Deixe a Luz do Sol Entrar traz Juliette Binoche encantadora
Há uma cena de “Deixe a Luz do Sol Entrar” em que uma já cansada e sofrida Isabelle (Juliette Binoche) está em um táxi e pergunta ao motorista se ele está bem, como ele está se sentindo, quer, sinceramente, também saber dele. Tanto para saber do sofrimento alheio e quem sabe entender um pouco o seu, quanto para, talvez, se sentir menos sozinha ou mesmo encontrar alguma forma de alento. Esta é uma das mais belas, tristes e poéticas cenas do filme, embora seja também uma das mais simples. Precisa ser vista dentro do contexto dos acontecimentos anteriores para que seja melhor sentida. No começo deste novo trabalho de Claire Denis, Isabelle, a heroína da narrativa, conversa de maneira bem pouco natural sobre seu drama, a dificuldade de encontrar alguém para amar, quase como se estivesse num musical – mas sem os atores cantarem. Na primeira cena do filme, ela está transando com o amante, um homem casado, um banqueiro um tanto cínico. Ela é uma artista plástica que vive uma vida de menos posses para esbanjar, por isso o homem em certo momento a chama de proletária. Mas a questão do dinheiro nem é um elemento forte do filme, não. O mais importante é a busca pelo amor, uma busca que esbarra constantemente em frustrações, em sentimento de rejeição. A história certamente encontrará identificação por parte do público, especialmente de um público que vive momentos frequentes de instabilidade na vida amorosa. Daí, será fácil se ver um pouco na personagem de Binoche. Aliás, que mulher, meus amigos. Esta afirmação é muito óbvia, levando em consideração que acompanhamos a atriz desde os anos 1980 e sempre com muita admiração, seja pela beleza, seja pela sensibilidade com que ela agarra os papéis. Mas em “Deixe a Luz do Sol Entrar” ela parece estar mais plena como mulher. É possível que pelo olhar de uma diretora como Claire Denis ela tenha alcançado outro patamar de sensibilidade. Uma mulher desta vez vista pelo olhar de outra mulher. E justamente por ser tão bela e tão apaixonante, é tão irritante vê-la ser rejeitada como nas cenas com o personagem do ator de teatro vivido por Nicolas Duvauchelle, que apareceu em “Desejo e Obsessão” (2001) e “Minha Terra, África” (2009) da diretora. As cenas com Duvauchelle talvez sejam as melhores do filme, no sentido de mostrar a tensão de um primeiro encontro, a dúvida sobre o passo seguinte a dar, as palavras como agentes de atrito etc. Talvez o filme comece a derrapar a partir de uma cena de festa, em que aparece um sujeito um tanto exótico, que chama a atenção de Isabelle. Sua aparência e seus gestos até provocam alguns risos da plateia. O humor em “Deixe a Luz do Sol Entrar” é bastante singular e muito bem-vindo, servindo para atenuar o tom de tristeza da personagem. Terminar como terminou representa uma promessa de um futuro melhor, ou ao menos de uma aceitação por parte da personagem sobre sua vida e seu destino. O conselho do título, dito pelo personagem de Gerard Depardieu, em pequeno papel, parece um pouco óbvio, mas como esquecemos continuamente tantas lições que a vida já nos ensina, é necessário que certas coisas sejam novamente ditas e lembradas. Há momentos que lembram David Lynch: Binoche dançando ao som de “At Last”, em linda interpretação de Etta James, como escolha ideal de canção sobre a definitiva (?) chegada do verdadeiro amor; ou mesmo a primeira aparição de Depardieu dentro de um carro, quebrando um pouco a linha narrativa, inserem na obra um ar surreal bem-vindo. Estar “aberta”, neste caso, vale também para as escolhas de Denis.
Cinemas recebem nova sci-fi de Steven Spielberg e a biografia de Edir Macedo
A programação da semana destaca a nova sci-fi de Steven Spielberg, uma fantasia grandiosa da Disney e a hagiografia de Edir Macedo, todos candidatos a blockbuster – o filme do fundador da Igreja Universal já arrasa quarteirões, com 4 milhões de ingressos vendidos antecipadamente e ocupação de 1.108 salas. Lembrando que o circuito cinematográfico brasileiro é de pouco mais de 3 mil telas e que há outros filmes muito bem sucedidos em cartaz, cabe a pergunta: tem espaço para tudo isso ao mesmo tempo? A Record está buscando uma alternativa com exibições itinerantes de “Nada a Perder” para somar à blitz da pré-venda, supostamente responsável por já ter esgotado os ingressos desse fim de semana. A popularidade do filme é impressionante, e tende a ser incensada, porque é o único aspecto visível da produção para a imprensa. Só os amigos e funcionários da Record foram convidados a assistir ao longa antes da estreia, por isso o lançamento chega aos cinemas sem críticas. Foi escondido da imprensa, talvez como estratégia para não colocar tudo a perder. Mas há relatos de que teria sido finalizado apenas na semana passada, o que realmente dificultaria sessões antecipadas. Rumores também dizem que o filme tem o maior orçamento da história do cinema brasileiro, superando os R$ 25 milhões, e recorde de figurantes, mobilizando 30 mil pessoas numa única cena. Mas os gastos teriam sido contrabalanceados com contratos internacionais – já estaria negociado em 80 países e até com o serviço de streaming Netflix. A trama se estende por três décadas e inclui a fundação da Igreja Universal do Reino de Deus e a compra da rede Record. A direção é de Alexandre Avancini (“Os Dez Mandamentos – O Filme”) e o elenco inclui Petronio Gontijo (da novela “Os Dez Mandamentos”) como Edir Macedo, além de Day Mesquita (mais uma de “Os Dez Mandamentos”), Dalton Vigh (minissérie “Liberdade, Liberdade”), André Gonçalves (novela “Salve Jorge”), Eduardo Galvão (novela “Malhação”), Marcelo Airoldi (novela “Sol Nascente”), Nina de Pádua (novela “Chamas da Vida”) e Beth Goulart (novela “A Terra Prometida”). Superproduções de Hollywood Se o filme de Edir Macedo é um mistério, a nova sci-fi de Steven Spielberg já foi aprovada pela crítica norte-americana. “Jogador nº1” teve premières aplaudidas e elogios rasgados da imprensa geek, por sua capacidade de transformar nostalgia em fonte de referências, com recorde de easter eggs espalhados na tela. Mas também houve ponderações – as animações de seu mundo virtual são antiquadas, a ação do mundo real menos interessante, etc. – , que evitaram a unanimidade e a multiplicação exagerada de exclamações de obra-prima. Mesmo assim, atingiu 76% de aprovação no Rotten Tomatoes. O longa que marca a volta de Spielberg à ficção científica é uma adaptação do livro homônimo de Ernie Cline. A história se passa em 2044, quando a humanidade se conecta no Oasis, uma utopia virtual, onde as pessoas podem viver o que sonham, interagir com outros jogadores e até se apaixonar. Mas o protagonista Wade Watts (Tye Sheridan, de “X-Men: Apocalipse”) quer mais que sonhar. Ele pretende resolver o enigma do criador do Oasis (Mark Rylance, de “Ponte dos Espiões”), que escondeu uma série de pistas na realidade virtual para premiar quem resolvê-las com a herança de sua enorme fortuna – e até o próprio Oasis. Milhões tentam conseguir o prêmio, sem sucesso, mas Wade está na frente da competição. Isto porque as chaves do enigma são baseadas numa cultura esquecida que ele domina: o entretenimento pop dos anos 1980 e 1990. Assim como o personagem procura pistas para o ovo dourado, escondido pelo Willy Wonka futurista, o público também tem centenas de easter eggs na produção para identificar, desde o protagonista da animação “O Gigante de Ferro” (1999) até o DeLorean de “De Volta para o Futuro” (1985). Já “Uma Dobra no Tempo” não se desdobrou como a Disney planejava. O êxito de “Pantera Negra” pode ter canibalizado o interesse no longa. Afinal, a fantasia infantil do estúdio buscava um nicho similar de mercado, com elenco multicultural, protagonista e diretora negras, numa adaptação de obra juvenil adorada por gerações. O fato é que a filmagem do clássico literário de Madeleine L’Engle por Ava DuVernay (“Selma”) implodiu nas bilheterias dos Estados Unidos, atingindo “apenas” US$ 76,3M (milhões) em três semanas. O valor não correspondeu às expectativas do mercado, representando uma volta à “normalidade” para a Disney, que não registrava fracassos clamorosos desde “Alice Através do Espelho” e “O Bom Gigante Amigo”, de 2016. “Uma Dobra no Tempo” teve abertura melhor que esses filmes, mas seu desempenho está à altura da frustração causada por “Tomorrowland” em 2015, que não conseguiu recuperar seu investimento. Embora a Disney não tenha revelado o orçamento da produção, o longa é repleto de efeitos visuais e estrelado por atores de renome – Oprah Winfrey (“Selma”), Reese Witherspoon (“Belas e Perseguidas”) e Mindy Kaling (série “The Mindy Project”) vivem coloridas mulheres místicas – , o que costuma vir com uma etiqueta de preço elevado. Para completar, as críticas não empolgaram. Com 41% de aprovação, foi considerado um “grande desapontamento” (The Wall Street Journal), repleto de efeitos que “não conseguem envolver” (Chicago Sun-Times) e com a profundidade de um “vídeo cheio de cores para distrair as crianças” (The Guardian). Curto-circuito feminino O excesso de superproduções não chega a esgotar completamente o circuito, que ainda traz cinco lançamentos limitados, três deles de ficção e dirigidos por mulheres. O grande filme da pequena lista é “Zama”, coprodução brasileira que foi escolhida para representar a Argentina na busca de uma indicação ao Oscar 2018. Drama épico de Lucrecia Martel ambientado na época da colonização, o longa conta a história de Diego de Zama, um oficial da coroa espanhola do século 18, que se encontra estagnado há anos em um posto de Assunção, no Paraguai, e decide se juntar a um grupo de soldados para capturar um perigoso bandido. Mas, nesses momentos de violência, ele descobre que tudo o que realmente deseja não é uma promoção, mas sobreviver. Lucrecia Martel é conhecida por filmes premiados como “O Pântano” (2001), “A Menina Santa” (2004) e “A Mulher sem Cabeça” (2008), entretanto não filmava há nove anos. “Zama” venceu o prêmio da crítica no Festival de Havana, apareceu em 4º lugar na lista dos melhores filmes de 2017 da revista Sight & Sound (publicação oficial do British Film Institute) e ainda disputa 11 categorias na premiação da Academia Argentina e 8 indicações ao Prêmio Platino. Até o Rotten Tomatoes aprovou, com 86% de avaliação positiva. “Deixe a Luz do Sol Entrar” também traz uma cineasta renomada atrás das câmeras, a francesa Claire Denis, frequentadora assídua dos grandes festivais europeus. A surpresa é que, desta vez, a diretora de dramas pesados como “Chocolate” (1988), “Noites Sem Dormir” (1994), “35 Doses de Rum” (2008), “Minha Terra, África” (2009) e “Bastardos” (2013) opta pela leveza. O filme consiste, basicamente, de uma hora e meia de rejeições, nas quais Juliette Binoche (“Acima das Nuvens”), fotografada como uma jovem, busca e afasta pretendentes. A obra tem sua graça e muito charme, como atesta a aprovação de 89% da crítica norte-americana. Foi premiada na Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes do ano passado e ainda rendeu mais uma indicação ao César de Melhor Atriz para Binoche. Por outro lado, “Madame” não recebeu os mesmos elogios. Trata-se de uma comédia de erros convencional que chama atenção por ser falada em inglês e pelo elenco estrangeiro, com a australina Toni Collette (“xXx: Reativado”) no papel de uma madame que, por superstição, decide que precisa de mais uma mulher para compôr o número de convidados de um jantar fino. Assim, manda uma empregada trocar o uniforme por um vestido de seu closet para fazer figuração. A escolhida é a espanhola Rossy Palma (“Julieta”), velha conhecida dos filmes de Pedro Almodóvar, que acaba encantando um milionário. O mais curioso nessa história de Cinderela é que a madrasta malvada e a fada madrinha são a mesma personagem. Mas o trabalho da diretora francesa Amanda Sthers (“Eu Vou te Fazer Falta”) não passou dos 24% no Rotten Tomatoes. Como sempre, a programação se completa com documentários. “Árvores Vermelhas” é uma produção britânica que revisita o Holocausto, por meio das memórias do pai da diretora Marina Willer e viagem às locações atuais dos antigos cenários de horror na República Tcheca. E “Górgona” retrata a atriz brasileira Maria Alice Vergueiro, com uma extensa carreira nos palcos, que enfrenta dívidas e o mal de Parkinson, sem ter atingido o reconhecimento da indústria cultural.

