A Raiva do cinema português merece atenção dos cinéfilos
“Raiva” é um filme português de grande rigor estético, seco como a vida camponesa que retrata, no baixo Alentejo, sul de Portugal, anos 1950. A ditadura de Salazar mortificava o país, naqueles tempos em que aos pobres faltava tudo: casa, comida, trabalho, estudo, dinheiro. A mobilidade social era inexistente, como se explicita no filme, quem nascia pobre morria pobre e quem nascia rico morria rico. A trama sobre abuso e revolta é baseada no romance “Seara do Vento”, de Manuel da Fonseca, um clássico da literatura portuguesa do século 20. Dialoga com “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos. Em que pesem as referências geográficas, políticas e sociais, a direção de Sérgio Tréfaut busca algo quase atemporal, mitológico. Extirpa a narrativa de explicações sociológicas e de componentes ideológicos, para expor uma história em que há mortos, mas não heróis ou bandidos, não há música manipuladora de emoções, não se busca o naturalismo, nem o espelho da TV. A fotografia em preto e branco, bela mas despojada, se destaca em um filme que valoriza o silêncio, reduz as falas, mostra a vida, os sentimentos de forma crua. Há os camponeses, a luta pelo trabalho e pela dignidade e uma reflexão sobre as origens de uma forte revolta. É como o filme começa. Mostra dois violentos assassinatos em clima de bangue-bangue. Como se chegou a isso é a trama de “Raiva”, em flashback. A produção envolveu Brasil e França, além de Portugal. O diretor Sérgio Tréfaut é luso-brasileiro, paulista que vive em Portugal. Seu trabalho organicamente disciplinado e austero tem a força de um retrato que atravessa os tempos e os continentes. De algum modo, está em toda parte, em todas as épocas, como que a revelar o desconsolo da humanidade que se nutre das desigualdades e do autoritarismo para oprimir, buscar calar, produzir conformidade. Um excelente elenco sustenta uma narrativa de desempenhos marcantes, mais interiorizados do que exibidos. A explosão, que surpreende, diante da contenção que a forjou. Hugo Bentes, como Palma, o protagonista, e grandes atores e atrizes, como Leonor Silveira, Diogo Dória e Isabel Ruth, sustentam um trabalho artístico de valor. Não visa ao sucesso de bilheteria, não faz concessões ao gosto médio. Um filme até fora de moda, como o define o próprio cineasta, mas que merece toda a atenção dos cinéfilos.
Capitã Marvel é a única estreia ampla desta semana nos cinemas
Único lançamento amplo desta quinta (7/3), “Capitã Marvel” é o primeiro filme de super-herói do ano, e sua estreia vira a página do Oscar na programação dos cinemas. Com marketing intenso e distribuição ostensiva, o longa estrelado por Brie Larson deve se tornar um fenômeno cultural como “Pantera Negra” e “Mulher-Maravilha”. Não lhe faltam ação, diversão e efeitos em doses cavalares, além de ser exatamente o que se espera da Marvel. A jornada heroica que ecoa tantas outras, desta vez se diferencia por empoderar a primeira super-heroína do estúdio. Não se trata somente de um episódio intermediário, para se consumir entre “Vingadores: Guerra Infinita” e “Vingadores: Ultimato”, mas um capítulo vibrante da complexa “guerra cultural” travada no mundo real, entre defensores da diversidade e opressores. “Capitã Marvel” é também o único filme americano da programação desta semana, que tem até filme africano, “Yomeddine – Em Busca de um Lar”, representante do Egito na disputa por uma vaga no Oscar de Melhor Filme em Língua Estrangeira. A lista de estreias ainda inclui o português “Raiva”, que contrasta uma fotografia belíssima em preto-e-branco com uma história sobre a miséria, o italiano “O Rei de Roma”, sátira à hipocrisia da classe política corrupta, o documentário “Diários de Classe”, sobre três mulheres – uma trans, uma ex-presidiária e uma doméstica – que tentam mudar de vida ao aprender a ler e escrever, e o drama brasileiro “O Último Trago”, vencedor de três troféus no Festival de Brasília. Dentre todos, o destaque do circuito limitado é o outra produção nacional, o suspense “Albatroz”. Não se trata de uma obra exatamente “fácil”. Mas foi escrita por Bráulio Mantovani, autor de “Cidade de Deus” e “Tropa de Elite”, que consegue dar um mínimo de coerência ao emaranhado de questionamento moral, sentimento de culpa e delírio da trama. Alexandre Nero (“João, o Maestro”) vive um fotógrafo que flagra um ato terrorista em Jerusalém, mas em vez de ajudar a vítima, apenas fotografa, o que lhe rende fama e patrulhamento. O detalhe é que essa informação vem fragmentada, junto do sumiço de sua mulher após um acidente de carro, a volta da ex com desejo de vingança e até um flerte com a ficção científica. Totalmente inesperado, tende a dividir opiniões – e aplausos pela ousadia. A direção é de Daniel Augusto, de “Não Pare na Pista”, sobre o escritor Paulo Coelho. Para saber mais sobre os filmes, confira abaixo os trailers e as sinopses de todos os lançamentos. Capitã Marvel | EUA | Super-Heróis Aventura sobre Carol Danvers, que tem contato com uma raça alienígena e ganha poderes sobre-humanos, tornando-se a mais poderosa entre os super-heróis de todo o mundo. Albatroz | Brasil | Suspense O fotógrafo Simão (Alexandre Nero), casado com Catarina (Maria Flor), uma compositora de jingles publicitários, se apaixona pela atriz judia Renée (Camila Morgado), com quem viaja a Jerusalém. Lá ele acaba registrando um atentado terrorista, o que lhe torna mundialmente famoso. Mas, ao mesmo tempo, surgem críticas negativas por ele ter fotografado em vez de tentar evitar a tragédia. Simão entra em depressão e fica na fronteira entre realidade, sonho e delírio. O Último Trago | Brasil | Drama Uma mulher resgatada à beira da estrada incorpora o espírito de uma guerreira indígena desencadeando uma série de eventos que atravessam os tempos e os espaços. Do sertão nordestino ao litoral, séculos de lutas de dominação e resistência. O Rei de Roma | Itália | Comédia Numa Tempesta (Marco Giallini) é um focado e carismático empresário que, levado por uma gigante necessidade de ser bem sucedido, faz qualquer coisa para fechar um negócio, mesmo que isso o leve a infringir a lei. Depois de uma negociação dar errado, ele é pego pela polícia e condenado a cumprir um ano de serviço social, e fará qualquer coisa para voltar a trabalhar normalmente. Yomeddine – Em Busca de um Lar | Egito, França | Drama Beshay (Rady Gamal) é um coletor de lixo que decide sair do confinamento de uma colônia de leprosos pela primeira vez e embarca em uma jornada ao Egito para procurar sua família. Ele viaja com seu burro e seu aprendiz órfão ao longo do Nilo e, pela primeira vez, fica cara a cara com a maldição de ser um estranho. Raiva | Portugal | Drama Nos remotos campos do Baixo Alentejo, no sul de Portugal, a miséria e a fome assolam a população. Quando dois violentos assassinatos acontecem em uma só noite, um mistério toma o lugar: qual poderia ser a origem desses crimes? Diários de Classe | Brasil | Documentário O cotidiano de três mulheres – uma jovem trans, uma mãe encarcerada e uma empregada doméstica –, estudantes de centros de alfabetização para adultos em Salvador. Embora trilhem caminhos distintos, suas trajetórias coincidem nos preconceitos e injustiças sofridos cotidianamente.

