O que Eu Fiz para Merecer Isso? mostra a graça do cinema de Patrice Leconte
“O que Eu Fiz para Merecer Isso?” questiona, já em seu cartaz original, o egoismo do personagem de Christian Clavier (o Astérix de “Astérix e Obélix contra César”). Mas é muito fácil se colocar nos sapatos de Michel, o personagem, principalmente se você gosta muito de alguma forma de arte e valoriza o que pessoas mais pragmáticas consideram ter pouca importância. Michel é um sujeito de meia-idade, fã de jazz, e que por acaso encontrou em uma loja um disco raro de um artista de quem gosta muito. Tudo que ele mais deseja naquele instante é um momento de tranquilidade para poder escutar com calma e com prazer aquela preciosidade. Mas, no meio caminho para a satisfação pessoal, encontra um cliente chato, e a lista de pessoas que o interrompem começa a aumentar em proporção geométrica, assim que ele adentra o prédio onde mora. A própria mulher, vivida pela ainda bela Carole Bouquet (quem não lembra dela em “Esse Obscuro Objeto do Desejo”, de Luis Buñuel?), traz um assunto delicado à tona. Que ele, claro, quer adiar em pelo menos uma hora. A direção de “O que Eu Fiz para Merecer Isso?” é de Patrice Leconte, conhecido realizador que já chegou a ser considerado um dos expoentes do novo cinema francês, graças a filmes como “Um Homem Meio Esquisito” (1989) e “O Marido da Cabeleireira” (1990). Não que ele tenha deixado de fazer filmes, mas suas obras não têm chegado com frequência em nosso circuito. Só por isso, a distribuidora merece parabéns por trazer esta deliciosa comédia. E é curioso como há várias subtramas que também enriquecem o filme, embora a questão básica seja a principal, quase como numa obra de Buñuel, abordando a incapacidade ou a impotência de um homem frente a uma situação – lembrando novamente de “Esse Obscuro Objeto do Desejo” (1977), mas também de “O Anjo Exterminador” (1962). Nas tais subtramas, temos a questão da infidelidade do casal central e uma somatória de personagens secundários que se agigantam mesmo em papéis pequenos, como a almodovariana Rossy de Palma (“Abraços Partidos”), no papel da empregada da casa, os bombeiros que trabalham na reforma de um quarto do apartamento, o vizinho chato que quer saber mais da vida do protagonista e o filho (Sébastien Castro, de “Beijei uma Garota”) com quem ele não consegue ter uma sintonia. É uma comédia leve, inconsequente, baseada numa peça (de Florian Zeller), mas feita com esmero, e que se torna mais e mais interessante à medida em que sua trama evolui, e também à medida em que pensamos nela. Afinal, seu mote é a confirmação sartriana de que o inferno são os outros. Curiosamente, Leconte vem fazendo comédias como essas há bastante tempo – desde os anos 1970, na verdade. No entanto, o que acabou chegando ao nosso circuito foram seus dramas, com um ar mais característico de filmes de arte.
Capitão América: Guerra Civil tem um dos maiores lançamentos de todos os tempos no Brasil
A estreia de “Capitão América: Guerra Civil” monopoliza os cinemas brasileiros a partir desta quinta (28/4). A Disney lançou o filme em nada menos que 1,4 mil salas. Trata-se do segundo maior lançamento de todos os tempos no país, ocupando quase 50% de todo o parque exibidor nacional. O recorde pertence a “Star Wars: O Despertar da Força”, que ocupou 1.504 salas em dezembro passado. O filme dos super-heróis é ótimo, mas mesmo que fosse podre já teria vantagem para abrir em 1º lugar e até conquistar um possível recorde de bilheteria com esta exposição excessiva. Além disso, como teve lançamento monstro, todo o resto da programação precisa se espremer para o circuito alternativo. As “demais” estreias somam nada menos que oito filmes, entre eles um drama estrelado por um ex-intérprete de super-herói, Tobey Maguire, da trilogia original do “Homem-Aranha”. Enquanto “Capitão América” introduz o novo Homem-Aranha, Maguire segue a carreira com a cinebiografia do enxadrista Bobby Fischer em “O Dono do Jogo”, uma história de gênio torturado que remete ao premiado “Uma Mente Brilhante” (2001). Maior estreia limitada, chega em 55 salas. A comédia francesa “O que Eu Fiz para Merecer Isso” vem a seguir, em 22 salas, enquanto o resto tem distribuição contada nos dedos das mãos. Em dez salas, o documentário vencedor de Berlim, “Fogo no Mar”, de Gianfranco Rosi, registra o êxodo dos refugiados para a Europa em uma perigosa travessia. Já a lista dos que ocupam menos de cinco salas inclui o drama francês “Dois Rémi, Dois”, inspirado em “O Duplo”, de Fiódor Dostoievski, e, criminosamente, quatro ótimos longas brasileiros. O premiado “Exilados do Vulcão”, de Paula Gaitán, vencedor do Festival de Brasília de 2013, esperou quase três anos para chegar as cinemas. E recebeu isso do mercado: uma sala em São Paulo, uma no Rio, uma em Belo Horizonte, uma em Aracaju e outra em Vitória. A situação é ainda pior para “A Frente Fria que a Chuva Traz”, que marca a volta de Neville D’Almeida aos cinemas. O diretor de clássicos como “A Dama do Lotação” (1978) e “Os Sete Gatinhos” (1980) não filmava há duas décadas, desde “Navalha na Carne” (1997). E o esforço de seu retorno é saudado com exibição em duas salas, uma no Rio e outra em São Paulo. Absurdo!!! A marginalização sofrida é desproporcional. Não apenas pelo conteúdo, baseado na peça de um dramaturgo atual, Mário Bortolotto (“Nossa Vida Não Cabe Num Opala”), como pela embalagem, com um elenco repleto de estrelas jovens bastante populares – Chay Suede e Bruna Linzmeyer. Ou seja, há apelo comercial. O que aumenta ainda mais o questionamento a essa sabotagem explícita. Será que o cinema brasileiro é tão desprezível que o mercado não se importa em fazer isso com um cineasta do porte de Neville D’Almeida? Será que a culpa é da Disney, que ocupou as salas; do circuito exibidor, que ofereceu as salas; ou da Ancine, que só bufa diante do número de salas disponíveis para os lançamentos nacionais? Claro que, como é praxe neste país, a culpa será das vítimas, que erraram ao produzir filmes brasileiros de qualidade e voltaram a errar ao tentar lançá-los durante o período em que os blockbusters sufocam o circuito (6 dos 12 meses do ano). Humilhante. Para completar as estreias, o mercado ainda espreme o documentário futebolístico “Geraldinos”, de Pedro Asbeg e Renato Martins, vencedor do prêmio do público na última Mostra de Tiradentes, em uma sala em São Paulo, e “Teobaldo Morto, Romeu Exilado”, de Rodrigo de Oliveira, em três salas entre Vitória, Goiânia e Aracaju. Pela ganância desmedida e falta de regulamentação, o filme dos super-heróis da Marvel será lembrado, infelizmente, como vilão. De propósito ou não, assumiu o papel de grande inimigo do cinema nacional, impossibilitando, com sua tática de dominação, que trabalhos reconhecidamente competentes pudessem alcançar maior público. O melhor filme já feito pela Marvel não merecia virar emblema do descontrole do mercado.

