Campo Grande transforma em aflição o abandono social crônico
Em “Campo Grande”, a diretora Sandra Kogut nos coloca num clima de incertezas e aflição. Desde a primeira cena até o seu final, não sabemos direito o que está acontecendo, mesmo depois de nos familiarizarmos com os personagens. A aflição é grande: surge uma menina pequena, de uns 6 anos de idade, de aparência muito simples, abandonada pela mãe numa residência de classe média alta, na zona sul do Rio, em Ipanema. Só vemos a praia por duas vezes, por meio de uma fresta entre prédios. Outro menino abandonado aparece, é o irmão um pouco maior da menina, e ficamos sabendo que sua mãe os orientou a que esperem por ela naquele lugar. A casa é de Regina (Carla Ribas, de “A Casa de Alice”), que não sabe o que fazer nessa situação. Mas muita coisa está acontecendo com ela e com a filha jovem, Lila (Júlia Bernat, de “Aspirantes”). Percebe-se que o apartamento está sendo desmontado e que o pai não está mais ali. Supõe-se que houve uma separação e que vai haver mudança. As pessoas estão vulneráveis, perdidas. Lá fora, os ambientes estão cheios de máquinas e equipamentos, tudo parece em construção ou em reforma, nas proximidades, na rua. Tudo é provisório, se perde ou se desintegra. O abandono não é só o das crianças, é das pessoas, é da própria cidade. Rayane (Rayane de Amaral) e Ygor (Ygor Manoel) são as crianças abandonadas, que moram (moravam?) no bairro de Campo Grande. Tem também uma avó na história deles, que aparece como referência afetiva, mas cuja casa não se localiza. Abrigos de menores, orfanatos entram na dança, enquanto a mãe não aparece (aparecerá?). E quem será? Uma antiga empregada da casa, talvez. Vamos montando as peças para o entendimento da situação por falas dispersas, sussurradas, banais, indefinidas, fora do quadro, perguntas sem respostas dos personagens e um constante mal-estar, que nos mostra algo cifrado, porém num contexto muito conhecido. São as nossas velhas mazelas, os nossos problemas sociais crônicos. As diferenças dos mundos da casa grande e da senzala, que vêm de longe e mudam basicamente só de casca. Esse clima indefinido em que as coisas são mostradas no filme produz a angústia da impotência diante do conhecido, a aflição já referida, alimentada pelo medo e pelas incertezas. Quanto mais bem realizada a sequência, mais bela a poesia da câmera, mais aflitivo fica. A cineasta nos conduz para dentro da questão social com personagens reais, de carne e osso, com os quais compartilhamos uma dor e uma busca que também é nossa. Fazemos parte dela e do abandono que envolve cada um dos personagens. As atrizes protagonistas e as crianças, especialmente o garoto Ygor, enchem de humanidade essa narrativa desafiante para o espectador. Impossível não ser tocado pelo drama insinuado, nunca escancarado, jamais objeto de exploração emocional. Por isso mesmo, tão verdadeiro. Sandra Kogut já havia mostrado grande talento em seu segundo longa, “Mutum”, de 2007, em que o universo de Guimarães Rosa se revelava em poesia, beleza e humanidade. Com “Campo Grande”, ela mostra criatividade ao colocar na sombra, no intertextual, no não-dito, o nosso drama social. Vale comentar, também, que moradores de Campo Grande, um dos mais populosos bairros do Rio, reclamaram junto aos cinemas locais, exigindo que esse filme, que aborda a realidade do bairro, passasse nos cinemas de lá, o que não estava previsto para acontecer. E conseguiram. O povo quer ver sua realidade expressada no cinema, mas o circuito exibidor não tem sensibilidade para perceber isso. E tem outros interesses e compromissos comerciais.
Estreias: Além de Warcraft, cinema brasileiro se destaca com quatro lançamentos
Adaptação de um videogame, “Warcraft – O Primeiro Encontro de Dois Mundos” é a estreia mais ampla da semana, com lançamento em 894 salas. A direção é de Duncan Jones (“Contra o Tempo”), filho de David Bowie, em seu terceiro longa-metragem, mas o primeiro com visual criado por computador, combinando atores reais com orcs gigantescos que só existem como efeitos especiais. Nisso, a obra lembra “Avatar”, mas também videogames, enquanto a história remete ao mundo de conflitos entre raças místicas da Terra Média de Tolkien. Jones, porém, não é James Cameron ou Peter Jackson. E nem os efeitos da empresa clássica ILM (Industrial Light and Magic, criada para os primeiros “Star Wars”) se comparam às criações realistas da WETA (a companhia de efeitos de Jackson). Artificial ao extremo, inclusive nas interpretações, “Warcraft” é um game não jogável, que não entretém como deveria. Nos EUA, onde estreia na próxima semana, foi dilacerado pela crítica (26% de aprovação na média do site Rotten Tomatoes, mais “podre” que o fraco “Alice Através do Espelho”). Diante do predomínio de blockbusters americanos em cartaz (“X-Men”, “Alice”, “Capitão América”, “Angry Birds”, as quatro maiores bilheterias da semana), até as comédias brasileiras, que costumavam ter grande distribuição, precisam se apertar nas salas que sobram. Ainda assim, “Uma Loucura de Mulher” conseguiu 280 telas para projetar sua história de político demagogo e crítica ao machismo em nível besteirol, centrada numa mulher histérica como as caricaturas que predominam o gênero. É o terceiro dos oito filmes da overdose de Mariana Ximenes (“Os Penetras”) prevista para 2016. Em contraste, dois dramas brasileiros de diretores consagrados têm lançamento em pouquíssimas salas, exemplificando a diferença de tratamento do circuito para produções dramáticas nacionais. Dirigido pelo ótimo André Ristum (“Meu País”) e estrelado por Eduardo Moscovis (“Amor em Sampa”), “O Outro Lado do Paraíso” acompanha as dificuldades de uma família durante a construção de Brasília e o golpe militar. Foi vencedor do prêmio do público no Festival de Gramado, mas chega em apenas 21 salas. Ainda mais restrita, a estreia de “Campo Grande”, de Sandra Kogut (“Mutum”), acontece em oito salas (no Rio e em São Paulo). Filme mais qualificado da semana, conquistou troféus nos festivais do Rio, Havana, Mar del Plata e Malaga. Na avaliação das distribuidoras, porém, quanto mais premiado, pior. É também a obra mais terna e emocionante, que gira em torno de um casal de crianças abandonadas na porta da casa de uma mulher na periferia carioca. Sem atores famosos, é puro cinema. Quarta produção nacional da semana, o documentário “Brasil: DNA África” não teve o circuito divulgado. O filme acompanha cinco cidadãos comuns que se submetem a um teste de DNA e descobrem suas origens na África. Entre as produções estrangeiras com distribuição limitada, o pior filme também leva a melhor. Nem Bill Murray evita o desastre de “Rock em Cabul”, em 21 salas. Na “comédia”, ele vive um empresário falido de artistas, que se vê perdido no Afeganistão e ajuda uma jovem local a vencer um reality show. O humor, quando acontece, é ofensivo. Dirigido por Barry Levinson (“Rain Man”), que teve seu auge nos anos 1980, recebeu somente 8% de críticas positivas na média do Rotten Tomatoes. A programação se completa com o drama lituano “Paz para Nós em Nossos Sonhos” em três telas (Porto Alegre, Salvador e Fortaleza) e a comédia francesa “Tudo sobre Vincent”, em duas salas (ambas em São Paulo). O primeiro é uma obra densa e típica do cineasta Sarunas Bartas (“A Casa”), com longos takes e lento feito caracol – não por acaso, sua filmografia raramente chega ao Brasil -, enquanto o segundo oferece humor nonsense sobre o universo dos super-heróis, com um homem que ganha superforça em contato com a água.
Festival de Havana premia Sandra Kogut com troféu de Melhor Direção por Campo Grande
O cinema brasileiro foi o grande vencedor do 37º Festival Internacional do Novo Cinema Latino-Americano de Havana. Embora o troféu de Melhor Filme tenha ido para o chileno “O Clube”, de Pablo Larraín, o Brasil foi o país que mais teve filmes premiados: cinco, no total. A principal consagração individual foi para Sandra Kogut, que venceu o troféu de Melhor Direção por “Campo Grande”, filme sobre crianças abandonadas na porta de um prédio de classe média de Ipanema. “Campo Grande” ainda venceu o prêmio paralelo Signis, conferido por uma associação católica. Além disso, o país também conquistou três prêmios especiais do júri, conferidos para a ficção “Boi Neon”, de Gabriel Mascaro, o documentário “A Paixão de JL”, de Carlos Nader, e a animação “Guida”, de Rosana Urbes. Completa a lista o Prêmio da Crítica para “Paulina”, coprodução com a Argentina, dirigida pelo argentino Santiago Mitre. Tanto o cinema colombiano quanto o mexicano também tiveram bons desempenhos, com cinco troféus, mas divididos entre quatro produções – mais premiados, o mexicano “Te Prometo Anarquia” venceu como Melhor Roteiro (do cineasta Julio Hernández Cordón) e Ator (prêmio compartilhado por Diego Calva e Eduardo Eliseo Martínez), e o colombiano “O Abraço da Serpente” em duas categorias técnicas. Por sua vez, o cinema argentino emplacou quatro troféus, com destaque para o Prêmio do Público, conferido a “O Clã”, atualmente em cartaz no Brasil. [symple_toggle title=”Clique aqui para conferir a lista completa dos premiados” state=”closed”] Vencedores do Festival de Havana 2015 [symple_column size=”one-half” position=”first” fade_in=”false”] FICÇÃO Prêmio Coral de Melhor Filme O Clube (Chile) Prêmio Especial do Júri Boi Neon (Brasil) Melhor Direção Sandra Kogut, por Campo Grande (Brasil) Melhor Atriz Jana Raluy, por Sociedade Indiferente (México) Melhor Ator Diego Calva e Eduardo Eliseo Martínez, por Te Prometo Anarquia (México) Melhor Edição O Abraço da Serpente (Colômbia) Melhor Trilha Sonora Original O Abraço da Serpente (Colômbia) Melhor Som Yo (México) Melhor Roteiro Te Prometo Anarquia (México) Melhor Fotografia Luz Incidente (Argentina) Melhor Direção de Arte Luz Incidente (Argentina) Prêmio do Público O Clã (Argentina) Prêmio da Crítica Paulina (Argentina/Brasil) [/symple_column] [symple_column size=”one-half” position=”last” fade_in=”false”] DIRETORES ESTREANTES Melhor Primeiro Filme Desde Allá (Venezuela) Prêmio Especial do Júri Magallanes (Peru) Prêmio Coral de Contribuição Artística Mãos Sujas (Colômbia) DOCUMENTÁRIOS Melhor Longa Casa Blanca (Cuba) Melhor Curta Tripido (Colômbia) Prêmio Especial do Júri A Paixão de JL (Brasil) Menção Honrosa Los Impunes (França) ANIMAÇÕES Melhor Média Las Aventuras de Juan Quin Quin (Cuba) Melhor Curta Los Ases del Corral (México) Prêmio Especial do Júri Guida (Brasil) CURTAS Melhor Curta La Nube (Cuba) Menção Honrosa Camino del Agua (Colômbia) [/symple_column] [/symple_toggle]


