Soldados do Araguaia é obrigatório para saudosistas da ditadura militar
A historiografia brasileira tem muitos esqueletos no armário. Aspectos importantes são deixados de lado, relegados ao esquecimento, como se nunca tivessem existido. O diretor Belisário Franca já havia mexido numa ferida antiga, no documentário “Menino 23”, acompanhando a investigação do historiador Sidney Aguiar, que descobriu tijolos confeccionados com suásticas nazistas, numa fazenda no interior de São Paulo. E acabou revelando a escravização de crianças nos anos 1920 e 1930, promovida por empresários de pensamento eugenista. O vínculo entre elites brasileiras e crenças nazistas se revela por inteiro, no depoimento de uma vítima sobrevivente: menino 23, já que eles tinham que abdicar de seus próprios nomes. Belo documentário. Agora, o cineasta volta à carga com “Soldados do Araguaia”, remexendo na proscrita guerrilha do Araguaia, que aconteceu entre 1967 e 1975, na selva amazônica. Foi um movimento de resistência armada à ditadura militar no campo, visando a atingir comunidades ribeirinhas e rurais na organização da resistência. Acabou sendo dizimada por forças do exército, que recrutavam soldados da própria região, que se apresentavam para o serviço militar e eram treinados para enfrentar a guerra, desconhecendo por completo suas reais motivações. O tal treinamento, revela-se no filme, era de uma crueldade incrível para aqueles recrutas, que sofriam verdadeira tortura física e psicológica, para aprenderem a endurecer com os “subversivos” comunistas, que seriam capturados e barbaramente torturados, mortos, jogados ao mar de helicópteros e todo tipo de excessos. Não havia lei nem nenhum tipo de garantia constitucional ou dos direitos humanos. Tudo podia, na ditadura militar que vigorou por 21 anos no Brasil, especialmente contra a resistência armada, no campo ou na cidade. A partir de um trabalho de apoio aos ex-soldados do Araguaia, que vivem traumas permanentes, relacionam-se com fantasmas e culpas por toda a vida, o documentário “Soldados do Araguaia” resolve ouvi-los, contar suas agruras, suas impressões, suas memórias, os medos que persistem, a opressão que ficou dentro deles, como agentes e vítimas de uma violência inaudita. O que se ouve e se vê é estarrecedor. Quem ainda hoje pensa em restaurar dias como aqueles só pode ser um louco desumano ou um completo desinformado sobre aquele período. Daí a importância de um filme como esse, para que não desejemos repetir atrocidades como aquelas. Quando se quer apagar da história os eventos que não interessa recordar, que comprometem pessoas e instituições de poder, o que nos resta é um limbo perigoso, que pode nos levar a reviver barbaridades, desumanidades, que não se justificam em nome de nenhuma ideia política, seja à direita, seja à esquerda. Combater a opressão ao ser humano se sobrepõe a todas as ideologias ou sistemas de poder. Para que isso seja possível, encarar a verdade dos fatos é essencial. O documentário é um meio, um dos caminhos de concretizar isso e alcançar o público. O problema é a distribuição e exibição dos filmes, que acaba relegando-os a poucos e raros espaços, por pouquíssimo tempo. Os serviços de TV paga, streaming e a disponibilização na Internet podem ajudar. Pode ser incômodo, mas é importante saber dessas coisas.
Programação de cinema mais fraca do ano destaca estreias com robôs gigantes e bichos falantes
Robôs gigantes e bichos falantes ocupam os cinemas dos shopping centers, enquanto outros sete lançamentos buscam espaço no circuito limitado. Mesmo com nove filmes, a programação é das mais fracas do ano. Por isso, as opções recomendadas são exclusivamente documentários. Clique nos títulos abaixo para ver os trailers de todas as estreias. “Círculo de Fogo: A Revolta” é a maior estreia, quase do tamanho de um kaiju, com projeção em 846 salas. Trata-se da continuação do filme que Guillermo del Toro lançou em 2013, antes de se dedicar ao longa que venceu o Oscar 2018, “A Forma da Água”. Mas ele não comanda a sequência, que marca a estreia na direção de Steven S. DeKnight após uma longa carreira como roteirista e produtor de séries, como “Buffy”, “Spartacus” e “Demolidor”. E a diferença é gritante. O primeiro filme não fez grande sucesso de bilheterias, mas agradou a crítica pela disposição de criar uma nova mitologia a partir da cultura de monstros e robôs gigantes do entretenimento pop japonês, mostrando grande paixão pelo gênero. Já o segundo é assumidamente infantilizado como as imitações ocidentais de Hollywood, um cruzamento de “Power Rangers” com “Transformers”. E virou metal retorcido nas mãos da imprensa americana, com 46% de aprovação no site Rotten Tomatoes. Apesar de estrelado por John Boyega (“Star Wars: O Despertar da Força”), no papel do filho do personagem de Idris Elba no longa de 2013, os verdadeiros astros da produção são os robôs, chamados de Jaggers, que inclusive ocuparam todos os pôsteres divulgados da produção. Isto já devia servir de alerta. “Círculo de Fogo: A Revolta” é candidato a ocupar a vaga de “Transformers” na premiação do próximo Framboesa de Ouro. “Pedro Coelho” (Peter Rabbit) é um híbrido de animação e live action, que combina os famosos bichinhos falantes criados pela escritora britânica Beatrix Potter com humanos interpretados por atores de carne e osso. O ponto alto é a qualidade dos efeitos, que misturam perfeitamente digital e real. Já o ponto baixo fica por conta da alteração no tom das aventuras do coelho antropomórfico. Na “atualização” da trama do começo do século 20 para os dias de hoje, o coelho antropomórfico virou personagem de “Jackass”. Uma pena que Will Gluck, que escreve e dirige a adaptação, não tenha aprendido nada com o fracasso do remake de “Annie”, sua outra atualização frustrante de um clássico da literatura infantil (quadrinhos) dos primeiros anos 1900. A média da crítica americana ficou em 59% de aprovação, mas as crianças que gostam de histeria, cores, música alta e tombos, muitos tombos, podem gostar. Americanos limitados Há opções piores vindo de Hollywood nesta semana. Escrito e dirigido por Marc Forster (“Guerra Mundial Z”), o suspense “Por Trás dos Seus Olhos” traz Blake Lively (“Águas Rasas”) numa premissa de thriller doméstico dos anos 1990. Quando uma jovem cega passa por uma cirurgia e recupera a visão, seu marido começa a dar sinais de que a súbita independência dela ameaça o relacionamento. A metáfora não é sutil, mas o diretor tenta aplicar uma abordagem surreal, com imagens oníricas inspiradas na situação visual da protagonista. A mistura de convencional e experimental resulta em rejeição dupla, com apenas 28% de aprovação no Rotten Tomatoes. “A Melhor Escolha” é o novo drama de Richard Linklater (“Boyhood”) e reúne um trio de peso: Bryan Cranston (“Trumbo”), Steve Carell (“A Grande Aposta”) e Laurence Fishburne (“John Wick: Um Novo Dia Para Matar”). Na trama, os três se reencontram, 30 anos depois de servirem juntos na Guerra do Vietnã, para o enterro do filho de um deles, morto durante um novo conflito, na Guerra do Iraque. Como se pode imaginar, trata-se de um filme muito falado, lento, depressivo e politicamente engajado em sua crítica contra as guerras. Isto agradou a crítica americana, que lhe rendeu 76% de aprovação, mas, para o público brasileiro, sua exaltação do patriotismo “estadunidense” (como escreve a “esquerda”) pode ser mais difícil de suportar que o tom fúnebre da produção, baseada em livro de Darryl Ponicsan (autor do romance que virou o clássico “A Última Missão”). Europeus superestimados Estreia mais superestimada da semana, “A Livraria” venceu o Goya (o Oscar espanhol) de Melhor Filme, Direção e Roteiro Adaptado, os dois últimos prêmios conquistados pela cineasta Isabel Coixet. Apesar desse incensamento espanhol, o longa se projeta como um filme britânico antiquado. Elenco, locação, língua e texto original são ingleses. Trata-se de uma adaptação da obra homônima de Penelope Fitzgerald, publicada em 1978, mas passada nos anos 1950, sobre uma mulher que resolve abrir uma livraria numa cidadezinha conservadora e cria controvérsia ao vender exemplares de “Lolita”. Os espanhóis adoraram o retrato intimista da época. Os ingleses odiaram os clichês de drama lento britânico, cheio de diálogos pausados, surtos passivos e elenco de meia idade – Emily Mortimer (“A Invenção de Hugo Cabret”), Bill Nighy (“Uma Questão de Tempo”) e a americana Patricia Clarkson (“Maze Runner: A Cura Mortal”). Com as opiniões literalmente divididas, a aprovação ficou em 50%. O que também significa “medíocre”. “A Odisseia” é a cinebiografia do oceanólogo francês Jacques Custeau, cujos registros marinhos marcaram gerações. Não por acaso, o destaque do filme de Jérôme Salle (“Anthony Zimmer – A Caçada”) é justamente a fotografia submarina, algo aperfeiçoado por Custeau, inventor de equipamentos capazes de registrar a vida no fundo dos oceanos, que revelaram mundos desconhecidos numa série de documentários revolucionários. Mas a história de sua vida é narrada com a convencionalidade dos filmes biográficos que Hollywood faz para o Oscar. Para cada sequência fotográfica de tirar o fôlego, há o dobro de situações melodramáticas de telenovela, que nem o bom elenco – Lambert Wilson (“Homens e Deuses”), Pierre Niney (“Yves Saint Laurent”) e Audrey Tautou (a eterna “Amelie”) – consegue sustentar. 61% de aprovação no Rotten Tomatoes. Outra produção comercial francesa, “Chateau – Paris” explora comédia num bairro de imigrantes em Paris, evocando filmes americanos sobre salões de beleza, como a franquia “Uma Turma do Barulho”. O diferencial da malandragem francesa é a “cor local” da produção, com personagens das mais diferentes culturas, que cria uma atmosfera cosmopolitana para sua versão cor-de-rosa do “gueto”. Brasileiros relevantes Assim, as melhores opções da semana são os documentários brasileiros “Soldados do Araguaia” e “O Jabuti e a Anta”. Como os grandes exemplares do gênero, ambos abordam temas relevantes e inspiram bastante reflexão. O primeiro presta contas de uma história que a História oficial busca esconder, enquanto o segundo chama atenção para um drama em desenvolvimento, que também sofre pressão poderosa para permanecer desconhecido. O diretor Belisario Franca já tinha provocado uma reavaliação histórica da influência nazista no Brasil com seu premiado “Menino 23” (2016). Agora, encontra antigos soldados que combateram na Guerra do Araguaia, um conflito que simplesmente não existe nos livros didáticos, para revelar o enfrentamento entre militantes de esquerda e o exército brasileiro na floresta amazônica, na fronteira paraense do Rio Araguaia. A maioria dos combatentes comunistas foi morta ou executada durante a expedição militar que durou dois anos, entre 1972 e 1974, enquanto os soldados receberam ordens para esquecer o que viram. O outro documentário também se passa em rios amazônicos. O título com bichos silvestres evoca espécies ameaçadas pelo homem. Mas o próprio homem corre risco de extinção na região, graças à obra da Usina de Belo Monte, uma construção que impactou o meio-ambiente e ocasionou mudanças de locação da população ribeirinha e de tribos ali estabelecidas desde antes das caravelas. Uma das vitrines do PAC, o plano de aceleração da corrupção de governos recentes, rendeu fortunas a empreiteiras e incentivou a especulação imobiliária, à revelia do interesse dos habitantes locais. A documentarista Eliza Capai (“Tão Longe É Aqui”) também navegou pelos rios amazônicos até o Peru, onde a população indígena conseguiu impedir obra similar, mostrando os contrastes ambientais dos dois lugares.

