O Bom Dinossauro é um dos filmes mais infantis da Pixar
O novo filme da Pixar é claramente um passo atrás em relação a “Divertida Mente”, realizado no mesmo ano. De todo modo, não chega a comprometer a reputação da empresa de animações, que continua sendo a melhor da indústria em Hollywood. “O Bom Dinossauro”, de Peter Sohn, o homem que havia assinado o belo curta “Parcialmente Nublado”, exibido antes do superestimado “Up – Altas Aventuras”, dialoga bem com as crianças, mas não possui a sutileza dos outros desenhos da companhia, que encantam os adultos. Não faltam, porém, referências à história da Disney e da própria Pixar, pois há uma sequência de morte em família que vai remeter a clássicos como “Bambi”, “O Rei Leão” e “Procurando Nemo”. Se não transmite a mesma intensidade trágica pode ser por falha da direção, mas também uma opção para não assustar demais seu público infantil. Entretanto, esta preocupação não impediu “Valente”, por exemplo, de possuir elementos assustadores, capazes de perturbar os pequenos. De todo modo, o que conta mesmo em “O Bom Dinossauro” é a relação de amizade improvável que surge entre o pequeno dinossauro desastrado Arlo e o garotinho selvagem Spot. O filme se passa em um mundo alternativo em que os dinossauros não se extinguiram e convivem com os homens pré-históricos. Arlo se distingue logo dos demais por nascer dentro de um ovo enorme, mas ser bem pequeno. Ele sente dificuldade em se ajustar e em desempenhar um bom trabalho como seus irmãos, mas o pai sente muito carinho por ele e diz que Arlo é melhor do que ele. Uma tempestade faz com que ele se perca de sua aldeia e vá parar em lugares perigosos e viva grandes aventuras, enfrentando tanto inimigos quanto os próprios medos. É uma história sobre a jornada do herói, a construção da maturidade de um jovem e também um belo filme de amizade, que se desenrola à medida em que Arlo e Spot passam a ver que se completam. E que ambos estão perdidos, de certa forma, de suas famílias. Há um momento bem comovente e que pode fazer chorar até mesmo os mais velhos, embora alguns possam enxergar nisso um exagero melodramático. É quando “O Bom Dinossauro” quase atinge o status de grande filme. Antes do filme ainda é exibido um curta-metragem chamado “Os Heróis de Sanjay”, de Sanjay Patel. Comparado com outros curtas da Pixar, este é um dos menos memoráveis, embora seja visualmente bonito e lide com a importância de a criança exercitar a criatividade e ter o seu próprio universo de fantasia. E ainda traz elementos da cultura indiana, o que é um aspecto curioso.
Spotlight denuncia um dos maiores escândalos do século em homenagem ao bom e velho jornalismo
Um dos filmes mais incensados pela crítica americana em 2015, favorito a diversos prêmios da temporada, “Spotlight – Segredos Revelados” chega aos cinemas em sintonia com estes tempos de denúncias de esquemas de corrupção em grandes corporações e no governo, mas também das revelações pessoais em redes sociais, de gente disposta a compartilhar a sua própria experiência como vítima de abuso sexual na infância ou na adolescência. O longa de Tom McCarthy trata de um escândalo específico, trazido à luz pela imprensa americana em 2002: o número alarmante de ocorrências de padres católicos que abusaram sexualmente de crianças em suas paróquias. A trama acompanha o trabalho investigativo de um grupo de repórteres do jornal The Boston Globe, que tem início com a chegada de um novo editor, interessado no caso de abuso de um padre local, abafado pela Igreja. Puxando o fio da meada, a investigação chega a novos casos e passa a ganhar proporções assustadoras, envolvendo dezenas de sacerdotes e vítimas. Mas nenhum caso tivera repercussão até então, graças ao trabalho de advogados, acordos financeiros e pressão social. Impressionados com a descoberta, os repórteres decidem enfrentar a poderosa Igreja Católica, revelando uma sordidez que repercute até os dias de hoje, levando até o Papa Francisco a se manifestar. Além da trama relevante, “Spotlight” materializa uma realização técnica admirável. A fotografia, de Masanobu Takayanagi, dá profundidade de campo a ambientes de trabalho reduzidos, como a redação do jornal, e a cenografia, figurino etc. também não ficam atrás. A reconstituição é fidedigna e feita de forma discreta e sóbria, evocando a estética elegante de clássicos do jornalismo político, como “Todos os Homens do Presidente”, de Alan J. Pakula, e “Rede de Intrigas”, de Sidney Lumet, ambos de 1976, com direito a toda a carga de urgência e suspense que obras como essas requerem. Para completar, o elenco é formado por artistas de peso como Michael Keaton (“Birdman”), Mark Ruffalo (“Os Vingadores”), Rachel McAdams (“Questão de Tempo”), Brian d’Arcy James (série “Smasht”), Liev Schreiber (série “Ray Donovan”) e John Slattery (série “Mad Men”), intérpretes da equipe que sacrifica a vida pessoal pela dedicação ao trabalho. De fato, é curioso como os cônjuges dos jornalistas praticamente não aparecem em cena, sinalizando a obsessão pela notícia que marca a vida desses profissionais. O filme também apresenta seu caso como um símbolo de resistência, diante do fechamento ou demissões em massa que vêm acontecendo nos jornais, devido à popularização dos sites da internet. O fato é que a nova mídia não demonstrou, até agora, interesse em bancar investigações ao longo de meses de pesquisa e aprofundamento como a realizada pela equipe de “Spotlight”. A perda dos jornais, representaria a perda da informação. Portanto, “Spotlight” supre duas funções: o de filme-denúncia e de filme-homenagem ao estilo de jornalismo old school e às pessoas que o fazem/faziam. Mas é mesmo como filme-denúncia que a obra de Tom McCarthy se mostra mais contundente, ao revelar uma instituição religiosa insuspeita como uma espécie de máfia, capaz de esconder todas as fontes, comprar advogados ou oferecer altas somas em dinheiro em troca do silêncio. Troque a religião por partido político, e a história também pode servir de paradigma para iluminar outras lamas profundas.
Diplomacia mostra como Paris escapou da destruição na 2ª Guerra Mundial
O novo filme do grande diretor alemão Volker Schlöndorff, chamado “Diplomacia”, é baseado na peça teatral do mesmo nome de Cyril Gely, que fez o roteiro do filme, em parceria com o diretor. Mas o assunto é o mesmo do filme de René Clément “Paris Está em Chamas?” (1966), lançado em DVD há pouco tempo. A trama se passa em 25 de agosto de 1944 na Paris ocupada pelos alemães, quando a entrada dos Aliados para a retomada da cidade é iminente, assim como o fim da guerra, já perdida para o Eixo, capitaneado pela Alemanha. O general Dietrich von Choltitz (Niels Arestrup, de “Cavalo de Guerra”), que coordena as forças de ocupação alemãs em Paris, é fiel ao Terceiro Reich e recebe ordem expressa, vinda de Hitler, para explodir a capital da França, incluindo suas pontes, monumentos e museus. A ideia era oferecer aos vencedores terra arrasada. Sabemos o final da história, mas o filme de Schlöndorff constrói um belo suspense com isso. O que fará o general? Está tudo pronto para explodir, fartamente carregado de dinamite, falta só a ordem para a explosão. Ela virá? O que acabará determinando tal decisão é o relacionamento do general com o cônsul-geral da Suécia em Paris, Raoul Nordling (André Dussolier, de “Três Lembranças da Minha Juventude”). Do embate intelectual entre ambos far-se-á a luz. O filme se centra na relação dos dois personagens, como se ela estivesse ocorrendo toda na noite fatídica da decisão. As cenas originais de rua servem apenas de elemento ilustrativo. É do confronto dos dois que se alimenta todo o filme. Em econômicos 88 minutos, acompanhamos toda a evolução da conversa que colocava em jogo um dos maiores patrimônios culturais da humanidade e vidas humanas em profusão. Os dois protagonistas, atores brilhantes, que já haviam vivido os mesmos papéis no teatro em 2011, carregam magistralmente a trama. André Dussolier, que faz o cônsul-sueco, é um dos atores que mais atuaram com Alain Resnais, que o tinha como um de seus prediletos. Mas trabalhou também com François Truffaut, Claude Chabrol, Claude Lelouch, Erich Rohmer, Coline Serreau, Bertrand Blier e muitos outros. Niels Arestrup, o general, trabalhou com Chantal Akerman, Claude Lelouch, Marco Ferreri, István Szabó, Jacques Audiard, Steven Spielberg, Bernard Tavernier e, também, Alain Resnais. Outra bela trajetória. Com atores assim, o resultado é eletrizante. Mesmo tudo se passando basicamente entre as paredes da sala de trabalho do oficial nazista. Em comparação com a superprodução francesa “Paris Está em Chamas?”, que reuniu um dos maiores elencos e participações especiais às pencas, a economia de recursos e de tempo de “Diplomacia” é incrível. René Clément contou com roteiro de Gore Vidal e Francis Ford Coppola. Teve no elenco Jean-Paul Belmondo, Charles Boyer, Alain Delon, Kirk Douglas, Glenn Ford, Yves Montand, Anthony Perkins, Michel Piccoli e até Orson Welles, no papel do cônsul sueco. Precisou de 165 minutos para registrar o mesmo fato. Mas escolheu outro caminho: o do minucioso detalhamento das batalhas de rua na Paris em que a Resistência tentava reconquistar pontos estratégicos, à espera do embarque aliado. Interessante do ponto de vista histórico, com base nos fatos e resgate de imagens originais em grande quantidade, mas longo e cansativo. “Diplomacia”, ao contrário, foca no embate razão vs. emoção, sobre seguir ordens absurdas sem questioná-las e do medo de enfrentá-las, mas também da coragem de fazê-lo, dos riscos a correr, da capacidade de avaliar a monstruosidade que estava em jogo. Volker Schlöndorff já se debruçara sobre a questão humana, que a guerra abala e destrói de forma absurda, em “O Mar ao Amanhecer” (2011) e principalmente em sua obra-prima, “O Tambor” (1979), em que um menino grita e bate um tambor para enfrentar os absurdos da guerra e da vida. Seu estilo contundente de filmar obriga o espectador a encarar realidades estranhas e desagradáveis. E constrói um forte humanismo como resposta.
Os Oito Odiados evidencia maneirismos de Quentin Tarantino
A teoria de que Quentin Tarantino perdeu sua principal parceira com a morte da montadora Sally Menke, que trabalhou com o cineasta de “Cães de Aluguel” (1992) a “Bastardos Inglórios” (2009), ganha força neste novo filme, “Os Oito Odiados” (2015), que possui uma metragem de quase três horas de duração. Desde “Cães de Aluguel” (1992), Tarantino faz uma espécie de prova de fidelidade com seu espectador. Os mais impacientes, por exemplo, não devem gostar de tanto falatório em seus filmes, ansiando pela ação e a violência que vêm a seguir, mas os diálogos sempre costumam surpreender. Desta vez, porém, o resultado nem é tão divertido nem tão tenso. Os primeiros “capítulos” de “Os Oito Odiados” se passam dentro de uma carruagem que leva quatro pessoas: dois caçadores de recompensas, o Major Marquis Warren (Samuel L. Jackson) e John Ruth (Kurt Russell), uma mulher levada para a forca, Daisy Domergue (Jennifer Jason Leigh), e um homem que afirma ser o novo xerife de Red Rock (Walton Goggins). O ódio de classe e raça já começa a se manifestar a partir da conversa entre essas quatro pessoas do norte americano do século 19, poucos anos após o fim da Guerra Civil. Lembra um pouco “No Tempo das Diligências” (1939), de John Ford, ao juntar um grupo heterogêneo de pessoas em um pequeno espaço. A diferença é que com Tarantino temos um elemento negro e forte, vivido por Jackson, e a mulher, por sua vez, não é nenhuma dama, mas uma assassina, uma vadia como insiste o texto, que deve ser tratada na porrada até ser devidamente enforcada. O curioso de “Os Oito Odiados” é a insistência de Tarantino em usar o glorioso Ultra Panavision 70, desperdiçado na falta de lindas imagens em planos gerais de exteriores, já que a maior parte do filme se passa em espaços interiores fechados. Após a carruagem, os quatro primeiros personagens encontram os outros quatro odiados num armazém, em que todos se protegem durante uma tempestade de neve. O confinamento faz dos diálogos o principal elemento cênico, aproximando o filme de uma peça de teatro. Mas Tarantino não deixa esquecer, em nenhum momento, que seu ofício é o cinema, seja pelo movimento da câmera, pelo ajuste de foco ou pela inclusão de um narrador inesperado, que também serve para lembrar como o cineasta sente prazer em manipular o tempo da narrativa e combinar diferentes gêneros – no caso, um clima de mistério à Agatha Christie, que movimenta o capítulo final. A coragem do cineasta em exagerar no tempo dos diálogos é diretamente proporcional à fidelidade de seus fãs, mas cobra um preço em “Os Oito Odiados”, que resulta em seu trabalho menos brilhante, inclusive diante do despretensioso “À Prova de Morte” (2007). Não há envolvimento com os personagens, resultado do falatório interminável, que prejudica a criação de um clima de tensão como Tarantino tão bem desenvolveu na cena inicial da cabana em “Bastardos Inglórios”, ou no jantar da metade de “Django Livre” (2012). Desta vez, tudo fica para o final. A violência tarda, mas não falha, como é praxe nos longas do cineasta. Ainda que demore para explodir, ela chega em doses sanguinolentas dignas de filme de horror com muito gore. Mas parece vir quase como que por maneirismo, deixando evidentes as repetições de estilo e autocitações. Mesmo as reviravoltas, que permanecem eficientes, demonstram um esforço mais frio e racional por parte de Tarantino para provocar surpresas. Só que, esperadas como tique de jogador de pôquer, elas resultam menos “surpreendentes” do que intencionaria o próprio diretor, o que nunca é um bom sinal.
Algo não deu certo em Vai que Dá Certo 2
Desta vez não deu certo. “Vai que Dá Certo 2”, sequência do sucesso de 2013, traz os mesmos personagens, que continuam a levar a vida com as mesmas dificuldades de antes, lamentando o fato de não conseguirem o tão sonhado dinheiro. Mas seu retorno se dá num registro menos cômico e um pouco mais sombrio, ficando a dúvida se isso ocorreu acidentalmente ou de forma deliberada para o tornar o filme pouco engraçado. O personagem mais centrado ainda é Rodrigo (Danton Mello), que começa o filme em um casamento com Jaqueline (Natália Lage). A moça é tão encantadora que seus três amigos patetas, Amaral (Fábio Porchat), Tonico (Felipe Abib) e Danilo (Lúcio Mauro Filho), ficam secando e torcendo para um dia poder ter uma chance com ela também. Coisa de gente imatura e sem noção ou de quem não tem filtro para falar o que realmente sente? A nova chance de os rapazes ficarem ricos surge em um vídeo comprometedor, que traz um sujeito que quer dar o golpe do baú em uma mulher mais velha. Vladimir Brichta interpreta esse sujeito. E o tal vídeo pode por fim ao seu casamento e a sua chance de enriquecer. Acontece que outras pessoas também estão interessadas no vídeo e no quanto podem lucrar com a chantagem, como é o caso de dois policiais corruptos e de uma prima de Rodrigo e Danilo. A partir daí, o filme assume um tom grave que compromete o já ralo humor presente. Sobram risos amarelos, silêncio, um certo incômodo e alguma tensão. Nem mesmo Lúcio Mauro, que também retorna como o avô gagá, consegue imprimir humor nas cenas de que participa. Ao contrário, sua sequência com Natália Lage pode até ser taxada de mau gosto. Fragmentado como uma coleção de esquetes, o fiapo narrativo tenta costurar a trama por meio de uma série de situações envolvendo uma sacola de dinheiro escondida. Mas o filme se sustenta mesmo na boa química de seu elenco (mesmo com a ausência de Gregório Duvivier). Talvez o problema esteja na mão pesada do diretor Maurício Farias, que retorna, desta vez acompanhado por Calvito Leal, demonstrando toda a influência de seus trabalhos em minisséries, séries e telenovelas para a Rede Globo. O problema de registro, porém, não vem de hoje, já que “O Coronel e o Lobisomem” (2005) também vacilava muito no uso do humor. Resta saber se, mesmo com seus equívocos, a sequência conseguirá repetir o sucesso do original. No Brasil das comédias blockbusters, ter graça parece realmente não importar.
As Sufragistas dá perspectiva histórica ao feminismo
“As Sufragistas” reflete bem o espírito dos tempos atuais, em especial do último ano, que testemunhou o avanço do feminismo nas redes sociais e nas artes. O filme é estrelado, escrito, dirigido e produzido por mulheres, num exemplo claro de que o empoderamento feminino de sua trama não deve ficar só na retórica. De fato, a produção supre uma imensa lacuna, levando até a a questionar por que há tão poucos trabalhos sobre a ascensão histórica do feminismo. Afinal, se a mulher hoje pode votar, exercer o seu direito de cidadania e assumir cargos públicos é por causa do esforço e do sacrifício dessas pioneiras que perderam a família, os empregos e até mesmo a própria vida para que o sonho de uma vida digna fosse materializado. Dirigido por Sarah Gavron (“Brick Lane”) e escrito por Abi Morgan (roteirista de “Shame” e “A Dama de Ferro”), “As Sufragistas” acompanha a jornada de Maud Watts, interpretada de forma inspirada pela bela e talentosa Carey Mulligan (“O Grande Gatsby”). Maud é uma jovem que trabalha como lavadeira em uma empresa administrada por um homem acostumado a abusar sexualmente de suas empregadas. E, ao chegar cansada do trabalho, ainda tem que cuidar do filho e do marido (Ben Wishaw, de “007 Contra Spectre”). Ela encontra uma razão para viver ao se aliar a um grupo de mulheres rebeldes que praticam a desobediência civil para chamar a atenção da sociedade. Se com palavras ninguém as ouve, por que não quebrar vidraças, incendiar caixas postais e, se necessário, até mesmo ir para a cadeia para deixarem de ser ignoradas? Um dos pontos mais interessantes da produção está na forma como os investigadores de polícia, encabeçados pelo ótimo Brendan Gleeson (“O Guarda”), tratam o vandalismo femininista como atos de extrema periculosidade, como se aquelas mulheres fossem agentes subversivos ou algo do tipo. De certa forma, os protestos não deixam mesmo de representar uma ameaça para a sociedade machista, que via aqueles protestos como imorais, por sugerirem que as mulheres deixassem de se manter passivas diante da lei e da cultura opressoras. O maior perigo que “As Sufragistas” corre, porém, é pintar os homens de forma excessivamente caricata. A única exceção é o farmacêutico casado com a personagem de Helena Bonham Carter (“Os Miseráveis”), que apoia as ações da esposa, uma das líderes do movimento sufragista. Outra líder, por sinal, é vivida por Meryl Streep (“A Dama de Ferro”). O filme podia obter melhor resultado do ponto de vista artístico, mas, ainda que abrace uma narrativa convencional, a diretora Sarah Gavron se sai bem, tanto na criação de suas adoráveis e corajosas personagens quanto no cuidadoso trabalho de reconstituição de época. Além disso, serve como lição de História e permite o debate de uma importante questão sociocultural.
Macbeth – Ambição e Guerra explora a força das palavras de Shakespeare
As palavras têm muita força, ainda mais quando escritas por William Shakespeare. Palavras levaram Othelo à perdição e Hamlet à loucura, mas foi com Macbeth que manifestaram seu poder mais devastador. Ditas por bruxas, são levadas à sério por um nobre demasiadamente mundano, virando maldição ao alimentar o que há de pior na alma humana. Ver uma nova adaptação de “Macbeth” – assim como, aliás, de qualquer obra popular – é basicamente buscar apreciar o que ela traz de novo, percebendo o quanto da fonte foi preservada e a estrutura escolhida para apresentá-la. Recentemente, até o cinema brasileiro se aventurou pela mesma tragédia shakespeareana, resultando em “A Floresta que se Move”, que nem é tão original quanto se imagina. A opção do diretor australiano Justin Kurzel (“Snowtown”) em “Macbeth – Ambição e Guerra” foi por preservar as palavras de Shakespeare, mantendo os diálogos rebuscados da peça original, mas montando o proscênio em locações autênticas das Highlands escocesas. O contraste é conflitante como a diferença entre o cinema e o teatro, resultando num trabalho esteticamente belo, mas frio. Na prática, até as cenas de viés épico, que remontam à direção de arte e figurino de “Coração Valente” (1995), com os escoceses pintados e vestidos para a guerra contra os ingleses, são relegadas a mero pano de fundo, servindo para inaugurar o primeiro ato e introduzir o encontro entre Macbeth (Michael Fassbender), um general do exército escocês, com as três bruxas que lhe contarão que ele será um rei. Aproveitando a encenação ao ar livre, Kurzel explora a paisagem com uma fotografia que privilegia o vermelho em diferentes tonalidades – o próprio céu é lindamente vermelho. Sem, entretanto, atingir o extremo sangrento de Roman Polanski em seu “Macbeth” escarlate de 1971. A nova versão não é tão violenta, mas não é por falta de mortes. Como se sabe, a profecia das bruxas vira a cabeça de Macbeth que, incentivado pela esposa, Lady Macbeth (Marion Cotillard), passa a acreditar em seu destino e a racionalizar um plano para assassinar o rei vigente, o bondoso Duncan, vivido por David Thewlis. A força das palavras o impulsiona para sua própria destruição. O filme destaca muito bem essa marca da peça, retomando o tema na cena em que Lady Macbeth ora para as forças do mal dentro de uma igreja cristã, tão disposta que estava em atingir o seu objetivo. Perturbador e um dos melhores momentos do longa, o chamado através das palavras contribui para o terrível pecado, que depois perturbará o espírito daqueles que o cometeram. Mas a filmagem também contempla silêncios, que servem como contraponto para as palavras fortes e poéticas do texto. Servem também para imprimir uma atmosfera de crescente tensão, acentuada pela trilha sonora de Jed Kurzel, irmão do diretor e guitarrista da banda The Mess Hall, que valoriza instrumentos de percussão nos momentos mais intensos e violentos. Uma pena que todo esse cuidado não resulte na catarse esperada.
Norte, O Fim da História desafia o circuito comercial com espetáculo cinéfilo
Certos filmes requerem uma predisposição por parte do espectador. E, no caso de “Norte, O Fim da História”, nem é tanto pelo andamento arrastado ou pelos chamados “tempos mortos”, que até são poucos neste longa de Lav Diaz, o primeiro do celebrado cineasta filipino a ser lançado comercialmente no Brasil – o que constitui um ato nobre e até político por parte dos exibidores, num momento em que a força do dinheiro vem sufocando a arte. O trabalho de composição e rigor visual de Diaz é admirável, com uma tela larga que valoriza os planos médios e gerais, sendo assim um convite para que seja melhor apreciado no cinema, ainda que poucas salas ousem exibi-lo. O que parece pesar são os 250 minutos de duração. É até pouco para o padrão de Diaz, um diretor de maratonas cinematográficas, mas o suficiente para impedir o filme de alcançar um público maior. O que é uma pena, pois “Norte”, além de grande cinema, ainda se revela vitrine para uma cultura pouco conhecida no Brasil: a das Filipinas, país que ainda tenta se reerguer de um duro período de ditadura e que convive com os idiomas inglês e o espanhol – após séculos de dominação espanhola, o arquipélago virou território dos Estados Unidos durante algum tempo. Isso explica, em parte, o papo filosófico em inglês em um cyber cafe, que abre a projeção. O filme é uma adaptação livre do romance “Crime e Castigo”, de Fiódor Dostoiévski, com uma narrativa que une três personagens. Temos Fabian, o sujeito que se orgulha de suas ideias pouco ortodoxas com relação à sociedade e à ética; Eliza, a mulher que, com muito sacrifício, procura sobreviver à pobreza e à maldade de uma agiota local; e o seu marido Joaquin, homem que é preso por um crime que não cometeu. Os três personagens principais possuem seu rincão de cenas admiráveis: Fabian e os momentos em que contracena com a irmã, além de seu último encontro com a agiota, refletem aspectos bastante trágicos de sua existência; Eliza e as tentativas de vender objetos e animais para sair da miséria, e logo depois seu posicionamento heroico frente à crise e ao fato de o marido estar preso; e Joaquin e sua redenção pela bondade durante a prisão, o que torna a curva de sua vida o extremo oposto do que ocorre com Fabian. Enquanto Fabian tem o espírito corroído pela culpa, Joaquin aceita a injustiça e mostra um espírito puro que chega, inclusive, a comover um presidiário maculado pela maldade. Apesar disso, “Norte” não é um filme com lição de moral, do tipo que ensina a fazer o bem para ser bem recompensado e vice-versa. Os destinos dos personagens são diversos e apresentam a vida como uma sucessão de eventos que tendem a seguir um caminho totalmente diferente do que se veria em narrativas mais convencionais e arquetípicas sobre causa e efeito. Aqui todos são vítimas, sejam culpados ou não por seus atos. É a fatalidade que, em suma, norteia o fim da história.
Novo Star Wars supera expectativas e se mostra à altura da trilogia original
A fascinação do público por “Star Wars” pode ser facilmente medida em (grandes) números. Uma das franquias mais admiradas e bem-sucedidas do cinema, “Star Wars” tornou-se, desde a estreia, em 1977, do então “Guerra nas Estrelas”, um sucesso não apenas no cinema, mas um fenômeno em termos de comercialização de produtos que vão desde action figures, passando por camisetas, cobertores e sandálias e tudo o que você puder imaginar. Ainda que presentes no imaginário popular há quase 40 anos, a saga foi aos poucos perdendo o encanto e a magia que encantou crianças, jovens e adultos neste período, muito por conta das versões plastificadas, artificiais e medíocres entregues por George Lucas nos prólogos que estrearem entre 1999 e 2005. Anunciado desde a compra da LucasFilm pela Disney, este “O Despertar da Força” vinha sendo aguardado com uma expectativa incomensurável, fosse pela direção de J.J, Abrams (um diretor talentoso que já havia ressuscitado “Star Trek”, uma franquia tão amada quanto), pelo roteiro co-escrito por Lawrence Kasdan (um mestre do assunto, responsável por “Caçadores da Arca Perdida” e “O Império Contra-Ataca”, consideradas até hoje como duas das melhores aventuras de todos os tempos) como pelo retorno aos efeitos práticos e cenários verdadeiros, bem diferentes dos prólogos, que o tempo tratou de aproximar dos videogames. O fato é que, passada a euforia de estreia, é absolutamente correto afirmar que “O Despertar da Força” não apenas honra toda a trilogia original como é uma das aventuras mais aprazíveis, emocionantes, divertidas e eficientes de todo o ano, além de, mesmo com diversas falhas pontuais, um triunfo em seu aspecto mais crucial, o de trazer ao espectador aquela sensação de encantamento que até hoje coloca “Star Wars” como algo bem maior que uma simples franquia cinematográfica. “O Despertar da Força” é simplesmente a continuação de “Star Wars” que todos desejavam, um retorno a um universo familiar e conhecido, mas que revela diversas surpresas, revelações e choques capazes de abalar até o mais frio dos espectadores. A trama faz questão de trabalhar com os cânones da saga de forma respeitosa. Até demais, em alguns aspectos. Mesmo os espectadores mais desatentos perceberão que este “Episódio VII” nada mais é do que uma refilmagem pouco disfarçada do “Episódio IV”, o primeiro “Guerra nas Estrelas”. Há a jovem solitária que vive no deserto e que encontra um pequeno robô – o simpático, carismático e divertido BB-8 – que carrega consigo uma mensagem secreta que deve ser entregue à Resistência Rebelde. A jovem conta com a ajuda de diversos amigos e de um mentor, ao mesmo tempo em que são perseguidos por um cavaleiro de roupas negras – isso sem contar a ameaça de uma nova e poderosa estação espacial. Não faltam nem o resgate nesta mesma estação e um ataque de caças na conclusão. Se a plot não faz questão de inovar – talvez como homenagem, talvez como falta de ousadia – o roteiro de Kasdan e Abrams faz com que este seja um problema facilmente contornável, graças a um trabalho excepcional no desenvolvimento e na apresentação de personagens e de situações que – ainda que continuem referenciando diversos elementos da saga – são capazes de elevar-se acima da mera referência e se tornem releituras carregadas de força e intensidade dramática. Sim, o filme é um “fan service” descarado (ainda que de forma muito mais sutil e inteligente do que, por exemplo, “Jurassic World”), mas tão bem feito que transcende esse reducionismo. Além do roteiro que foge das explicações óbvias e das redundâncias que abundaram nos prólogos, boa parte do sucesso do filme se deve à direção inspirada de J.J Abrams, que entrega aqui aquele que é o seu melhor trabalho, um filme com um ritmo empolgante, com um humor que funciona e não soa deslocado, com sequências de ação acachapantes e com diversos momentos que já podem se posicionar entre os mais admiráveis e emblemáticos da saga, como a impactante sequência da ponte – uma (outra) referência a “O Império Contra-Ataca” – um momento tão bem estruturado e encenado que Abrams mereceria nossos aplausos apenas por tê-lo feito com a importância e com o peso exigidos. Abrams recupera a estética original estabelecida no “Episódio IV” – com suas naves envelhecidas e enferrujadas, suas transições que lembram animações de PowerPoint, a trilha sonora de John Williams, os efeitos sonoros de Ben Burtt. A pegada pé no chão é tão convincente que os poucos momentos em que o filme parece não funcionar ocorrem justamente com a entrada de criaturas digitais, como a Maz Tanaka de Lupita N´yongo e do Supremo Líder Snoke de Andy Serkis. Outro ponto da modernidade estampada neste “Episódio VII” é a escolha de seus protagonistas. Em um ano em que tivemos a força de uma Imperatriz Furiosa, a inteligência de uma Ilsa Faust e o altruísmo de Katniss, é um deleite perceber que todas elas apenas estavam abrindo espaço para a jovem Rey – talvez uma protagonista bem mais interessante que Luke Skywalker no filme de 1977. Interpretado pela gracinha Daisy Ridley, Rey segue, inicialmente, os mesmos passos do jovem Skywalker, mas sua narrativa e seu crescimento dentro da trama são desenvolvidos com muito mais consistência. E, sim, temos uma garota protagonizando “Star Wars”. Até por conta disso, fica evidente que o arco do personagem Finn (Jon Boyega, aproveitando a oportunidade com sangue nos olhos) é bem mais frágil: um stormtrooper com crise de consciência que resolve abandonar a Primeira Ordem, uma espécie de reboot do Império Galáctico. Da mesma forma, o carismático Poe Dameron de Oscar Isaac – o melhor piloto da galáxia de todos os tempos! – é outro personagem que clama por mais espaço nos próximos episódios. Do lado dos vilões, Adam Driver arrisca em transformar seu Kylo Ren em uma versão mais jovem de Darth Vader, tão poderosa quanto, mas repleto de dúvidas e questionamentos. Ao lado de Rey, Kylo Ren é com certeza um dos mais complexos personagens desta nova saga, uma figura ao mesmo tempo ameaçadora e trágica, que sofre justamente com a tentação de não cair para o lado luminoso da Força. Driver dá vida a um vilão tão interessante que seus primeiros cinco minutos em tela ofuscam todas as aparições do jovem Darth da segunda trilogia. Entre os veteranos, é um deleite em todos os sentidos reencontrar estes personagens 30 anos mais velhos – e mais experientes. Com um bem aproveitado tempo em tela, é possível afirmar que Han Solo e Rey são o coração e a alma deste novo “Star Wars”. O veterano ator tira sua carranca mal-humorada e restabelece Solo no panteão dos grandes personagens do cinema. Já Carrie Fisher demonstra com dignidade o peso dos anos e da experiência que transformaram a Princesa em General Leia, carregando consigo uma dor e uma resignação tocantes. De Mark Hammil e seu Luke Skywalker não podemos falar muito. Escondido em toda a divulgação do filme, Skywalker transformou-se, assim como seus colegas de luta, em uma figura mítica e lendária. Não por acaso, o filme gira todo em torno de sua busca, e sua presença, mesmo quando apenas mencionada, traz novamente ao filme aquele viés épico e grandioso que tanto admiramos na primeira trilogia. Concluindo com aquele que é provavelmente o plano mais belo, interessante e promissor de todos os seis filmes anteriores, “O Despertar da Força” consegue se mostrar superior até ao excruciante hype que o precedia. Para além da memória afetiva e da expectativa, é uma obra carregada de nostalgia que chega derrubando todas as portas com um olhar moderno e relevante: um blockbuster honesto e autêntico em suas premissas, feito para entreter os fãs e converter novas gerações à saga que começou a muito tempo atrás numa galáxia muito distante.
Mia Madre exibe o talento de Nanni Moretti para retratar a vida e a morte
Nanni Moretti é um realizador italiano de grande talento e sensibilidade, capaz de mostrar o cotidiano da vida ao lado das questões políticas e filosóficas que o envolvem, no drama ou na comédia. Seu humor é inteligente, muito crítico, seu jeito de lidar com as emoções, muito verdadeiro. Não há perfumaria nos seus filmes, tudo é importante. Até o que não parece ser, o que é mais banal. A obra cinematográfica do cineasta relaciona o pessoal e o político em personagens como o próprio Papa, no seu filme anterior, “Habemus Papam” (2011). Ou o cinema e Berlusconi, em “O Crocodilo” (2006), a vida pessoal e a cidade de Roma, em “Caro Diário” (1993), entre outros. “Mia Madre”, seu mais recente trabalho, dialoga com um de seus melhores filmes anteriores, “O Quarto do Filho” (2001). Nos dois casos, é de perda e de luto que se trata. Tema difícil, doloroso, que exige cuidado no trato. Moretti transita muito bem nesse terreno e sem perder o humor. Margherita (Margherita Buy) é a protagonista da história. Diretora de cinema, está realizando um longa-metragem que discute questões políticas atuais, como a luta pela manutenção do emprego, o enfrentamento da repressão da polícia, os interesses econômicos do capital. Rigorosa e exigente, encontra problemas na atuação e no relacionamento com um astro internacional que incluiu em seu filme, Barry Huggins (John Turturro). Em meio à lida com seu ofício, Margherita tem de tratar de questões pessoais importantes: a mãe está muito doente, hospitalizada, exigindo cuidados. Ela compartilha essa tarefa, as decisões e os sentimentos que a envolvem, com seu irmão Giovanni (o próprio Moretti). Enquanto isso, sua filha vive a adolescência e tem um forte vínculo com a avó, que sempre a ajudou no estudo do latim. A proximidade da morte faz com que todos tenham de lidar com a perda de uma pessoa querida, que sempre foi forte, decidida, uma educadora e intelectual de mão cheia, sempre lembrada e procurada por ex-alunos. O filme explora a dimensão da realidade da cineasta, ao mesmo tempo em que traz à tona suas memórias e reflexões, suas inseguranças, medos e sonhos. Tudo tão amalgamado que chega a se confundir. A memória muitas vezes nos trai, a realidade dela é parcial, fragmentada. Nossos desejos se misturam com nossas percepções, os fatos, com a imaginação, tudo pode mesclar-se. E, no entanto, a vida exige de nós objetividade, quase o tempo todo. Essa dimensão fluída do real é muito bem captada pelo cinema de Nanni Moretti e é um dos pontos altos do filme. A atriz Margherita Buy (retomando a parceria de “O Crocodilo”) tem excelente atuação ao protagonizar essa trama. John Torturro (“Amante a Domicílio”) dá um ótimo toque de estranheza e humor ao personagem do ator-problema estrangeiro, que é também uma figura adorável, apesar de tudo. Moretti como ator tem agora um papel um pouco menor, mas igualmente importante na narrativa. A atriz veterana Giulia Lazzarini (“Grazie di Tutto”), no papel de Ada, a mãe doente, atua com uma placidez muito apropriada à figura retratada e aos seus momentos finais de vida. “Mia Madre” não tem a mesma força mobilizadora de grandes emoções de “O Quarto do Filho”, mas isso também tem a ver com a questão retratada. A perda de um filho jovem é mais importante e demolidora do que a perda de uma mãe já idosa. Aqui, algo da ordem natural das coisas segura o desespero da perda. Tudo acaba se dando de um modo mais sereno, ou um pouco menos perturbado. Mas são momentos decisivos na vida das pessoas. Sofridos e complexos. É o fluxo da vida. Que o cinema de Moretti retrata com dignidade e ajudar a compreender.
Garota Sombria Caminha pela Noite seduz com sua estranheza
Um filme de terror falado em persa e com vampira iraniana, eis a singularidade de “Garota Sombria Caminha pela Noite”, que além de tudo é dirigido por uma mulher, Ana Lily Amirpour, em belíssimo preto e branco. A curiosidade que isso desperta já é meio caminho para o culto, realmente conquistado pelo longa, mesmo que, na verdade, Amirpour seja inglesa e que o filme tenha sido totalmente produzido nos Estados Unidos. Apesar da carreira indie americana, lançado no Festival de Sundance e premiado com o Gotham Awards, “Garota Sombria” tem inegável espírito estrangeiro, com uma estranheza que impregna cada cena. A combinação de diferentes culturas é registrada na beleza plástica de sua fotografia, mas também num andamento narrativo irregular, que se excede e se arrasta em determinados instantes, como um filme de arte – lembra a fase em preto e branco de Jim Jarmusch. Nada disso, porém, prejudica o desenvolvimento final, que é bastante satisfatório, dentro de uma história, de fato, muito simples. Pela trama simples, desfilam alguns personagens que vivem uma vida desolada em Bad City, cidade de pesadelo em que o lixão (um buraco) serve para o despejo de cadáveres humanos. O traficante da cidade representa o que há de pior naquele lugar, e em contraste permite que a vampira, apesar de fazer suas vítimas, mostre-se menos cruel. Ela tem uma moral própria, dando preferência àqueles que “merecem” ter seu sangue sugado. Claro que o traficante canalha é um deles. Por isso, a cena do encontro dos dois é um dos pontos altos do filme. A moça que interpreta a vampira, Sheila Vand (de “Argo”), é, além de atraente, muito boa no papel. Algo, porém, se destaca sem que ela precise expressar. Sua predileção por camiseta listrada e calças esportivas ilustram uma clara identidade juvenil. Entretanto, quando vai matar, isso se esconde sob um véu, que cobre todo o seu corpo como uma jovem muçulmana tradicional. O detalhe é que o figurino se mescla com as sombras de forma deliberada. A capa preta tem sido uma imagem expressionista potente, que acompanha os vampiros desde o cinema mudo, mas, ao se transformar em véu, assume uma carga inédita de terror, relacionando a submissão religiosa ao surgimento de algo maligno. Eis mais um ponto positivo deste trabalho único, cujas qualidades vão além do mero gostar ou não gostar. Isso porque “Garota Sombria” é um filme com mais estética que conteúdo. Ou seja, interessa mais pela atmosfera e a beleza de suas imagens. E, nesse sentido, trata-se de uma obra cheia de acertos.
Nanni Moretti busca expiação com o tocante Mia Madre
O cinema de Nanni Moretti resiste à fraqueza da produção italiana atual, usando de sensibilidade para tratar de assuntos tão pessoais e ao mesmo tempo tão universais, como questões políticas e familiares. A política passa apenas de leve em “Mia Madre”, seu filme mais recente, mas as questões afetivas estão presentes com muita força na história. O filme segue uma cineasta que precisa lidar com a rotina difícil de sua profissão em um momento particularmente complicado de sua vida, em meio a uma separação e à doença de sua mãe, que se esvai aos poucos, internada em um hospital. Moretti já havia tratado a questão da perda de maneira até mais devastadora em “O Quarto do Filho” (2001). Por isso, é interessante que ele evite se repetir, abordando a perda de outro ente querido de forma mais distanciada – aqui, a protagonista é Margherita Buy e não o próprio cineasta, que interpreta um coadjuvante, o irmão da cineasta. “Mia Madre” é autobiográfico. O cineasta escreveu o roteiro enquanto sua mãe estava doente e ele filmava “Habemus Papam” (2011). E foi um acerto ele oferecer o papel principal para uma atriz com quem já havia trabalhado (em “Habemus Papam” e “O Crocodilo”), mantendo uma relativa distância. O seu personagem, o irmão companheiro Giovanni, talvez represente aquilo que ele gostaria de ter sido durante os últimos dias de vida da mãe: alguém que largou o emprego para ficar com ela. Por isso, o filme é também implacável, ainda que de maneira muito gentil, consigo mesmo, ou seja, com a protagonista, que é alguém que não dá a devida atenção às pessoas próximas a ela. Entretanto, é muita coisa para essa personagem processar e o ar sereno de Margherita passa sempre a impressão de que se trata de uma pessoa quase isenta de culpas. O estado de confusão mental da protagonista também é muito bem explorado por Moretti, que mistura sonho e realidade na tela, como na cena em que o apartamento de Margherita fica cheio de água, como se simbolizasse um transbordar de emoções que ela não consegue mais segurar. Mas tudo é muito bem conduzido e o filme flui como um belo e tranquilo rio. A presença de uma canção do Leonard Cohen (“Famous Blue Raincoat”) em uma dessas cenas oníricas é especialmente bela. E o final é tão delicadamente lindo, prestando tributo à personagem do título, que condensa uma obra de muito bom gosto. De fato, toda a história é bem conduzida, desde a relação conturbada de Margherita (a personagem tem o mesmo nome da atriz) com um ator americano (John Turturro, de “Amante a Domicílio”), passando pelas visitas ao hospital, até o relacionamento distante com a filha adolescente. O filme de Moretti é tão carregado de amor e suavidade, que parece ter sido feito para permitir ao diretor perdoar a si mesmo. E isso faz muito bem ao coração do espectador, também.
Califórnia revive com graça e emoção a adolescência da geração dos anos 1980
“Califórnia”, que marca a estreia de Marina Person como diretora de ficção, sintetiza muito bem os anos 1980, década que foi um misto de alegria e colorido com algo de soturno e bem depressivo (inclusive com a chegada da Aids). A disparidade da música da época é bem representativa dessa bipolaridade. Por isso, a trilha é tão importante neste filme, em especial o destaque dado à banda The Cure, que, além de comparecer com duas faixas (em momentos bem especiais), ainda inspira um personagem muito importante que se veste um pouco como o seu ídolo Robert Smith – e é o esquisitão da escola. The Cure se caracterizava por alternar canções depressivas com outras extremamente alegres em seus discos. Do lado brasileiro, temos os Titãs, que comparecem também com esses dois lados da moeda: toca a alegre “Sonífera Ilha” e a versão acústica e noventista de “Não Vou Me Adaptar”. E tem o cantor Paulo Miklos (“Carrossel – o Filme”) presente, no papel de pai da protagonista Estela (a estreante Clara Gallo), uma moça cujo sonho maior é viajar para a Califórnia, lugar onde seu tio Carlos (Caio Blat, de “Alemão”) mora. Ele trabalha escrevendo sobre música pop, outra das paixões de Estela, que, ainda novinha, descobrindo a vida, é fã de David Bowie. O filme começa no dia de sua primeira menstruação. A sexualidade, como é natural, é algo muito importante para ela e para as amigas, que falam sobre os romances com os meninos. Assim, enquanto a viagem para a Califórnia não chega, Estela tem uma queda por um rapaz da escola e vê nele o sujeito ideal para tirar a sua virgindade. As coisas não saem muito bem como ela quer, assim como a viagem para a Califórnia, que é adiada pela chegada-surpresa do tio Carlos, visivelmente abatido e sem expectativa de retornar para os Estados Unidos. Sim, o filme também trata da Aids e de como ela trouxe consigo inúmeras tragédias familiares. A aproximação e o amor de Estela pelo tio são bastante evidenciados e há um momento em especial que é bem emocionante: a cena do restaurante, quando os dois estão sós. Estela nada sabe do grave problema do tio e os espectadores se tornam cúmplices daquele momento de nó na garganta, numa idade em que todos os sentimentos são potencializados. E que bom que o filme consegue potencializá-los, pois o público ganha com isso, com a paixão que aqueles personagens têm pela música, em especial pelo rock daquela época. Assim, há cenas em loja de discos, na casa cheia de discos (e livros e quadrinhos) do novo amigo que Estela conhece na escola (Caio Horowicz, da série “Família Imperial”), personagem que a apresenta a livros e discos que considera importantes, talvez até sem saber o quanto isso contribuísse para sua formação. Claro que acaba surgindo algo além da amizade entre os dois, algo esperado pela estrutura da narrativa. O que não quer dizer que não tenhamos uma sucessão de pequenas surpresas ao longo da jornada de autoconhecimento de Estela. Uma jornada que contará com corações partidos, um parente querido muito doente e a sublimação pela arte, não apenas como válvula de escape, mas como descoberta da própria identidade e razão de viver. Embora Marina Person tenha dito que não se trata de um filme autobiográfico, é inevitável imaginá-la ali, guiando o público por um túnel do tempo que, ora é visto com certo distanciamento, ora experimentado como uma imersão na adolescência de sua geração. Quam já foi jovem sabe o quanto é perturbador ter tanta energia, ter o mundo inteiro pela frente e não ter a menor ideia de como agir, seja na vida amorosa, seja na construção de seu futuro. A vida é cheia de coisas lindas como a arte e o amor, que convivem ao lado de tragédias e tristezas. Essa é a graça, na verdade, e por isso às vezes é necessário que um filme como “Califórnia” nos ajude a lembrar disso.












