Paolo Taviani, mestre do cinema italiano, morre aos 92 anos
Diretor era conhecido pela parceria com o irmão Vittorio em clássicos premiados como "Pai Patrão", "A Noite de São Lourenço" e "Kaos"
Vittorio Taviani (1929 – 2018)
Morreu o cineasta italiano Vittorio Taviani, que foi responsável por inúmeros clássicos, codirigidos com seu irmão Paolo. O cineasta, que estava doente há bastante tempo, morreu em Roma aos 88 anos. “A morte de Vittorio Taviani é uma terrível perda para o cinema e a cultura italianos”, lamentou o presidente Sergio Mattarella na sua mensagem de condolências, louvando as “inesquecíveis obras-primas” que ele assinou com o irmão. Nascido em 20 de setembro de 1929 em San Miniato, na Toscana, Vittorio era dois anos mais velho que Paolo, com quem formou uma das mais famosas parcerias entre irmãos do cinema. Juntos, fizeram mais de 20 longas-metragens, colecionando vitórias em festivais internacionais de prestígio, de Cannes a Berlim. Filhos de um advogado antifascista, os irmãos interessaram-se, desde o início de suas carreiras, por tratar de questões sociais. Inspirados pelo mestre do neo-realismo Roberto Rosselini, de quem foram assistentes no documentário “Rivalità” (1953), mas também pelo humanismo de Vittorio De Sica, seus filmes se caracterizaram por um lirismo singelo, capaz de combinar realidades duras e poesia. Por conta disso, os Taviani tinham predileção por filmar clássicos literários, incluindo obras do autor italiano Luigi Pirandello (“Kaos” e “Tu Ridi”), do russo Leon Tolstói (“Ressurreição” e “Noites com Sol”) e Johann Wolfgang von Goethe (“As Afinidades Eletivas”). Ambos estudaram Direito na Universidade de Pisa, mas o amor pelo cinema levou-os a abandonar os estudos para assinar uma série de documentários com temas sociais para a televisão. A estreia na ficção se deu com “Un Uomo da Bruciare”, em 1962, sobre a vida de Salvatore Carnevale (vivido na tela por Gian Maria Volontè), jornalista e ativista político, que foi assassinado na Sicília em 1955. A obra venceu o Prêmio da Crítica no Festival de Veneza, abrindo uma filmografia impressionante. Os primeiros filmes tiveram sempre por base os problemas sociais, como no caso de “San Michele Aveva un Gallo” (1972), que ganhou o Interfilm no Festival de Berlim, ou “Allosanfàn” (1974), interpretado por Marcello Mastroianni e Lea Massari. Não demoraram a estourar, o que aconteceu com “Pai Patrão” (1977), baseado no romance biográfico de Gavino Ledda, que descreve a vida difícil de um menino criado por um pai tirano no interior da Sardenha. A obra venceu a Palma de Ouro do Festival de Cannes, dando visibilidade internacional ao trabalho dos irmãos. Mas este foi apenas o começo de sua jornada. Em 1982, eles lançaram outra obra impressionante, “A Noite de São Lourenço”, passado numa cidadezinha dinamitada pelos nazistas no final da 2ª Guerra Mundial, e iluminado apenas por velas, fogueiras ou pelo luar. Venceu o Grande Prêmio do Júri de Cannes. O filme seguinte, “Kaos” (1984), foi uma antologia de histórias de Pirandello, realizada com uma beleza de tirar o fôlego. A fase de criatividade febril dos anos 1980 ainda inclui “Bom dia Babilônia” (1987), uma obra pela qual sempre serão lembrados, já que celebra a fraternidade em torno do cinema. O longa conta a saga dos irmãos italianos Nicola e Andrea Bonnano, que migram para a América no início do Século 20 e se tornam requisitadíssimos como cenógrafos de filmes da então nascente indústria de cinema de Hollywood. Após “Noites com Sol” (1990) e “Aconteceu na Primavera” (1993) veio um período em que seus trabalhos perderam a repercussão de outrora e deixaram de ganhar lançamento estrangeiro, ainda que alimentassem as premiações nacionais – continuaram a ser indicados ao David di Donatello, o Oscar italiano. Foi apenas um longo hiato, pois em 2012 voltaram a impactar com “César Deve Morrer”, um docudrama estrelado por assassinos e mafiosos em uma prisão italiana de alta segurança, que interpretam a tragédia “Júlio César”, de William Shakespeare, para as câmeras. A obra recebeu o Urso de Ouro no Festival de Berlim. Três anos depois, fizeram seu último filme juntos, “Maravilhoso Boccaccio” (2015), uma adaptação de “Decameron” do escritor renascentista Giovanni Boccaccio. Vittorio se adoentou em seguida, desfazendo a longa parceria com o irmão Paolo, que no ano passado dirigiu seu primeiro filme solo, “Una Questione Privata” (2017). Mesmo assim, o roteiro foi dividido entre os dois. O impacto da morte de Vittorio Taviani traz tristeza aos cinéfilos de todo o mundo. “Ontem Milos Forman, hoje Vittorio Taviani”, lamentou o presidente do Festival de Veneza, Alberto Barbara. “Nós lhe devemos muito por nossa formação cinematográfica… e sempre os lembraremos com gratidão.”
Maravilhoso Boccaccio questiona a moral com uma beleza ímpar
Giovanni Boccaccio (1313-1375) e seu “Decamerão”, com 100 histórias escritas entre 1348 e 1353, marcam uma ruptura com a moral medieval e introduzem um realismo humanista, em que a sexualidade e a perversidade ocupam papel de relevo. Atraente e polêmico material, marco da literatura, um dos responsáveis pela fixação do idioma italiano, foi objeto da atenção dos melhores cineastas da Itália. Em 1962, o filme “Boccaccio 70”, com quatro episódios, reuniu Federico Fellini, Luchino Visconti, Vittorio De Sica e Mario Monicelli numa comédia antológica. Em 1971, foi a vez de Pier Paolo Pasolini filmar “Decameron”, com absoluto destaque para o erotismo. Outro grande trabalho cinematográfico. Agora é a vez dos irmãos Taviani, dupla brilhante de cineastas, contarem histórias livremente inspiradas no “Decamerão” de Boccaccio. A primeira coisa a apontar sobre esse filme dos irmãos Taviani é que ele é de uma beleza ímpar. Filmado na Toscana e Lazio, em lugares encantadores e envolvendo antiquíssimos castelos de até mil anos de idade, nos leva diretamente à cena medieval. A variação das cores e tonalidades se alterna para melhor expressar as diferentes situações contadas pelos narradores. Um elenco jovem, de belas moças e rapazes, contribui para a estética da obra, de maneira relevante. Assim, podemos dizer que “Maravilhoso Boccaccio” é em tudo e por tudo um filme sedutor. As histórias escolhidas e o tom com que são mostradas enfatizam o amor em seus múltiplos ângulos: do grotesco ao dramático e ao erótico, como antídoto para a morte, às vezes cruel e opressor, às vezes ingênuo e equivocado. A criação artística, a literatura, mostra os caminhos da imaginação, absolutamente essencial e necessária para enfrentar o mal, a tragédia, no caso, aqui, a peste negra, que devastava as cidades da Toscana na época em que Boccaccio escreveu. Um grupo de homens e mulheres jovens se refugia numa vila remota, nas colinas que cercam Florença, para escapar da peste e viver em comunidade com absoluta simplicidade, contando histórias uns para os outros. A imaginação é a seiva da vida desses jovens, em especial das mulheres, que tomam a dianteira da ação, a começar por decidir deixar a cidade, talvez numa proposta de vida imoral. Mas o que é a moral, diante da grandeza do amor e da própria sobrevivência?


