O Dia Depois é tragicomédia estilizada à maneira de Hong Sang-soo
Pequena crônica do cotidiano, a comédia dramática sul-coreana “O Dia Depois” acompanha o editor literário Kim Bongwan (Kwon Hae-hyo, de “A Visitante Francesa”), um homem arrogante, covarde e mulherengo que se vê constantemente envolvido em situações tragicômicas. O longa inicia com Bongwan sendo questionado pela esposa se ele tem uma amante. Por mais que a mulher insista na pergunta, ele opta por não falar nada. A dúvida, porém, não dura muito tempo, já que a montagem não linear logo responde esse questionamento para o espectador ao mostrar o protagonista se agarrando com uma funcionária da sua editora. Mas o relacionamento extraconjugal parece não ter dado muito certo, porque em seguida ele é visto entrevistando uma nova funcionaria para a vaga da sua antiga amante. O filme é escrito e dirigido pelo dinâmico cineasta sul-coreano Hong Sang-soo (“Na Praia à Noite Sozinha”), que chega a lançar até duas produções por ano. Para manter esse ritmo, Sang-soo não perde muito tempo. Uma vez que estabeleceu os respectivos personagens, o diretor logo passa a explicitar os absurdos daquela situação de maneira leve e extremamente divertida. Contando com uma montagem precisa, ele retira tudo aquilo que poderia ser considerado desnecessário, mantendo apenas o cerne da sua narrativa intacto. Ou seja, ele não se preocupa em desenvolver o antes e o depois das situações, apenas o meio delas, aproveitando ao máximo os 92 minutos de duração. A passagem de tempo pode parecer confusa em alguns momentos, em parte por conta da fotografia em preto e branco. Porém, esse embaralhamento dos acontecimentos é proposital e instiga o público a montar as sequências temporais na sua cabeça. Desta forma, algumas cenas soam aleatórias quando são apresentadas, mas aos poucos passam a fazer sentido dentro da cronologia montada pelo espectador. Da mesma maneira, ao manter a câmera parada na maior parte do tempo e investir bastante em planos-conjunto (aqueles nos quais vemos duas pessoas em cena, ao mesmo tempo), o diretor explora a interação entre aquelas pessoas, o que o permite explicitar ainda mais a falta de escrúpulos do seu protagonista. E é justamente no personagem-principal que reside a maior força de “O Dia Depois”, pois Kwon Hae-hyo interpreta Bongwan com um misto de canalhice e ingenuidade. Incapaz de perceber os absurdos das suas ações, ou simplesmente optando por ignorá-los, ele se mantém inerte em relação a tudo o que se desenrola à sua volta, não assumindo responsabilidade por nada. E por pior que ele seja, o destino sempre parece conspirar a seu favor. Em suma, ele é um cafajeste. Mas é um cafajeste muito divertido.
Rampage opta pelo gigantismo para se destacar entre as estreias de cinema da semana
Maior estreia da semana, “Rampage – Destruição Total” chega em quase mil salas, apostando que a ocupação do espaço cinematográfico, overdose de marketing, monstros gigantes e a popularidade do astro Dwayne Johnson sejam capazes de transformar um lançamento genérico num blockbuster. Mas este não é um novo “Jumanji”. Apesar de baseado num jogo antigo de arcade, esta adaptação se leva a sério demais, com muitas explosões e expressões compenetradas, embora não passe, basicamente, de um amontoado de absurdos dignos da série “Zoo”, já cancelada. O filme é uma adaptação do velho game homônimo lançado em 1986, em que três criaturas gigantes (o macaco George, o lagarto Lizzy e o lobisomem Ralph) destruíam cidades e lutavam contra militares. E a trama não passa disso, com alguns vilões humanos para justificar “cientificamente” a transformação dos bichos em pseudo-Godzillas. A versão de cinema foi escrita pelos roteiristas Carlton Cuse e Ryan Condal (criadores da série “Colony”), marcando um reencontro entre Condal e Johnson após o fraco “Hércules” (2014). “Rampage”, por sinal, também é o terceiro filme do ator dirigido por Brad Peyton, que o comandou em “Terremoto: A Falha de San Andreas” (2015) e “Viagem 2: A Ilha Misteriosa” (2012). Todos muito bem-sucedidos nas bilheterias. E todos considerados medíocres pela crítica. Desta vez não é diferente, com apenas 49% de aprovação no Rotten Tomatoes. Os demais lançamentos chegam em circuito bem menor, após passarem por festivais internacionais. Clique nos títulos de cada filme para ver os trailers de todas as estreias. Novo filme de Roman Polanski A estreia mais convencional é “Baseado em Fatos Reais”, um thriller do veterano Roman Polanski. Trata-se da adaptação do livro homônimo de Delphine de Vigan, que venceu diversos prêmios literários em 2015, com roteiro de outro cineasta famoso, Olivier Assayas (“Personal Shopper”). Mas se essa combinação gera expectativa, ela logo se frustra ao entregar um amontoado de clichês do gênero, de “Mulher Solteira Procura” (1992) a “Louca Obsessão” (1990). Na trama, a esposa do diretor, Emmanuelle Seigner (“A Pele de Vênus”), vive o alter-ego de Delphine de Vigan, uma escritora que passa por um bloqueio criativo após o lançamento de seu último e bem-sucedido livro. O momento difícil é superado com a ajuda de uma nova e maravilhosa amiga, Elle, papel de Eva Green (“O Lar das Crianças Peculiares”). O problema é que a amiga, que trabalha como ghost writer, revela-se uma admiradora obsessiva que, em pouco tempo, tenta se intrometer no texto e até na vida íntima da escritora. Para não ficar no já visto, há uma pouco inesperada reviravolta. Cinema brasileiro premiado Em contraste, a frustração causada por “Aos Teus Olhos” é muito bem-vinda. A trama parece feita sob medida para estes tempos de acusações de abuso que geram movimentos e condenações nas redes sociais, combinando suspeita e drama sem conclusão fácil. A premissa é inspirada na peça espanhola “O Princípio de Arquimedes”, de Josep Maria Miró, mas o filme é brasileiro, escrito por Lucas Paraizo (de “Gabriel e a Montanha” e série “Sob Pressão”) e dirigido por Carolina Jabor (“Boa Sorte”). A trama gira em torno do personagem de Daniel de Oliveira (“Sangue Azul”), um professor de natação infantil acusado de abuso sexual pelos pais de um aluno. A acusação vem, como é praxe hoje em dia, pelas redes sociais. O post de uma mãe se torna viral e provoca um linchamento virtual imediato. A denúncia se espalha rapidamente na internet e até as pessoas mais próximas do protagonista, como a diretora da escola e um colega de trabalho, ficam em dúvida sobre suas ações e intenções. Esta história também aconteceu com o professor vivido por Mads Mikkelsen em “A Caça” (2012). A diferença é que o personagem brasileiro não é simpático e dá bandeira, embora isso apenas reforce o julgamento superficial das aparências. Exibido em diversos festivais nacionais e internacionais, “Aos Teus Olhos” venceu quatro troféus no Festival do Rio 2017: Melhor Ator (Daniel de Oliveira), Melhor Ator Coadjuvante (Marco Ricca, pai do menino supostamente abusado), Melhor Roteiro e Melhor Filme no Voto Popular. Também foi considerado o Melhor Filme brasileiro na Mostra de São Paulo. Logicamente, também é o melhor filme para ver neste fim de semana. Surpresas da América do Sul “Severina” também tem direção de brasileiro, Felipe Hirsch (de “Insolação”), mas é falado em espanhol e filmado no centro de Montevidéu, no Uruguai, onde o dono de uma livraria de poucos clientes se apaixona por uma musa fugidia, argentina como o escritor Jorge Luis Borges, que visita sua loja para roubar livros. Não há gênero mais convencional que a comédia romântica, portanto ver um filme anti-convencional partir das premissas desse gênero é digno de exaltação. Exibido no Festival de Locarno, é uma obra para amantes de literatura, cinema e também para os simplesmente amantes – de amar. Premiado em festivais latinos, “A Noiva do Deserto” marca a estreia de duas diretoras assistentes de sucessos argentinos, Cecilia Atán (assistente de “Táxi, um Encontro”) e Valeria Pivato (assistente de “Leonera”), no comando de um longa. A história, escrita pelas duas, gira em torno de uma mulher de 54 anos, que vê seu trabalho como doméstica em risco, conforme a crise econômica afeta a família que a emprega, deixando-a desnorteada e literalmente sem rumo. A história é bastante simples, mas se torna profunda com a interpretação formidável da chilena Paulina Garcia, que já tinha encantado no papel-título de “Gloria” (2013). Mestres orientais Completa a programação dois filmes de mestres orientais. “Antes que Tudo Desapareça” é uma sci-fi de Kiyoshi Kurosawa. O diretor japonês, que conquistou um séquito por seus terrores cultuados da virada do século – entre eles, “A Cura” (1997) e “Pulse” (2001) – , faz sua versão de “Invasores de Corpos” ao mostrar alienígenas que assumem identidades humanas para preparar uma invasão da Terra. Elementos de humor negro vem à tona em detalhes, como no que revela o segredo – uma mulher desconfia que seu marido se tornou gentil demais. Apesar da premissa conhecida, o resultado é esquisito o suficiente para ser puro Kurosawa. “O Dia Depois” também é puro Hong Sang-soo. É mais uma história de corações partidos do diretor sul-coreano, calcada na contemplação e na repetição, e marcada por algum detalhe estilístico – no caso, filmada em preto e branco, com edição fragmentada, para marcar passagens bruscas de tempo, e paralelos que visam destacar que o protagonista é um homem fadado a se repetir. No ano retrasado, Hong Sang-soo confessou em Cannes que só precisava de duas coisas para fazer um filme: atores e um restaurante/café/bar. Desta vez, é um confusão de identidades que dispara a indefectível discussão filosófica de bar-restaurante, típica do cinema de noodles e álcool de Sang-hoo. O evento acontece durante os primeiros dias de trabalho de uma funcionária recém-contratada numa pequena editora. O proprietário da empresa traía a mulher com outra funcionária. Por isso, sua esposa desconfiada aparece de surpresa e estapeia a nova funcionária, que não tem nada a ver com a história. É a deixa para o bar-restaurante, onde a conversa entre o patrão e a empregada se estende até o fim do filme.

