Geneviève Page, estrela de “El Cid” e “A Bela da Tarde”, morre aos 97 anos
Atriz francesa teve carreira de cinco décadas e se destacou em filmes de Buñuel, Wilder, Altman e Frankenheimer
Catherine Deneuve diz que é melhor ser atriz mais velha na Europa que nos EUA
Homenageada no Festival de Veneza pelas realizações de sua carreira, a atriz Catherine Deneuve (“Repulsa ao Sexo”) aproveitou o evento para mencionar as muitas oportunidades que o cinema europeu oferece a atrizes mais velhas, em contraste com a falta de papéis no cinema americano. “É muito melhor estar na Europa do que nos EUA se você é uma atriz e é mais velha”, disse a estrela de 79 anos, na entrevista coletiva do evento italiano. “Está muito melhor agora, mas nos anos 1950, depois dos 35 a atriz era considerada mais do que madura, então você partia para outros papeis.” Mas embora a situação tenha mudado em Hollywood, com a indústria oferecendo mais oportunidades para atrizes mais velhas, “a Europa ainda é melhor nisso”. Ao introduzir o Leão de Ouro honorário à Deneuve, o diretor do festival, Alberto Barbera, lembrou a longa lista de cineastas com quem ela já trabalhou, lista esta que inclui Roger Vadim (“Vício e Virtude”), Luis Buñuel (“A Bela da Tarde”) e Roman Polanski (“Repulsa ao Sexo”). Ela pisou no tapete vermelho de Veneza pela primeira vez como a estrela do clássico “A Bela da Tarde”, de 1967, e o retorno lhe trouxe boas lembranças. “Parece que foi ontem. Foi um festival muito importante para mim”, disse Deneuve. Falando sobre os diretores que marcaram a sua carreira, ela citou Jacques Demy (deu à atriz seu primeiro grande papel em “Os Guarda-Chuvas do Amor”), François Truffaut (“A Sereia do Mississipi”) e André Téchiné (“Hotel das Américas”). “É sempre difícil parar, olhar as coisas como se você tivesse decidido tudo, que tenha sido uma decisão pensando no futuro, mas nunca é assim”, disse Deneuve, analisando a sua carreira. “Não tenho tempo para olhar para trás, porque estou olhando para o meu presente e seguindo em frente.” É que ela ainda é uma atriz bastante ocupada. Entre seus projetos futuros, destaca-se “Funny Birds”, sobre três gerações de mulheres de uma mesma família, que são colocadas juntas em uma granja rural por conta de circunstâncias trágicas, e uma “comédia leve” sobre o relacionamento entre o falecido presidente francês Jacques Chirac e sua esposa Bernadette. O Festival de Veneza teve início nesta quarta (31/8) e vai até o dia 10 de setembro.
Margarita Lozano (1931-2022)
A atriz Margarita Lozano, que atuou em vários clássicos do cinema europeu, morreu na madrugada desta segunda-feira (7/2) em Lorca, na Espanha, aos 91 anos. Nascida no então protetorado espanhol de Marrocos, Lozano mudou-se para Madri com 19 anos, visando se tornar atriz, e um ano depois iniciou a carreira cinematográfica, no começo da década de 1950. Focada em melodramas e aventuras descartáveis, sua filmografia começou a mudar de rumo a partir do clássico “Veridiana” (1961), de Luis Buñuel, em que desempenhou um papel coadjuvante, como criada, após uma década de atuação. Ela também coadjuvou em “Noite de Verão” (1963), de Jorge Grau, e “Paixão Proibida” (1963), de Francisco Rovira Beleta, que disputou o Oscar de Melhor Filme em Língua Estrangeira. A projeção desses filmes lhe abriu as portas do mercado italiano, que na época representava a indústria cinematográfica mais bem-sucedida da Europa. Sergio Leone a escalou em seu primeiro western spaghetti, o icônico “Por Um Punhado de Dólares” (1964), estrelado por Clint Eastwood. E ela acabou virando estrela frequente de filmes italianos, desde produções comerciais como o thriller “Resgate de uma Vida” (1968) com Franco Nero e a inglesa Charlotte Rampling, até dramas premiadíssimos, como “Diário de uma Garota Esquizofrênica” (1968), de Nelo Risi. Entre os filmes dessa fase, destaca-se o controvertido “Pocilga” (1969), de Pier Paulo Pasolini. Lozano sumiu das telas nos anos seguintes, voltando apenas na década de 1980 em nova leva de clássicos. Seu retorno se deu em nada menos que “A Noite de São Lourenço” (1982), dos irmãos Taviani, premiado no Festival de Cannes e vencedor de seis troféus David di Donatello (o Oscar Italiano), incluindo Melhor Filme. A parceria com Paolo e Vittorio Taviani ainda se estendeu para “Kaos” (1984), “Bom Dia Babilônia” (1987) e “Noites Com Sol” (1990). Também atuou no cultuado “A Missa Acabou” (1985), de Nanni Moretti, premiado no Festival de Berlim, e filmou em francês duas das melhores obras de Claude Berri, “Jean de Florette” (1986) e “A Vingança de Manon” (1986). No mesmo ano intenso, ainda integrou o sucesso “Aldo Moro – Herói e Vítima da Democracia”, de Giuseppe Ferrara, e o drama espanhol “A Metade do Céu”, de Manuel Gutiérrez Aragón, vencedor do Festival de San Sebastián, que lhe rendeu prêmios de Melhor Atriz Coadjuvante. Apesar de diminuir o ritmo a partir da década de 1990, fez mais seis longas, despedindo-se das telas em 2006 com “Meu Caso com o Imperador”, de Paolo Virzi. Em junho passado, ela foi homenageada pelo governo espanhol, recebendo do Conselho de Ministros a Medalha de Ouro das Belas Artes, como reconhecimento pelas realizações profissionais.
Jean-Claude Carrière (1931 – 2021)
O roteirista e intelectual francês Jean-Claude Carrière, de “A Bela da Tarde”, “A Insustentável Leveza do Ser”, “Danton” e “Esse Obscuro Objeto do Desejo”, morreu na segunda-feira (8/2), aos 89 anos, de causas naturais em sua casa em Paris. Carriere teve uma carreira de mais de meio século como escritor, roteirista, ator e diretor, e recebeu uma série de prêmios e reconhecimentos ao longo da vida. As incursões cinematográficas começaram depois de publicar seu primeiro romance em 1957 e conhecer Pierre Etaix (“Rir é o Melhor Remédio”), com quem colaborou em vários projetos, incluindo “Feliz Aniversário” (1962), vencedor do Oscar de Melhor Curta, que os dois escreveram e dirigiram juntos, e os longas “O Pretendente” (1962), “Yoyo” (1965), “Rir é o Melhor Remédio” (1966) e “Esse Louco, Louco Amor” (1969). Entre seus colaboradores frequentes também se destacou o cineasta mexicano-espanhol Luis Buñuel. Carriere e o mestre do surrealismo cinematográfico começaram a relação artística com a adaptação de “O Diário de uma Camareira” (1964), na qual o escritor também estreou como ator, e a parceria se estendeu até o último filme do diretor. Juntos, eles criaram vários clássicos, inclusive o célebre “A Bela da Tarde” (1967), com Catherine Deneuve, “Via Lactea” (1969), “O Fantasma da Liberdade” (1974) e as obras que lhes renderam duas indicações ao Oscar, “O Discreto Charme da Burguesia” (1972) e “Esse Obscuro Objeto do Desejo” (1977). Com mais de uma centena de roteiros escritos, entre textos originais e adaptações, Carriere teve muitos outros parceiros famosos. Na verdade, sua filmografia é quase um compêndio do cinema europeu, repleto de títulos icônicos como “Viva Maria!” e “O Ladrão Aventureiro” (1967), ambos dirigidos por Louis Malle, “A Piscina” (1969) e “Borsalino” (1970), de Jacques Deray, “Procura Insaciável” (1971) e “Valmont – Uma História de Seduções” (1989), de Milos Forman, “Liza” (1972), de Marco Ferreri, “O Tambor” (1979) e “O Ocaso de um Povo” (1981), de Volker Schlöndorff, “Salve-se Quem Puder (A Vida)” (1980) e “Paixão” (1982), de Jean-Luc Godard, “O Retorno de Martin Guerre” (1982), de Daniel Vigne, “Danton – O Processo da Revolução” (1983), de Andrzej Wajda, “A Insustentável Leveza do Ser” (1988), de Philip Kaufman, e muitos outros. Ele também trabalhou com o mestre japonês Nagisa Ôshima, em “Max, Meu Amor” (1986), e com nosso argentino-brasileiro Hector Babenco, em “Brincando nos Campos do Senhor” (1991). Sem parar de escrever, Carriere seguiu produzindo roteiros até a morte. Entre os filmes mais recentes que projetaram suas páginas nas telas estão “À Sombra de Duas Mulheres” (2015), “Amante por um Dia” (2017) e “Le Sel des Larmes” (2020), todos de Philippe Garrel, “Um Mergulho no Passado” (2015), de Luca Guadagnino, “No Portal da Eternidade” (2018), de Julian Schnabel, e “Um Homem Fiel” (2018), de Louis (filho de Philippe) Garrel. Além disso, ele deixou três textos inéditos, atualmente em produção, um deles também dirigido pelo Garrel mais jovem (“La Croisade”). Bibliófilo, apaixonado por desenhos, astrofísica, vinhos, praticante de Tai-Chi-Chuan (arte marcial), disseminador do budismo e amigo do Dalai Lama, Carriere fez mais em sua vida que a maioria das pessoas do mundo, incluindo escrever cerca de 80 livros (entre contos, ensaios, traduções, ficção, roteiros e entrevistas) e várias peças de teatro. No cinema, ainda atuou em mais de 30 filmes e dirigiu quatro curtas, entre eles “La Pince à Ongles” (1969), que foi premiado no Festival de Cannes. Em 2015, a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas dos EUA lhe homenageou com um Oscar honorário por todas as suas realizações.
Michael Lonsdale (1931 – 2020)
O ator Michael Lonsdale, que ficou conhecido como o herói de “O Dia do Chacal” e o vilão de “007 Contra o Foguete da Morte”, morreu nesta segunda-feira (21/8) em sua casa em Paris aos 89 anos, após uma carreira de seis décadas. Filho de pai britânico e mãe francesa, Lonsdale cresceu em Londres e no Marrocos, onde descobriu o cinema de Hollywood em sessões com as tropas americanas durante a 2ª Guerra Mundial, mas só foi se dedicar às artes ao regressar a Paris em 1947, por influência de seu tio Marcel Arland, diretor da revista literária NRF. Ele estreou no teatro aos 24 anos e logo se mostrou interessado por experiências radicais, em adaptações de Eugène Ionesco e em parcerias com Marguerite Duras. A estreia no cinema aconteceu em 1956, sob o nome Michel Lonsdale. Ele participou de várias produções francesas até sofrer sua metamorfose, virando Michael ao ser escalado por Orson Welles em “O Processo” (1962), adaptação do célebre texto de Kafka rodada na França com Anthony Perkins e Jeanne Moreau. Dois anos depois, voltou a ser dirigido na França por outro mestre de Hollywood, Fred Zinnemann, no drama de guerra “A Voz do Sangue” (1964). Mas apesar da experiência com dois dos maiores cineastas hollywoodianos, decidiu retomar o nome Michel e mergulhar no cinema de arte francês, atuando em clássicos da nouvelle vague como “A Noiva Estava de Preto” (1968) e “Beijos Proibidos” (1968), ambos de François Truffaut, “Sopro no Coração” (1971), de Louis Malle, e “Não me Toque” (1971) e “Out 1: Spectre” (1972), os dois de Jacques Rivette. Entretanto, Fred Zinnemann não o esqueceu e se tornou responsável por introduzi-lo no cinema britânico, ao lhe dar um papel de destaque na adaptação do thriller “O Dia do Chacal” (1973), como o obstinado detetive Lebel, que enfrentou o vilão Carlos Chacal. Ele chegou a ser indicado ao BAFTA (o Oscar britânico), mas não foi desta vez que voltou a ser Michael, permanecendo no cinema francês com papéis em “Deslizamentos Progressivos do Prazer” (1974), de Alain Robbe-Grillet, e “O Fantasma da Liberdade” (1974), de Luis Buñuel, onde chegou a mostrar seu traseiro em cenas sadomasoquistas, pelo “amor à arte”. Paralelamente, aprofundou sua relação com a escritora Marguerite Duras, estrelando quatro filmes que ela dirigiu: “Destruir, Disse Ela” (1969), “Amarelo o Sol” (1971) e “India Song” (1975), onde se destacou como um vice-cônsul torturado, repetindo o papel em “Son Nom de Venise dans Calcutta Désert” (1976). No mesmo ano de “India Song”, que o projetou como protagonista, Lonsdale estrelou o clássico “Sessão Especial de Justiça” (1975), de Costa-Gravas, cuja denúncia do sistema penal à serviço de governos corruptos (no caso, da França ocupada por nazistas) rendeu discussões acaloradas – assim como censura – em vários países. A repercussão do filme de Costa-Gravas o projetou para além da França, levando-o a trabalhar com o inglês Joseph Losey (“Galileu”, “A Inglesa Romântica” e “Cidadão Klein”) e o austríaco Peter Handke (“A Mulher Canhota”), o que o colocou no radar dos produtores da franquia “007”. Em “007 Contra o Foguete da Morte” (1979), Lonsdale viveu o diabólico Drax, um industrial bilionário e pianista, que pretendia envenenar a população da Terra e, em seguida, repovoar o planeta com alguns escolhidos, que ele selecionou para viver em sua estação espacial. O ator comparou seu personagem a Hitler em uma entrevista de 2012. “Ele queria destruir todo mundo e fazer surgir uma nova ordem de jovens muito atléticos… ele estava completamente louco.” Para enfrentar o James Bond vivido por Roger Moore, Lonsdale decidiu voltar a ser Michael e assim foi “adotado” pelo cinema britânico, aparecendo em seguida num dos filmes ingleses mais bem-sucedidos de todos os tempos, “Carruagens de Fogo” (1981). Lonsdale também participou do blockbuster “O Nome da Rosa” (1986) e de vários filmes notáveis dos anos seguintes, firmando parceria com o mestre do drama de época britânico James Ivory nos clássicos “Vestígios do Dia” (1993) e “Jefferson em Paris” (1995), no qual interpretou o imperador Luis XVI. Apesar do sucesso em inglês, ele nunca filmou nos EUA, mas trabalhou em mais três thrillers de diretores americanos famosos. Dois desses filmes foram dirigidos na Inglaterra por John Frankenheimer: “O Documento Holcroft” (1985), estrelado por Michael Caine, e “Ronin” (1998), em que contracenou com Robert De Niro. O terceiro foi “Munique” (2005), de Steven Spielberg, em cenas rodadas na França. Mesmo com essas experiências, ele nunca se interessou por Hollywood, preferindo trabalhar com cineastas europeus como Milos Forman (“Sombras de Goya”), François Ozon (“O Amor em 5 Tempos”), Catherine Breillat (“A Última Amante”), Ermanno Olmi (“A Aldeia de Cartão”), Xavier Beauvois (“Homens e Deuses”) e até o centenário cineasta português Manoel de Oliveira (no último longa do diretor, “O Gebo e a Sombra”). Ativo até 2016, quando se aposentou, Lonsdale só foi receber seu primeiro grande prêmio na véspera de seus 80 anos, o César (equivalente francês do Oscar) por seu papel coadjuvante como sacerdote livre e heroico em “Homens e Deuses” (2010). A consagração como homem de fé foi importante não apenas para a carreira de Lonsdale. Ele professava fé cristã pela influência de uma madrinha cega e, em 1987, ingressou na Renovação Carismática Católica antes de fundar o “Magnificat”, um grupo de oração para artistas. Solteiro e sem filhos, Lonsdale também foi pintor e emprestou sua voz inconfundível a inúmeros documentários e audiolivros.
Michel Piccoli (1925 – 2020)
Michel Piccoli, um dos atores mais importantes do cinema da França, morreu na semana passada (1/5), aos 94 anos de idade. A notícia só se tornou pública nesta segunda-feira (18/5), em comunicado da família à imprensa. Responsável por papéis inesquecíveis em dezenas de clássicos, Piccoli morreu de um acidente vascular cerebral, segundo declaração da família. Também produtor, diretor e roteirista, Michel Piccoli deixou uma obra com mais de 200 títulos em uma carreira que abrangeu sete décadas de cinema, além de papéis na televisão e teatro, ao longo das quais colaborou com mestres da estatura de Alfred Hitchcock, Henri-Georges Clouzot, Jacques Rivette, Costa-Gavras, Luis Buñuel, Jean Renoir, René Clément, Jean-Luc Godard, Alain Resnais, Agnès Varda, Jacques Demy, Marco Ferreri, Mario Bava, Manoel de Oliveira, Theodoros Angelopoulos, Nani Moretti, Marco Bellocchio e Louis Malle. O reconhecimento a seu talento foi atestado por uma profusão de prêmios, incluindo o de Melhor Ator no Festival de Cannes – pela atuação em “Salto no Escuro” (1980), de Bellocchio. Nascido em Paris em 27 de dezembro de 1925, ele era filho de músicos – a mãe era pianista e o pai um violinista suíço. Mas apesar de estrear nas telas aos 20 anos, em uma breve figuração em “Sortilégios” (1945), de Christian-Jaque, sua carreira demorou para engatar, o que só aconteceu depois de uma década, em filmes como “French Can Can” (1955), de Renoir, e “O Calvário de uma Rainha” (1956), de Jean Delannoy. Mas o que o tirou dos papéis de coadjuvantes foi sua amizade com Buñuel. “Escrevi para esse diretor famoso pedindo que ele viesse me ver em uma peça. Eu, um ator obscuro! Era a ousadia da juventude. Ele veio e nos tornamos amigos”, Piccoli contou, em uma entrevista antiga. O ator apareceu em seis filmes de Buñuel, geralmente representando uma figura autoritária. A primeira parceria se manifestou em 1956, como um padre fraco e comprometido, que viajava pelas florestas brasileiras em “A Morte no Jardim”. Em “O Diário de uma Camareira” (1964), viveu o preguiçoso e lascivo monsieur Monteil, obcecado sexualmente por Jeanne Moreau, intérprete da empregada do título. E num de seus principais desempenhos, deu vida a Louche, o cavalheiro burguês responsável pela transformação de Catherine Deneuve em “A Bela da Tarde” (1967). No filme, a atriz vivia a esposa de um médico respeitável que era convencida por Louche a passar as tardes trabalhando em um bordel de alta classe com clientes excêntricos. Piccoli reprisou o papel quase 40 anos depois, em “Sempre Bela” (2006), de Manoel de Oliveira. Para Buñuel, ainda encarnou um versão charmosa do Marquês de Sade em “Via Láctea” (1969), foi sutilmente dominador como secretário do Interior em “O Discreto Charme da Burguesia” (1972) e sinistro como chefe da polícia no penúltimo filme do diretor, “O Fantasma da Liberdade” (1974). Durante esse período, Piccoli fez parte da cena dos cafés filosóficos de Paris, que incluía os escritores Boris Vian, Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, além da cantora Juliette Gréco, com quem se casou em 1966 – separaram-se em 1977. Ele também se tornou um membro ativo do partido comunista francês. Os anos 1960 foram sua década mais criativa e variada, em que se juntou à novelle vague, atuando em obras memoráveis. Seu primeiro papel de protagonista no movimento que revolucionou o cinema francês foi como o marido de Brigitte Bardot em “O Desprezo” (1963), de Godard. No filme, ele interpreta um roteirista disposto a vender a própria esposa a um produtor (Jack Palance) para que seu roteiro saísse do papel e virasse filme dirigido por Fritz Lang (interpretado pelo próprio). Entre suas performances em clássicos da nouvelle vague ainda se destacam “A Guerra Acabou” (1966), de Alain Resnais, e “As Criaturas” (1966), de Agnès Varda. Mas Piccoli se projetou mais com sucessos de público, como “O Perigoso Jogo do Amor” (1966), de Roger Vadim, na qual contracenou com a americana Jane Fonda, o filme de guerra de René Clement “Paris Está em Chamas?” (1966), e principalmente o clássico musical “Duas Garotas Românticas” (1967), de Jacques Demy. A carreira do astro francês se internacionalizou após o filme de Demy, que chegou a ser indicado ao Oscar. Em 1968, ele estrelou a cultuada adaptação de quadrinhos italianos “Perigo: Diabolik” (1968), de Mario Bava, como o policial que tenta prender o criminoso do título. E no ano seguinte começou sua parceria de sete filmes com outro mestre italiano, Marco Ferreri – iniciada por “Dillinger Morreu” – , sem esquecer sua estreia em produções de língua inglesa, no suspense “Topázio”, de ninguém menos que Alfred Hitchcock. A consagração continuou nos anos 1970, marcada pelo principal e mais escandaloso filme de Ferreri, “A Comilança” (1973), e por uma das melhores obras de Chabrol, o noir “Amantes Inseparáveis” (1973). Com a fama adquirida, ele aproveitou para começar a produzir – a partir de “Não Toque na Mulher Branca” (1974), outra parceria com Ferreri. Piccoli também integrou a produção norte-americana de Louis Malle, “Atlantic City” (1980), estrelado por Burt Lancaster e Susan Sarandon, fez “Paixão” (1982), de Godard, e trabalhou com Marco Belocchio (em “Salto no Escuro” e “Olhos na Boca”) e Jerzy Skolimowski (“O Sucesso É a Melhor Vingança”), antes de viver o vilão que ajudou a lançar um dos principais nomes da geração de cineastas dos anos 1980. Premiado no Festival de Berlim, “Sangue Ruim” (1986) deslanchou a carreira de Leos Carax (então em seu segundo longa) e popularizou mundialmente a atriz Juliette Binoche. A lista de papéis clássicos não diminuiu com o tempo, rendendo “Loucuras de uma Primavera” (1990), de Malle, e “A Bela Intrigante” (1991), de Jacques Rivette, em que pintou – e consagrou – a nudez de Emmanuelle Béart. Sua trajetória teve muitas outras realizações, novas parcerias com Rivette, filmes com Édouard Molinaro, Jean-Claude Brisseau, Raoul Ruiz, Bertrand Blier, mais Manoel de Oliveira, dezenas mais. Tanta experiência o levou a escrever e dirigir. Ele assinou três longas, um segmento de antologia e um curta, mas apenas um repercutiu entre a crítica – “Alors Voilà” (1997). Como intérprete, porém, não lhe faltou consagração, incluindo o David di Donatello (o Oscar italiano) de Melhor Ator por um de seus últimos papéis, como papa em “Temos Papa” (2011), de Nani Moretti. Outros desempenhos importantes no final de sua carreira incluem o último longa do grego Theodoros Angelopoulos, “Trilogia II: A Poeira do Tempo” (2008). E após ser homenageado pela Academia Europeia de Cinema com um troféu pela carreira, ainda emplacou três lançamentos premiados em 2012: “Vocês Ainda Não Viram Nada!”, de Resnais, “Holy Motors”, de Carax, e “Linhas de Wellington” (2012), de Valeria Sarmiento. A despedida das telas se deu logo em seguida, com “Le Goût des Myrtilles” (2014), de Thomas De Thier. Ele deixa sua terceira esposa, a roteirista Ludivine Clerc, com quem se casou em 1978, e sua única filha, Anne-Cordélia, fruto de seu primeiro casamento com Eléonore Hirt.
Lucia Bosè (1931 – 2020)
A atriz italiana Lucia Bosè, que estrelou clássicos europeus das décadas de 1950 e 1960, morreu em Segóvia, na Espanha, em decorrência de uma pneumonia, durante a pandemia de coronavírus. Ela tinha 89 anos. “Queridos amigos… comunico que minha mãe Lucia Bosè acaba de falecer. Ela já está no melhor dos lugares”, escreveu seu filho, o cantor Miguel Bosé em sua conta oficial no Twitter. Nascida em Milão em 1931, Bosè se projetou graças à sua indiscutível beleza, ao vencer o concurso Miss Itália em 1947. Três anos depois, o grande cineasta Michelangelo Antonioni a lançou como atriz em “Crônicas de um Amor” (1950). Ela voltaria a trabalhar com o mestre italiano em “A Dama sem Camélias” (1953). O ano de 1955 foi um marco para Bosè, com seus papéis em “A Morte de um Ciclista”, de Juan Antonio Bardem, e “Assim É a Aurora”, do mestre surrealista Luis Buñuel. Também foi o ano que marcou o seu casamento com o toureiro espanhol Luis Miguel Dominguín, com quem teve três filhos, incluindo Miguel. O casamento fez a atriz se afastar das telas. Ela só retornou em 1967, após o divórcio, numa retomada que incluiu clássicos como “Sob o Signo de Escorpião” (1969), dos irmãos Taviani, “Satyricon de Fellini” (1969), do gênio Federico Fellini, “A Força do Diabo” (1973), de Jorge Grau, e “Crônica de uma Morte Anunciada” (1987), de Francesco Rosi. Seu último papel foi como protagonista do drama independente “One More Time”, em 2013.
Os Sete Samurais lidera lista dos 100 Melhores Filmes em Língua Estrangeira em enquete da BBC
A rede pública britânica BBC divulgou uma lista com os 100 Melhores Filmes de Todos os Tempos em Língua Estrangeira – isto é, que não são falados em inglês. A seleção é resultado de uma enquete entre 209 críticos de 43 países, e abre com o clássico japonês “Os Sete Samurais” (1954), de Akira Kurosawa. “‘Os Sete Samurais’ não apenas é uma nova forma de filme de ação, mas também criou um subgênero no cinema: os filmes que falam sobre um grupo de heróis inesperados numa missão impossível que lutam para salvar suas almas”, escreveu a crítica brasileira Ana Maria Bahaiana. Kurosawa é um dos cineastas mais reverenciados, com quatro títulos na lista, dois deles no Top 10 – “Roshomon” (1950) aparece em 4º lugar. Mas não é o diretor com mais filmes selecionados. A honra cabe ao mestre espanhol do surrealismo Luis Buñuel, com nada menos que cinco clássicos. Ao todo, o Top 100 reúne filmes dirigidos por 67 diretores diferentes, de 24 países, feitos em 19 idiomas. Mas a língua francesa claramente predomina, com 27 títulos na lista, seguida de 12 filmes em mandarim e 11 em italiano e japonês. Em espanhol há sete. Em português, há um único filme, o brasileiro “Cidade de Deus” (2002), de Fernando Meirelles, representante solitário do cinema nacional. Mas vale apontar que “Aguirre, a Cólera dos Deuses” (1972), do alemão Werner Herzog, foi filmado no Brasil e conta em seu elenco com atores do país. Também chama atenção o fato de que apenas quatro dos filmes foram dirigidos por mulheres, obras das cineastas Chantal Akerman, Agnès Varda, Kátia Lund e Claire Denis. A lista completa pode ser conferida abaixo, que abrange, de forma cronológica, da obra-prima “O Encouraçado Potemkin” (1925), do grande mestre do cinema soviético Sergei M. Eisenstein, ao recente “Amor” (2012), do austríaco-alemão Michael Haneke. 100. Cinzas e Diamantes (Polônia, 1958) – Andrzej Wajda 99. Paisagem na Neblina (Grecia, 1988) – Theo Angelopoulos 98. No calor do Sol (China, 1994) – Jiang Wen 97. Sabor de Cereja (Irã, 1997) – Abbas Kiarostami 96. Shoah (França, 1985) – Claude Lanzmann 95. Nuvens Flutuantes (Japão, 1955) – Mikio Naruse 94. Onde Fica a Casa do Meu Amigo? (Irã, 1987) – Abbas Kiarostami 93. Lanternas Vermelhas (China, 1991) – Zhang Yimou 92. Cenas de um Casamento (Suécia, 1973) – Ingmar Bergman 91. Rififi (França, 1955) – Jules Dassin 90. Hiroshima Meu Amor (França, 1959) – Alain Resnais 89. Morangos Silvestres (Suécia, 1957) – Ingmar Bergman 88. Crisântemos Tardios (Japão, 1939) – Kenji Mizoguchi 87. As Noites de Cabíria (Itália, 1957) – Federico Fellini 86. A Pista (França, 1962) – Chris Marker 85. Umberto D (Itália, 1952) – Vittorio de Sica 84. O Discreto Charme da Burguesia (França, 1972) – Luis Buñuel 83. A Estrada (Itália, 1954) – Federico Fellini 82. O Fabuloso Destino de Amélie Poulain (França, 2001) – Jean-Pierre Jeunet 81. Céline e Julie Vão de Barco (França, 1974) – Jacques Rivette 80. Os Esquecidos (México, 1950) – Luis Buñuel 79. Ran (Japão, 1985) – Akira Kurosawa 78. O Tigre e o Dragão (China – Taiwán, 2000) – Ang Lee 77. O Conformista (Itália, 1970) – Bernardo Bertolucci 76. E Sua Mãe Também (México, 2001) – Alfonso Cuarón 75. A Bela da Tarde (França, 1967) – Luis Buñuel 74. O Demônio das Onze Horas (França, 1965) – Jean-Luc Godard 73. Um Homem com uma Câmera (União Soviética, 1929) – Dziga Vertov 72. Viver (Japão, 1952) – Akira Kurosawa 71. Felizes Juntos (China, 1997) – Wong Kar-wai 70. O Eclipse (Italia, 1962) – Michelangelo Antonioni 69. Amor (França, Áustria, 2012) – Michael Haneke 68. Contos da Lua Vaga (Japão, 1953) – Kenji Mizoguchi 67. O Anjo Exterminador (México, 1962) – Luis Buñuel 66. O Medo Consome a Alma (Alemanha, 1973) – Rainer Werner Fassbinder 65. A Palavra (Dinamarca, 1955) – Carl Theodor Dreyer 64. A Liberdade É Azul (França, 1993) – Krzysztof Kie?lowski 63. Primavera Numa Pequena Cidade (China, 1948) – Fei Mu 62. A Viagem da Hiena (Senegal, 1973) – Djibril Diop Mambéty 61. Intendente Sansho (Japão, 1954) – Kenji Mizoguchi 60. O Desprezo (França, 1963) – Jean-Luc Godard 59. Vá e Veja (União Soviética, 1985) – Elem Klimov 58. Desejos Proibidos (França, 1953) – Max Ophüls 57. Solaris (União Soviética, 1972) – Andrei Tarkovsky 56. Amores Expressos (China, 1994) – Wong Kar-wai 55. Jules e Jim – Uma Mulher para Dois (França, 1962) – François Truffaut 54. Comer Beber Viver (Taiwan, 1994) – Ang Lee 53. A Grande Testemunha (França, 1966) – Robert Bresson 52. Pai e Filha (Japão, 1949) – Yasujirô Ozu 51. Os Guarda-Chuvas do Amor (França, 1964) – Jacques Demy 50. O Atalante (França, 1934) – Jean Vigo 49. Stalker (União Soviética, 1979) – Andrei Tarkovsky 48. Viridiana (Espanha, México, 1961) – Luis Buñuel 47. 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias (Romênia, 2007) – Cristian Mungiu 46. O Boulevard do Crime (França, 1945) – Marcel Carné 45. A Aventura (Itália, 1960) – Michelangelo Antonioni 44. Cléo das 5 às 7 (França, 1962) – Agnès Varda 43. Bom Trabalho (França, 1999) – Claire Denis 42. Cidade de Deus (Brasil, 2002) – Fernando Meirelles e Kátia Lund 41. Tempo de Viver (China, 1994) – Zhang Yimou 40. Andrei Rublev (União Soviética, 1966) – Andrei Tarkovsky 39. Close-Up (Irã, 1990) – Abbas Kiarostami 38. Um Dia Quente de Verão (Taiwan, 1991) – Edward Yang 37. A Viagem de Chihiro (Japão, 2001) – Hayao Miyazaki 36. A Grande Ilusão (França, 1937) – Jean Renoir 35. O Leopardo (Itália, 1963) – Luchino Visconti 34. As Asas do Desejo (Alemanha, 1987) – Wim Wenders 33. Playtime – Tempo de Diversão (França, 1967) – Jacques Tati 32. Tudo Sobre Minha Mãe (Espanha, 1999) – Pedro Almodóvar 31. A Vida dos Outros (Alemanha, 2006) – Florian Henckel von Donnersmarck 30. O Sétimo Selo (Suécia, 1957) – Ingmar Bergman 29. Oldboy (Coreia do Sul, 2003) – Park Chan-wook 28. Fanny e Alexander (Suécia, 1982) – Ingmar Bergman 27. O Espírito da Colmeia (Espanha, 1973) – Víctor Erice 26. Cinema Paradiso (Itália, 1988) – Giuseppe Tornatore 25. As Coisas Simples da Vida (Taiwan, Japão, 2000) – Edward Yang 24. O Encouraçado Potemkin (União Soviética, 1925) – Sergei M. Eisenstein 23. A Paixão de Joana d’Arc (França, 1928) – Carl Theodor Dreyer 22. O Labirinto do Fauno (Espanha, México, Estados Unidos, 2006) – Guillermo del Toro 21. A Separação (Irã, 2011) – Asghar Farhadi 20. O Espelho (União Soviética, 1974) – Andrei Tarkovsky 19. A Batalha de Argel (Itália, Argélia, 1966) – Gillo Pontecorvo 18. A Cidade do Desencanto (Taiwan, 1989) – Hou Hsiao-hsien 17. Aguirre, a Cólera dos Deuses (Alemanha, 1972) – Werner Herzog 16. Metrópolis (Alemanha, 1927) – Fritz Lang 15. A Canção da Estrada (Índia, 1955) – Satyajit Ray 14. Jeanne Dielman (Bélgica, 1975) – Chantal Akerman 13. M – O Vampiro de Düsseldorf (Alemanha, 1931) – Fritz Lang 12. Adeus, Minha Concubina (China, 1993) – Chen Kaige 11. Acossado (França, 1960) – Jean-Luc Godard 10. A Doce Vida (Itália, 1960) – Federico Fellini 9. Amor À Flor da Pele (China, 2000) – Wong Kar-wai 8. Os Incompreendidos (França, 1959) – François Truffaut 7. Oito e Meio (Itália, 1963) – Federico Fellini 6. Persona (Suécia, 1966) – Ingmar Bergman 5. A Regra do Jogo (França, 1939) – Jean Renoir 4. Rashomon (Japão, 1950) – Akira Kurosawa 3. Era Uma Vez em Tóquio (Japão, 1953) – Yasujirô Ozu 2. Ladrões de Bicicletas (Itália, 1948) – Vittorio de Sica 1. Os Sete Samurais (Japão, 1954) – Akira Kurosawa
Stéphane Audran (1932 – 2018)
Morreu a atriz francesa Stéphane Audran, uma das musas da nouvelle vague. Ela faleceu nesta terça-feira (27/3) aos 85 anos. “Minha mãe estava doente há algum tempo. Ela foi hospitalizada há dez dias e voltou para casa. Ela partiu pacificamente esta noite por volta das duas da manhã”, anunciou seu filho Thomas Chabrol à AFP. Nascida Colette Suzanne Dacheville, em 8 de novembro de 1932 na cidade de Versalhes, ela foi casada com o ator Jean-Louis Trintignant entre 1954 e 1956, antes dele se tornar famoso. Mas só virou atriz depois da separação. Em 1959, o cineasta Claude Chabrol a escalou na comédia “Os Primos” e foi amor à primeira vista. Os dois se casaram na vida e no cinema, criando 20 filmes juntos. Entre eles, estão alguns clássicos da nouvelle vogue, como “Entre Amigas” (1960), “A Mulher Infiel” (1969), “Amantes Inseparáveis” (1973) e especialmente “As Corças” (1968), sobre um relacionamento à três, em que ela encarnou uma bela bissexual. Pelo papel, a atriz venceu o Urso de Prata no Festival de Berlim. Stéphane também venceu o César por “Violette” (1978), e o BAFTA por “Ao Anoitecer” (1971), ambos dirigidos por Chabrol. Ela também estrelou inúmeros clássicos de outros cineastas, como “O Signo do Leão” (1962), de Éric Rohmer, “A Garota no Automóvel com Óculos e um Rifle” (1970), de Anatole Litvak, o vencedor do Oscar “O Discreto Charme da Burguesia” (1972), de Luis Buñuel, “Agonia e Glória” (1980), de Samuel Fuller, e o popular “A Festa de Babette” (1987), de Gabriel Axel, que também venceu o Oscar de Melhor Filme em Língua Estrangeira. O casamento com Chabrol acabou em 1980, mas não a parceria, que perdurou até os anos 1990. Após encerrar a carreira em 2008, num pequeno papel em “A Garota de Mônaco”, de Anne Fontaine, ela retornou recentemente para completar filmagens de um longa inacabado de Orson Welles, “The Other Side of the Wind”, que permanece inédito. “Stéphane era uma atriz muito boa. Era ótima para interpretar mulheres livres e independentes, como era na vida”, reagiu o diretor Jean-Pierre Mocky, que havia dirigido a atriz em “Les Saisons du Plaisir” em 1988.
The Square simplifica o que Buñuel já transformou em clássicos
Nas premiações em festivais, “The Square – A Arte da Discórdia” vem se mostrando imbatível. Venceu a Palma de Ouro deste ano em Cannes, foi considerado o melhor de 2017 no European Film Awards e será o provável favorito ao Oscar de Filme Estrangeiro, mas toda essa festividade não esconde as contradições que o filme oferece. Na sessão prévia para os jornalistas havia uma parte entusiasmada saudando como obra-prima, assim como um grupo se reservava o direito de fechar a cara e sair do cinema em silêncio. Nem tanto o céu, nem tanto o inferno. “The Square”, em princípio, funciona bem como sátira da crise de valores políticos sociais e culturais que andam assolando nosso mundinho, mas, no decorrer, o que parece incisivo, descamba para o usual. Como muito do que é produzido hoje, o filme é oportunista e conveniente. Oportunista, porque trata o mal-estar europeu em lidar com o drama dos refugiados como se fosse um “case” publicitário, e conveniente pelo modo como ligeiramente escamoteia a questão social para centrar-se no papel que a arte adquiriu dentro dos museus no século 21. Está tudo interligado? Não, cada assunto merece uma discussão à parte. O diretor sueco Ruben Östlund, que antes criou outro sucesso, “Força Maior” (2014), sobre uma avalanche nos Alpes, agora desloca sua atenção para mais perto de casa. “The Square” desenvolve-se em Estocolmo, onde um curador do museu, Christian (Claes Bang), manobra suas exposições na vanguarda da arte moderna. É um sujeito fino, suave, e o filme é projetado para desconstruí-lo. Perto do começo, ele é roubado e se diverte com o fato de ser feito de bobo. Duas horas depois, Christian se arrasta no meio da chuva, vasculhando sacos de lixo quase como um mendigo. O título refere-se a um trabalho instalado no pátio do museu: um pequeno quadrado vazio delimitado por uma luz de neon. Na placa, a artista refere-se a obra como “um santuário de confiança”, onde quem entrar, deve compartilhar direitos e obrigações iguais. Parece um pouco vago? O que um quadrado vazio é capaz de ativar no público? A conceito em si é de grande beleza. É um quadrado no chão, mas podia ser um papel em branco, um cartaz, uma tela de cinema. O diretor Östlund usa os limites da figura geométrica, para demonstrar como se comporta o pacato cidadão do século 21. Na visão de Östlund, pensamos de uma forma, mas agimos de outra, muito diferente. O idioma que descreve a instalação sugere que o estado natural da humanidade tende para o equilíbrio e a justiça – ou que estes podem pelo menos ser alcançados como ideia. Mas quando esse pensamento é levado para o mundo real, é claro, o caos ocorre e, através de suas vinhetas um tanto calculadas, que a trama avança. Seja por meio de uma cena de encontro sexual onde um preservativo usado torna-se uma questão de disputa e desconfiança impagáveis, ou numa discussão da diretoria do Museu, onde a todo momento se fala em arte, mas quase ninguém parece interessado no produto, e sim em debater sua repercussão. Christian pensa em si mesmo como uma pessoa decente e justa. Mas sua visão de si mesmo é seletiva. Quando ele está se sentindo bem, ele dá dinheiro aos mendigos; Quando está preocupado e distraído, ele os ignora. Ele é um progressista boa praça e justo em teoria, mas quando as pessoas menos privilegiadas que ele cometem a injustiça de enfrentá-lo, ele se irrita e esbraveja. No fundo, sua preocupação maior reside em administrar os grupos de pressão que giram em volta, as panelinhas, para manter seu status quo. Que o ator Claes Bang consiga transformar este protagonista num sujeito encantador, mesmo que o filme interrogue seu privilégio e sua própria natureza, certamente é uma conquista. Outro ponto admirável e que rende bem em “The Square” é o potencial de encenador de Östlund. O diretor tem um domínio de quadro, de tempo, de comicidade fabulosos. É muito estimulante como ele associa imagens de “quadrados” no filme todo, até mesmo a espiral de uma escada, a certa altura, sugere que o personagem está preso num cercado. Östlund também tem uma predileção para criar cenas provocativas, que alguns espectadores vão adorar. Seus alvos maiores são os limites da correção política e a pompa pequeno burguesa. O ataque mais delicioso que desfere, acontece num jantar de gala de museu. O evento é interrompido por um homem que finge ser um primata (interpretado por Terry Notary, o dublê americano que viveu o macaco Rocket na trilogia “Planeta dos Macacos”). A experiência primeiro é tomada por todos como divertida mas, eventualmente, o artista extrapola os limites e, então, as pessoas furiosas, esquecem-se dos bons modos e partem para espancá-lo com selvageria. A cena reitera algumas das questões-chave no coração de “The Square”: quando deixado para seus próprios dispositivos, a humanidade encontra equilíbrio ou se desintegra em agressores? Ou numa sociedade moderna, onde se estabelece a fronteira da civilização? Claro, nada disso é novo. Luis Buñuel desferiu ataques muito mais obscenos a tradição em seus clássicos “O Anjo Exterminador” (1962) e “O Discreto Charme da Burguesia” (1972). “The Square” tem uma maneira incrivelmente clara e simplificada de fazer as mesmas perguntas.
Jeanne Moreau (1928 – 2017)
Morreu a atriz Jeanne Moreau, ícone da nouvelle vague e uma das maiores intérpretes do cinema francês em todos os tempos. Ela tinha 89 anos e foi encontrada morta em sua casa em Paris, na manhã desta segunda-feira (31/7). Mais que estrela francesa, ela foi um mito mundial, tendo estrelado mais de 130 filmes, inclusive no Brasil, para alguns dos maiores cineastas que já existiram. A impressionante relação de diretores que a endeusaram inclui François Truffaut, Elia Kazan, Michelangelo Antonioni, Luis Bunuel, Rainer Werner Fassbinder, Louis Malle, Joseph Losey, Wim Wenders, Theodoros Angelopoulos, Manoel de Oliveira e Orson Welles, que a descreveu como “a melhor atriz do mundo”. “Se foi uma parte da lenda do cinema”, afirmou o presidente francês Emmanuel Macron em um comunicado, no qual descreve Moreau como uma mulher “livre, rebelde e a serviço das causas nas quais acreditava”. Jeanne Moreau nasceu em 23 de janeiro de 1928, em Paris, filha de uma pai restaurador e uma mãe dançarina inglesa. O pai conservador foi responsável por seu feminismo latente. Em entrevista, ela o descreveu como “um homem criado por pais do século 19”, que não suportava o fato de não poder controlar sua mulher. “Isso me marcou pela raiva de ver como uma mulher poderia deixar-se intimidar”, disse, ao descrever a relação de seus pais e a motivação para viver personagens libertárias. Aos 19 anos, após o Conservatório, fez sua estreia no teatro. Mais especificamente na Comédie-Française que, para ela, representava “disciplina, rigor”. A estreia no cinema veio dois anos depois, em 1949, como coadjuvante em “Dernier Amour” (1949), um melodrama de Jean Stelli. As câmeras se apaixonaram pela atriz, que em pouco tempo saiu do elenco de apoio para os papéis principais. Em “Os Amores de uma Rainha” (1954) já viveu a personagem-título, a trágica Rainha Margot, e passou a reinar no cinema. Encarnou a persona de sedutora sensual em “Segredos de Alcova” (1954) e virou uma femme fatale, com “Alma Satânica (As Lobas)” (1957) e “Perversidade Satânica” (1958), estereótipos que acompanharam sua carreira, indissociáveis de sua beleza. Ela já era uma estrela em ascensão quando foi filmada por Louis Malle em “Ascensor para o Cadafalso” (1958), seu primeiro trabalho para um cineasta da nouvelle vague. Foi também sua estreia como cantora no cinema, gravando a voz numa trilha composta e interpretada por Miles Davis, mais elogiada que o próprio filme. Um ano depois, Moreau retomou a parceria com Malle em “Amantes” (1959), que lhe rendeu o prêmio de Melhor Atriz no Festival de Veneza. Filme “escandaloso” na época, mostrava a atriz tendo um caso com um estranho na mansão do próprio marido. Este enredo foi considerado “obsceno” em muitos países, inclusive nos Estados Unidos, e marcou Moreau como uma atriz “corajosa”. Após um papel em “Os Incompreendidos” (1959), filme de estreia de François Truffaut, ela voltou a encarnar uma sedutora fatal em “Ligações Amorosas” (1959), a versão de Roger Vadim para o romance “Ligações Perigosas”, de Choderlos de Laclos, no qual viveu a manipuladora Juliette de Merteuil. Já considerada estrela, quis conhecer a escritora Marguerite Duras. “Uma vez que me tornei uma estrela, poderia impor o tema, o diretor, o ator, então disse a mim mesma: vou conhecer esta mulher. Escrevi para ela, ela me recebeu”, contou. Moreau estrelou a adaptação de “Duas Almas em Suplício” (1960), roteirizada pela própria escritora, e venceu o prêmio de Melhor Atriz no Festival de Cannes. As duas ficaram amigas e voltariam a trabalhar juntas outras vezes, inclusive na estreia de Duras como diretora, “Nathalie Granger” (1972). Ao final, a atriz até interpretou Duras em “Cet Amour-là” (2001). Sua fama ficou ainda maior ao cruzar fronteiras com o clássico italiano “A Noite” (1961), em que foi dirigida por Michelangelo Antonioni e contracenou com Marcello Mastroianni. Um dos filmes mais influentes de sua época, tornou-se famoso pela atmosfera, ao retratar uma noite na vida de um casal entediado com a própria relação e com la dolce vitta. Mas não foi seu principal papel. Este viria no reencontro com Truffaut, “Jules e Jim – Uma Mulher para Dois” (1962). O filme foi um turbilhão – e incluía uma canção chamada “Le Torubillon” – ao pregar o amor livre no começo dos anos 1960 e sintetizar o júbilo da juventude numa corrida em direção à câmera, que era uma corrida contra o próprio tempo. Filmes de Godard já tinha estabelecido uma nova estética, mas foi “Jules e Jim” que estabeleceu o novo discurso. A nouvelle vague virava com ele o cinema mais jovem e libertário do mundo, conforme Jean Moreau corria sem amarras para inspirar gerações. Não mais uma garota sexy, mas uma mulher moderna. E os grandes cineastas vieram correndo atrás dela. Joseph Losey a filmou em “Eva” (1962), Orson Welles em “O Processo” (1962), Jacques Demy em “A Baía dos Anjos” (1963), até seu antigo parceiro Louis Malle no espetacular “Trinta Anos Esta Noite” (1963), Luis Bunuel em “O Diário de uma Camareira” (1964), John Frankenheimer em “O Trem” (1964). Louis Malle conseguiu realizar o que muitos invejaram ao juntar Moreau com Brigitte Bardot na comédia western “Viva Maria!” (1965) e ela foi parar na capa da revista americana Time – além de vencer o BAFTA (o Oscar inglês). O sucesso só aumentou seu status, mas ela recusou propostas comerciais para continuar suas parcerias com mestres do cinema, boa parte deles renegados pela própria Hollywood, como Orson Welles, que revisitou em “Falstaff – O Toque da Meia Noite” (1965), “História Imortal” (1968) e “The Deep” (1970). Também filmou mais dois textos de Margarite Duras com o diretor inglês Tony Richardson, “Chamas de Verão” (1966) e “O Marinheiro de Gibraltar” (1967). E voltou a trabalhar com Truffaut em outro filme emblemático, “A Noiva Estava de Preto” (1968), que retomou sua aura noir, de atriz noturna, sombria, antes de virar do avesso as aparências e se tornar tropical. Em 1973, Jean Moreau virou a “Joanna Francesa” do título do filme de Cacá Diegues. No longa brasileiro, ela abandonava o marido – ninguém menos que o estilista Pierre Cardin – para se aventurar com sexo nacional e MPB. Até gravou a música “Joana Francesa”, composta por Chico Buarque. Voltou a experimentar o amor a três e a chocar “valores burgueses” em “Corações Loucos” (1974), de Bertrand Blier, antes de se lançar como diretora. Incentivada por Orson Welles, estreou atrás das câmeras com “No Coração, a Chama” (1976), bisou a experiência com “A Adolescente” (1979) e a encerrou com um documentário sobre sua musa inspiradora, a estrela do cinema mudo Lillian Gish (“Órfãs da Tempestade”) em 1983. Apesar de prestigiada nos Estados Unidos, ela só foi filmar uma superprodução de Hollywood em 1976, “O Último Magnata”, adaptação da obra de F. Scott Fitzgerald em que contracenou com Robert De Niro e foi dirigida por Elia Kazan. Curiosamente, no mesmo ano também estrelou “Cidadão Klein” (1976) para o outsider Joseph Losey, americano que fez carreira no exterior e a dirigiu três vezes – a última em “La Truite (1982). Sua fama de “corajosa” a levou a “Querelle” em 1982, adaptação de Jean Genet com direção de Rainer Werner Fassbinder que virou um marco do cinema gay, pela forma crua como retratou relações sexuais entre homens. Exibido no Festival de Veneza, o filme polarizou opiniões, a ponto do Presidente do Júri, o veterano cineasta Marcel Carné, divulgar um manifesto durante a premiação, lamentando a decisão dos colegas de não premiarem a obra. “Ame ou odeie, um dia o filme de Fassbinder vai encontrar o seu lugar na história do cinema.” Na época, porém, a repercussão foi brutal. E até Moreau, acostumada com escândalos, preferiu uma saída estratégica para a televisão francesa. Só foi voltar ao cinema cinco anos depois, numa comédia leve, “Ladrão de Milagres” (1987). Em 1990, participou de “Nikita – Criada Para Matar”, thriller de ação dirigido por Luc Besson, que se tornou uma das maiores bilheterias internacionais do cinema francês. E assim voltou ao mundo. Seu itinerário cinematográfico a levou literalmente “Até o Fim do Mundo” (1991), com o alemão Win Wenders, obra seguida por “O Passo Suspenso da Cegonha” (1991), do grego Theodoros Angelopoulos, “O Mapa do Coração” (1992), do neozelandês Vincent Ward, “O Amante” (1992), do francês Jean-Jacques Annaud, “As Cento e Uma Noites” (1995) da belga Agnes Varda, “Além das Nuvens” (1995), parceria de Antonioni e Wenders, até conduzi-la de volta a Hollywood, com o romance “Bem-Me-Quer, Mal-Me-Quer” (1996), que juntava o casal Jude Law e Claire Danes, e o sucesso “Para Sempre Cinderela” (1998), com Drew Barrymore. No mesmo ano, ela recebeu das mãos de Sharon Stone um Oscar honorário por toda a sua carreira. A homenagem da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas dos Estados Unidos foi apenas uma dentre as inúmeras honrarias que a estrela recebeu nos últimos anos por sua vasta filmografia. A lista inclui um Leão de Ouro em 1992, um Urso de Ouro em 2000, uma Palma de Ouro em 2003 e um “Super César” (o Oscar francês) em 2008, em celebração aos 60 anos de sua carreira. Ela também foi a única atriz convidada a presidir duas vezes o júri do Festival de Cannes (em 1975 e 1995). E mesmo com tantas homenagens ao seu passado, nem cogitava a aposentadoria. Seu último grande filme francês foi “O Tempo que Resta” (2005), de François Ozon, mas isto porque cineastas de todo o mundo disputavam filmá-la. O israelense Amos Gitai fez nada menos que quatro filmes com ela: “Aproximação” (2007), “Mais Tarde, Você Vai Entender” (2008), “Carmel” (2009) e “A Guerra dos Filhos da Luz contra os Filhos das Trevas” (2009). Mas Moreau também filmou com o bósnio Ahmed Imamović (“Go West”), o estoniano Ilmar Raag (“Uma Dama em Paris”), o malaio Tsai Ming-liang (“Face”) e o português Manoel de Oliveira em seu último longa-metragem, “O Gebo e a Sombra” (2012). Em 2013, ela estrelou uma série francesa que era uma verdadeira homenagem a seu talento, “Le Tourbillon de Jeanne”, que contou com a participação de grandes astros do cinema francês. “Mas não sou o tipo de pessoa que pensa ‘Oh meu Deus, não era maravilhoso quando eu tinha 25 anos?'”, ela afirmou, em entrevista ao jornal New York Times em 2000, quando se tornou a primeira mulher eleita para integrar a Academia de Belas Artes francesa. Foi nesta ocasião, como notou o jornal americano, que ela se tornou “oficialmente” imortal. Mesmo que já fosse considerada mitológica há muitos e muitos anos.










