A politização de cineastas e atores brasileiros tem se mostrado um fenômeno saudável, pois os recentes choques de opinião e manifestação de artistas contrários ao governo federal transmitem sinais inequívocos da estabilidade institucional no pais. Não há convulsão social nem governo de exceção censurando protestos, como seria característica de um golpe de Estado. Há, inclusive, um clima de tolerância com a ocupações de espaços públicos e uma mídia disposta a ouvir quem quiser afirmar que se vive um golpe.
Obviamente, o direito de opinião e manifestação não é exclusivo de uma classe ou apenas de quem pensa igual. Quem discorda do que é dito ou feito também vai opinar e se manifestar em contrariedade. Um ambiente democrático se enriquece com essa pluralidade de opiniões. Mas nesses tempos de redes sociais se vive com mais força o acirramento.
A repercussão da polêmica iniciada pela equipe do filme “Aquarius” no Festival de Cannes é um exemplo de como as posições estão acirradas. No tapete vermelho do evento francês, o diretor Kleber Mendonça Filho, os atores Sonia Braga, Humberto Carrão e Maeve Jinkings, entre outros envolvidos na produção, levantaram cartazes que chamavam de golpe de estado o processo de impeachment de Dilma Rousseff. Um dos cartazes chegava a afirmar, em inglês, que “O Brasil não é mais uma democracia”.
Na ocasião, os principais integrantes da produção também deram entrevistas, reiterando o ponto de vista de que a democracia brasileira teria sofrido um golpe político. Como reação, grupos contrários manifestaram a intenção de organizar um boicote ao filme. Ao mesmo tempo, a tese de criminalização da Lei Rouanet, que incentiva filmes como “Aquarius”, ganhou terreno. Houve até uma tentativa de incluir produtores culturais na malha da Lava Jato, rechaçada pelo juiz Sérgio Moro.
A raiva despertada pelo protesto francês tem, embutida, o discurso da defesa da imagem do Brasil. Esta tese foi reverberada em entrevista do Ministro da Cultura ao programa “Preto no Branco”, exibido no domingo (5/5) no Canal Brasil. “Como qualquer manifestação, tem que ser respeitada, isso está fora de questionamento”, disse o ministro Marcelo Calero, demarcando o limite democrático. “Agora, acho ruim, em nome de um posicionamento político pessoal, causar prejuízos à reputação e à imagem do Brasil”, ele esclareceu, evocando a tese de que afirmar que houve um golpe é alinhar o Brasil às repúblicas de bananas dos clichês latinos.
Calero elevou o tom. “Estão comprometendo [a imagem do país] em nome de uma tese política, e isso é ruim. Eu acho até um pouco totalitário, porque você quer pretender que aquela sua visão específica realmente cobre a imagem de um país inteiro. Eu acho que a democracia precisa ser respeitada e acho que é um desrespeito falar em golpe de Estado com aqueles que viveram o golpe realmente, o de 1964. Pessoas morreram. E as pessoas esquecem isso. Então eu acho [o protesto] de uma irresponsabilidade quase infantil.”
As críticas aconteceram no contexto de uma entrevista a um programa de TV, no qual o ministro foi incentivado a dar sua opinião sobre o assunto. Anteriormente, a equipe de “Aquarius” também deu, em entrevistas, suas opiniões sobre a situação do Brasil e a breve extinção do Ministério da Cultura. Passou batido, porém, a ocasião em que Kleber Mendonça Filho afirmou que o país era uma democracia e que, por isso, poderia se manifestar como quisesse.
“A gente vive numa democracia. Essa é a minha resposta”, ele disse em maio, logo após o protesto, em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, respondendo se temia retaliação – além de cineasta, ele tem um cargo numa fundação ligada ao Ministério da Cultura. “A gente vive numa democracia, e eu tenho direito de expressar o que acho sobre temas políticos”, reforçou, poucas horas após sua equipe levantar cartazes em se podia ler que o Brasil já não era uma democracia. E quando o repórter insistiu, veio a confirmação final: “Queria entender se o Brasil que era quando eu viajei para cá já mudou. Ainda continuo me comportando como se estivesse numa democracia”, discursou.
Em suma, Kleber Mendonça Filho defende seu legítimo direito de manifestação por viver numa democracia, mesmo que seja para dizer no exterior que não vive numa democracia. Com o que o próprio ministro Marcelo Calero concorda, “fora de questionamento”. Entretanto, a opinião do ministro sobre o protesto foi questionada pelo diretor e pela atriz Sonia Braga nas redes sociais, como se ele, por sua vez, não tivesse esse direito, nem sequer no contexto de uma entrevista.
Mas o ministro goza da mesma liberdade de expressão que é assegurada ao cineasta e à atriz, que, inclusive, replicam como querem, comprovando que há anos a democracia não é tão discutida e vivenciada neste país. Entretanto, chama atenção o tom de “calaboca” nos posts replicantes, onde se percebe uma arrogância do tipo “saiba com quem está falando” que não condiz com o ideal democrático defendido, supostamente, por ambos os lados.
“Caro Ministro Calero, talvez isso aqui redefina sua noção de o nosso país passar vergonha internacionalmente”, escreveu Mendonça, incluindo em seu post um link para um texto sobre um editorial do jornal The New York Times, que versa sobre a corrupção no governo Temer. “O The New York Times é o mesmo jornal de influência mundial que incluiu meu filme anterior – ‘O Som ao Redor’ -, fruto do MinC, entre os 10 Melhores de 2012, um orgulho para a Cultura Brasileira”.
Nunca é demais lembrar que a corrupção citada no post do cineasta não começou após o afastamento da presidente Dilma Rousseff há poucas semanas, sendo fruto de 13 anos de governo petista, em aliança com os partidos de Temer e Maluf. E que “O Som ao Redor” é mesmo um ótimo filme. Mas o que isso acrescenta na discussão, além de ego e tegiversação?
Sonia Braga foi ainda mais fundo em seu post, arrancando urros de júbilo nas redes sociais, além de render algumas manchetes reveladoras. “A diva e o guri: Sonia Braga manda ‘ministro’ Marcelo Calero se situar”, descreveu o blog de Luis Nassif, festejando a enquadrada. “Estrela de filme pernambucano, Sonia Braga dá ‘aula de história’ a ministro da Cultura”, ponderou o jornal Diário de Pernambuco, sugerindo ironia. E, em outro espectro: “Sonia Braga não aceita ser criticada por ministro mais novo: ‘É inadmissível'”, titulou o Blasting News, mais divertido que os demais. Vale a pena conferir o subtítulo da matéria: “De acordo com atriz, Ministro é muito novo para entender problemas dos artistas”. De rolar de rir.
Publicado no Facebook, o texto da atriz tem a intenção de ser sério. Ele começa dando uma “aula de história para o senhor Marcelo Calero, 33 anos de idade. Eu, só de profissão, tenho 50”. E passa a narrar a luta pelo reconhecimento da profissão de ator nos anos 1970, embutindo no meio realizações pessoais. “Naquela época, acredito, o senhor Marcelo ainda não havia nascido. Por isso, não deve ainda ter tido tempo de aprender sobre os nossos problemas e os nossos direitos”, ela diz, de forma impressionante. E nisso encaixa uma crítica à entrevista de Calero. “Como pode um Ministro dizer que um ato democrático como o nosso é a representação de um País inteiro? Isso é desconhecimento do que significa plena democracia. Se estivéssemos falando em nome de todos não precisaríamos, evidentemente, fazer o ato. Uma coisa é certa: estamos juntos”.
O trecho que chama mais atenção tem enunciado mais claro e impactante. “O Ministro da Cultura ofendendo artistas é inadmissível. O senhor está nesse cargo para dialogar, para nos ajudar, para fazer a ponte com quem nos explora”.
Entra-se num terreno muito delicado. Uma opinião passa a ser tratada como ofensa. “O Ministro da Cultura ofendendo artistas” é uma frase forte e, convenhamos, tão sensacionalista quanto a manchete do Blasting News. Mas não poderia o mesmo ministro dizer que artistas brasileiros ofendendo o Brasil é inadmissível? A narrativa do golpe se diferencia da narrativa do Impeachment neste quesito. Dependendo do ponto de vista, dizer que houve golpe, que não há democracia no Brasil e conclamar nações a não reconhecerem o governo pode, sim, ser considerado ofensivo – no mínimo. Felizmente, a democracia brasileira já está madura o suficiente, com apenas 28 anos – mais jovem, portanto, que o ministro – para fazer prevalecer a tolerância.
Para completar seu raciocínio, Sonia cita as críticas “fabulosas” que “Aquarius” recebeu no exterior como um “ponto grande para a imagem da cultura brasileira no exterior”. E encerra com o que não tem outro nome: uma lição de moral. “Senhor Ministro, não podemos perder as nossas conquistas. Sobretudo a mais importante delas, o respeito”.
A Pipoca Moderna sempre apoiou o cinema brasileiro de qualidade, como os filmes de Kleber Mendonça Filho, e pretende continuar usando sua pequena ressonância para lutar por maior espaço no circuito para essas obras. Boicotes são legítimos numa democracia, assim como nossa postura assumida e conhecida de rechaçar grupos intolerantes. Para ficar claro: jamais promoveremos boicotes e sempre destacaremos filmes de conteúdos sociais relevantes, assim como apoiamos o direito de manifestações pacíficas, como têm sido as realizadas em torno de “Aquarius”. Do mesmo modo e pelas mesmas razões, tampouco simpatizamos com patrulhas ideológicas.
Quando o discurso em prol da democracia embute desprezo ao contraditório, escancara o que esquerda e direita têm em comum: um viés totalitário, na busca de uma visão hegemônica de mundo. Ao contrário disso, a democracia se fortalece com a convivência de vozes divergentes. O protesto em Cannes só é legítimo na medida em que se pode criticá-lo. Talentosos como são Kleber e Sonia, eles sabem que narrativas maniqueístas só convencem quem quer ser convencido, enquanto, para os demais, mostram-se inverossímeis, sem muito acrescentar.