova Jersey, que sofre preconceito e enfrenta um clima conservador de repressão sexual ao ingressar numa Universidade nos anos 1950. O lançamento antecede outra aguardada adaptação de Philip Roth neste ano – “Pastoral Americana”.
O circuito limitado também contempla os fãs de cinema indie com o relançamento de “Estranhos no Paraíso” (1984), hoje cultuadíssimo como pioneiro da revolução estética trazida pelos filmes independentes americanos. Em preto e branco e inspirado na nouvelle vague, venceu a Câmera de Ouro no Festival de Cannes como Melhor Filme de Estreia de 1984, o Leopardo de Ouro do Festival de Locarno, o prêmio de Melhor Filme da Sociedade Nacional dos Críticos dos EUA e o Prêmio Especial do Juri do Festival de Sundance. Clássico absoluto, na época parecia muito moderno.
A programação internacional inclui ainda o alemão “13 Minutos”, segundo filme do cineasta Oliver Hirschbiegel (“A Queda! As Últimas Horas de Hitler”) a tratar do nazismo. Baseado em fatos reais, o longa mostra a iniciativa de um trabalhador comum alemão (Christian Friedel, de “A Fita Branca”), que cansado dos absurdos do nazismo decide traçar um plano para assassinar Hitler. Considerado traidor, o carpinteiro Georg Elser foi preso após tentar explodir o Führer, mas só executado quando a Alemanha considerava ter perdido a guerra, por ordem direta do ditador. Apenas em 2011, com a inauguração de uma estátua em sua homenagem em Berlim, ele passou a ser festejado como herói da Alemanha.
A outra metade da programação (cinco filmes) é composta por filmes brasileiros – que, entretanto, não ocupam a metade (nem um décimo) das salas destinadas aos lançamentos internacionais. São duas ficções, das quais se destaca “Canção da Volta”, estreia do documentarista Gustavo Rosa de Moura nas narrativas dramáticas. No filme, ele dirige sua esposa, a também cineasta Marina Person – Moura foi um dos produtores de “Califórnia” (2015), dirigido por ela. Alçada pela primeira vez ao posto de protagonista, Marina vive uma mulher depressiva, que, após tentar o suicídio, desperta um sentimento de vigília constante no marido (João Miguel), logo transformado em paranoia e obsessão.
Já “Intruso” parece um vídeo amador de terror espírita. Trata-se de um trabalho feito em 2009 por Paulo Fontenele, que chega aos cinemas só depois do diretor ter se “consagrado” no gênero besteirol, assinando “Se Puder… Dirija!” (2013), “Divã a 2” (2015) e “Apaixonados: O Filme” (2016). Pensando bem, estes também podem ser definidos como horrores.
Completam a programação três documentários. O menos expressivo é “Cícero Dias, O Compadre de Picasso”, trabalho bastante didático sobre o pintor pernambucano modernista do título. Mas os outros dois tiveram até repercussão internacional.
“Curumim” acompanha os últimos dias de Marcos “Curumim” Archer, brasileiro executado na Indonésia por tráfico de drogas. O longa é intenso, com imagens gravadas clandestinamente no corredor da morte pelo próprio Archer, graças ao contrabando de um celular para a prisão. Tudo feito sem nenhum apoio da embaixada do Brasil na Indonésia, que não ajudou o cineasta Marcos Prado (“Paraísos Artificiais”) nem a falar com Marcos. A première mundial aconteceu sob aplausos na mostra Panorama, do Festival de Berlim.
Por fim, “Cinema Novo” é um olhar afetivo para o movimento cinematográfico do título, realizado pelo filho de seu maior expoente. Eryck Rocha tinha apenas três anos de idade quando seu pai, Glauber Rocha, morreu em 1981, e a obra permite um reencontro cinematográfico entre os dois.
O documentário é um jorro contínuo de imagens, em que se destaca uma montagem vertiginosa, que intercala cenas de filmes, imagens e depoimentos da época. Não chega a contar uma história, mas forma um painel tangível da geração que levou o cinema brasileiro para as ruas, para as praças e descobriu a realidade do país – dos problemas urbanos à crise rural.
A experiência é impressionista, mas também pode ser chamada de impressionante. Já em sua première, “Cinema Novo” venceu o prêmio Olho de Ouro (L’Oeil d’Or) como o Melhor Documentário do Festival de Cannes de 2016. O filme também foi escolhido para abrir o Festival de Brasília.