Morre o cartunista Jaguar, fundador do Pasquim, aos 93 anos
Criador do ratinho Sig e voz irreverente do jornal satírico, ele estava internado com pneumonia no Rio de Janeiro
Documentário resgata talento e importância de Henfil
A partir de 1969, com o golpe dentro do golpe militar, as esperanças de uma volta à democracia acabaram de vez. Um dos meus momentos de respiro e felicidade era ir às bancas de jornais, semanalmente, comprar e ler “O Pasquim”, jornal de humor e política que marcou época como mídia de resistência. A publicação reunia a fina flor do jornalismo crítico do período, gente como Millôr Fernandes, Tarso de Castro, Ivan Lessa, Paulo Francis, Sérgio Cabral pai, Sérgio Augusto, Tárik de Souza e cartunistas e desenhistas do quilate de um Ziraldo, um Jaguar, um Fortuna. Pois, diante desse time de cobras, um dos grandes destaques e sucesso comprovado do Pasquim era Henrique Filho, o Henfil (1944-1988). O mineirim, filho de D. Maria, irmão do cantor e compositor Chico Mário, de Glorinha e do Betinho. O país que sonhava “com a volta do irmão do Henfil”, na magnífica canção de João Bosco e Aldir Blanc, imortalizada por Elis Regina, referia-se ao Betinho da luta contra a fome, que ficou para as páginas mais bonitas da história do nosso país. Enquanto o general Figueiredo preferia o cheiro dos cavalos ao cheiro do povo, os personagens de Henfil exalavam povo por todos os poros. O povo era, para ele, a única esperança real. Os fradinhos, o cumprido resignado e o baixinho provocador, marcaram época. E a Graúna, o Zeferino, o bode Orelana, Ubaldo, o paranóico, e o Cabôco Mamadô são insuperáveis. Tem também o Urubu flamenguista, lançado nos tempos de sua participação na mídia esportiva. E quem pode se esquecer das famosas cartas que ele escrevia para a mãe, na revista Isto É , entre 1977 e 1984, com uma foto de D. Maria no alto? Cartunista e artista multimídia, diríamos hoje, Henfil escreveu livros, atuou na TV e no cinema, mas não chegou a concretizar um filme de animação com seus personagens. No documentário “Henfil”, dirigido por Angela Zoé, ela tenta reparar isso, filmando um grupo de jovens animadores que, a partir de um workshop sobre o trabalho de Henfil, cria um curta de animação com os personagens dele. O processo é mostrado e o resultado é apresentado no final do filme. Para isso, contaram com a ajuda de Ziraldo, por exemplo, que lhes mostrou que a Graúna não poderia ficar certinha e bonitinha, porque o traço que a caracterizava era sujo, nervoso, desenho em movimento. De fato, em poucas linhas, Henfil mostrava tudo, em ação. Com poucas palavras, dizia tudo, também. De um modo urgente, tinha que ser para já, como o lema “Diretas já”, que ele produziu e disseminou. Para essa urgência certamente contribuiu a hemofilia, a doença que o acompanhou por toda a vida e foi a causa de sua morte em decorrência da Aids, contraída numa transfusão de sangue, que fazia parte da sua rotina de sobrevivência. Só que num tempo em que o controle dos bancos de sangue no Brasil era precário. Haja vista o grande número de casos de contaminação pelo vírus HIV por essa via que ocorreu nos anos 1980. Nessa época, eu já trabalhava com educação sexual nas escolas públicas e particulares e costumava atender convites da mídia para falar sobre o assunto. Foi numa dessas situações que acabei conhecendo o Henfil pessoalmente. Num programa da TV Cultura, conduzido por Júlio Lerner (1939-2007). Apresentei o assunto mostrando sua importância, o valor científico e a seriedade que a abordagem exigia. Ele concordou totalmente, mas acrescentou que eu não me esquecesse de pôr humor nessa didática. A educação sexual tinha de ser divertida, também. É isso mesmo. Ele nunca deixou de pôr humor na vida, mesmo nos momentos mais tenebrosos do país, na ditadura militar, ou nos graves problemas de saúde que tinha de enfrentar. Participam do documentário “Henfil” gente que viveu e trabalhou ao seu lado, como os já citados Ziraldo, Jaguar, Sérgio Cabral pai, Tárik de Souza e ainda Lucas Mendes, amigos e familiares. Imagens do Henfil em entrevistas, em lançamento de livros, em filmagens familiares ou de viagens compõem um painel abrangente do grande talento que ele foi. E como ele faz falta até hoje! Ver o filme “Henfil” é recuperar a história desse grande artista brasileiro, de sua luta política valendo-se do humor corrosivo e do desafio que foi e continua sendo a luta contra a Aids.
Documentário sobre Henfil vence o Festival Cine PE 2018
O documentário “Henfil”, sobre o cartunista, jornalista e escritor mineiro que marcou os anos 1970 com a criação do Fradim, venceu duplamente o festival Cine PE 2018, escolhido pelo júri oficial e pelo público como o Melhor Filme em longa-metragem da programação do evento, encerrado na noite de terça (5/6). O filme também rendeu troféus de direção e roteiro, ambos de Angela Zoé (“Meu Nome é Jacque”), que resgatou a intimidade de Henfil, morto em 1988, ao ser contaminado com HIV numa transfusão de sangue. A cineasta teve acesso à filmagens em Super 8 do acervo pessoal do célebre cartunista e resgatou seus desenhos críticos ao regime militar, nas charges publicadas no semanário “O Pasquim” em plena ditadura. Mas foi “Os Príncipes”, de Luiz Rosemberg Filho (“Guerra do Paraguay”), que conquistou o maior número de prêmios, recebendo seis Calungas de Prata, o troféu do Cine PE, incluindo os de Melhor Atriz, Ator e Ator Coadjuvante, respectivamente para Patrícia Niedermeier, Igor Cotrim e Tonico Pereira. O falso documentário “Vidas Cinzas”, de Leonardo Martinelli, ganhou o prêmio de melhor curta nacional no Cine PE. Já a mostra competitiva de curtas Pernambucanos premiou “Uma Balada para Rocky Lane”, dirigido por Djalma Galindo. O documentário “Marias”, de Yasmin Dias, e as animações “Insone”, de Débora Pinto e Breno Guerreiro, e “Plantae”, de Guilherme Gehr, receberam Menção Honrosa do júri do festival. Confira abaixo a lista completa de premiados. Vencedores do festival Cine PE 2018 MOSTRA COMPETITIVA DE LONGAS-METRAGENS Melhor Filme – “Henfil” Melhor Direção – Angela Zoé (“Henfil”) Melhor Roteiro – Angela Zoé e Gabriela Javier (“Henfil”) Melhor Fotografia – Alisson Prodlik (“Os Príncipes”) Melhor Montagem – João Rodrigues e Indira Rodrigues (“Henfil”) Melhor edição de som – Marcito Vianna (“Os Príncipes”) Melhor Trilha Sonora – Gustavo Jobim (“Os Príncipes”) Melhor Direção de Arte – Letycia Rossi (“Dias Vazios”) Melhor Ator Coadjuvante – Tonico Pereira (“Os Príncipes”) Melhor Atriz Coadjuvante – Carla Ribas (“Dias Vazios”) Melhor Ator – Igor Cotrim (“Os Príncipes”) e Arthur Ávila (“Dias Vazios”) Melhor Atriz – Patrícia Niedermeier (“Os Príncipes”) MOSTRA COMPETITIVA DE CURTAS-METRAGENS NACIONAIS Melhor Filme – “Vidas Cinzas” Melhor Direção – Klaus Hastenreiter (“Não Falo com Estranhos”) Melhor Roteiro – Rubens Passaro (“Universo Preto Paralelo”) Melhor Fotografia – Ivanildo Machado (“Sob o Delírio de Agosto) Melhor Montagem – Pedro de Aquino (“Vidas Cinzas”) Melhor Edição de Som – Rafael Vieira (“Abismo”) Melhor Trilha Sonora – Alexsandra Stréliski e Ludovico Einaudi (“Plantae”) Melhor Direção de Arte – Rachel Oleksy (“Teodora Quer Dançar”) Melhor Ator – Jurandir de Oliveira (“Abismo”) Melhor Atriz – Mariana Badan (“Teodora quer Dançar”) Menções Honrosas – “Marias”, “Plantae” e “Insone” MOSTRA COMPETITIVA DE CURTAS-METRAGENS PERNAMBUCANOS Melhor Filme – “Uma Balada para Rocky Lane” Melhor Direção – Diego Melo (“Seja Feliz”) Melhor Roteiro – Fabio Ock (“Seja Feliz”) Melhor Fotografia – Henrique Spencer (“Frequências”) Melhor Montagem – Marcos Buccini (“O Consertador de Coisa Miúdas”) Melhor Edição de Som – Adalberto Oliveira (“Frequências”) Melhor Trilha Sonora – Neilton Carvalho (“O Consertador de Coisas Miúdas”) Melhor Direção de Arte – Lia Letícia (“Frequências”) Melhor Ator – Heraldo Carvalho (“Edney”) Melhor Atriz – Roberta Mharciana (“Cara de Rato”) PRÊMIO DA CRÍTICA Melhor Longa-Metragem – “Christabel” Melhor Curta Nacional – “Abismo” Melhor Curta Pernambuco – “Seja Feliz” PRÊMIO CANAL BRASIL Melhor Curta: “Universo Preto Paralelo” (SP)
Repleto de lacunas, o filme Elis dá saudades da cantora Elis
Elis Regina (1945-1982) foi uma cantora perfeita. Voz, dicção, técnica e afinação impecáveis. E uma intérprete fabulosa, da dimensão de Edith Piaf, Amália Rodrigues ou Ella Fitzgerald. Um portento. Nada mais justo e razoável que uma carreira como essa seja objeto de uma cinebiografia. A questão é alcançar a qualidade artística necessária para fazer jus ao projeto. Isso, o filme “Elis”, de Hugo Prata, alcança parcialmente. Quando entra em cena Andréia Horta (da novela “Liberdade, Liberdade”), Elis realmente revive na tela. A atriz faz um trabalho notável, digno de muitos prêmios. A figura de Elis emerge em gestos, movimentos, risos de arreganhar a gengiva, coreografias que acompanham o canto, enfim, no seu conhecido estilo de ser, determinado, irônico e agressivo. As interpretações de Elis estão lá inteiras, com alta qualidade de som, já que não é Andréia quem canta, ela dubla Elis. Perfeito! Bem, nem tanto. O repertório escolhido é todo muito bom, como aliás era o repertório de Elis Regina em todas as fases de sua carreira. Mas há ausências inconcebíveis. Elis foi a principal intérprete de Milton Nascimento e Gilberto Gil. Nenhuma música deles está no filme. Como não está nada da antológica gravação que ela fez com Tom Jobim. Nem suas inovadoras interpretações de Adoniran Barbosa. Problemas com os direitos das músicas? Falha grave, do ponto de vista artístico. O começo real da carreira dela também foi deletado. Vendo o filme, tudo parece ter começado no Rio, com “Menino das Laranjas” (de Theo Barros), embora se faça referência à sua origem gaúcha e trabalho em Porto Alegre. Só que Elis Regina gravou 2 LPs na gravadora Continental: “Viva a Brotolândia”, em 1961, e “Poema”, em 1962. São 24 faixas gravadas, de discos escancaradamente comerciais, tentando lançar a cantora para concorrer com Celly Campello (1942-2003), que fazia muito sucesso na época. Elis renegou essa fase de sua carreira, rejeitou esses discos (que não são tão ruins assim), mas é algo que teria de ser registrado numa cinebiografia que deu relevo ao trabalho da cantora. Da vida pessoal de Elis, o casamento com Ronaldo Bôscoli durou pouco, uns cinco anos, foi muito conturbado, já que ele era mulherengo, infiel. Seu papel artístico junto a ela acrescentou pouco à arte de Elis. Pelo filme, ele foi o maior amor da vida dela e teve papel artístico muito relevante. Uma forma de romancear e fazer uma narrativa atraente? O fato é que o casamento com César Camargo Mariano foi mais longo e muitíssimo mais importante, do ponto de vista artístico. No filme, ele perde essa força. Mas nunca Elis foi tão brilhante como quando entoou canções arranjadas por César. Era algo de arrasar quarteirão de tão bom, tão sofisticado. Quem viveu esse período sabe disso. E as gravações estão aí para comprovar. Algumas no filme, também, claro. Os conflitos políticos que envolveram a ditadura militar, o canto de Elis na Olimpíada do Exército, a reação fulminante de Henfil no Pasquim, colocando-a no cemitério dos mortos-vivos, e a evolução que a levou a entoar o hino informal da anistia, “O Bêbado e a Equilibrista”, de João Bosco e Aldir Blanc, onde se pedia a volta do irmão do Henfil (Betinho), estão muito bem retratados. A cena em que ela aparece sendo vaiada em show ao vivo me parece excessiva para ser considerada real. Os espetáculos, muito bem produzidos para palco, com ênfase teatral, além do show, como “Transversal do Tempo” e “Saudade do Brasil”, não aparecem. E o grande sucesso, “Falso Brilhante”, um ano em cartaz, não é retratado, realmente. Apenas a música cantada surge e não o frenesi que foi aquela montagem teatralmente empolgante. Em suma, o filme está cheio de lacunas e falhas, que não vão passar despercebidas aos fãs de Elis, que conhecem a sua trajetória. Ainda assim, é um espetáculo bom de se ver, com uma atriz sensacional e uma música extraordinariamente bela. A produção serve mais é para dar muita saudade!



