Amor & Amizade faz leitura avançada e pouco convencional de Jane Austen
No primeiro ato de “Metropolitan” (1990), Tom, personagem principal vivido por Edward Clements, tem uma discussão literária com Audrey (Carolyn Farina), no qual ele desdenha de “Mansfield Park”, considerando o livro de Jane Austen ridículo dentro de um contexto contemporâneo. Inconformada, Audrey retruca: “Já te ocorreu que o mundo contemporâneo, pela perspectiva de Austen, ficaria ainda pior?”. Com 26 anos de carreira, Whit Stillman continua fiel a um sentimento de deslocamento vivido por seus personagens nos ambientes em que transitam, como se estivessem despreparados para um novo rito de passagem. É um conflito que aproxima “Metropolitan” ou qualquer um dos seus três filmes seguintes de “Amor & Amizade”, este justamente inspirado em um romance de Jane Austen. Assumidamente comercial, o título pode fazer os fãs da escritora pensarem que “Amor & Amizade” é uma adaptação homônima do romance escrito em 1790, quando Austen ainda era uma adolescente. No entanto, o roteiro de Stillman tem como base “Lady Susan”, publicado postumamente em 1871. Kate Beckinsale (“Anjos da Noite”) é quem interpreta Lady Susan Vernon, uma quase quarentona que enviuvou sem uma herança generosa. Exatamente por isso, aproveita a ocasião do retorno de sua filha Frederica (Morfydd Clark, de “Orgulho e Preconceito e Zumbis”) após a expulsão do colégio em que estudava para aproximá-la do afortunado Sir James Martin (o hilário Tom Bennett, mais conhecido por suas participações em seriados britânicos), que vive de cometer gafes durante as tentativas frustradas de conquistá-la. Sem muito sucesso na tentativa em sofisticar o seu nome por meio de sua própria filha, Lady Susan parece ter outras cartas na manga, como conquistar Reginald DeCourcy (Xavier Samuel, de “A Saga Crepúsculo: Eclipse”), jovem irmão de Catherine DeCourcy (Emma Greenwell, da série “Shameless”), esposa de seu ex-cunhado, Charles Vernon (Justin Edwards, de “A Duquesa”). Durante os flertes, surgem os boatos de que Lady Susan também estaria atraída por Lord Manwaring (Lochlann O’Mearáin, da série “Vikings”), este em um casamento aos frangalhos com Lady Lucy (Jenn Murray, de “Brooklyn”). Mais do que respeitar os elementos de uma boa comédia de costumes, Whit Stillman persegue uma aproximação entre os valores antiquados e modernos. Não à toa, ele traz Chloë Sevigny (série “Bloodline”) fazendo a melhor amiga americana de Beckinsale: as duas atrizes foram também protagonistas de “Os Últimos Embalos do Disco”, vivendo garotas que parecem as encarnações futuras de Lady Susan e sua confidente Alicia Johnson em plena era da conversão de hippies em yuppies. O resultado está longe de ser uma adaptação convencional de Austen, especialmente pela ênfase na ardilosidade que move Lady Susan. Os homens até pensam que estão resolvendo os seus assuntos amorosos com uma impunidade que não favorece as mulheres. Mal sabem que as razões contidas no coração de Lady Susan a fazem estar muito avançada no jogo de aparências que articula.
A Viagem de Meu Pai diverte com um personagem inesquecível
Akira Kurosawa (1910-1998) considerava que uma condição essencial para se ter um bom filme é se ter um bom personagem. De fato, um personagem bem estruturado, psicologicamente consistente, inserido em seu contexto sociocultural e histórico, é capaz de envolver o público, cativá-lo, provocá-lo ou assustá-lo. É meio caminho andado para que um filme funcione e atinja o espectador, razão de ser da produção cinematográfica, algumas vezes ignorada pelos realizadores. O personagem Claude (Jean Rochefort), de “A Viagem de Meu Pai”, é uma dessas figuras que marcam presença com força e prendem a nossa atenção o tempo todo. Impossível ficar indiferente a ele. E quem é Claude? Um homem na faixa dos 80 anos, que tem força, presença marcante, alta autoestima e, consequentemente, uma boa imagem de si mesmo e de suas capacidades e recursos. Só que ele já está sofrendo do mal de Alzheimer, mas não se dá conta disso. Ou prefere não ver que seus esquecimentos, as confusões que ele acaba provocando, as dificuldades que surgem no convívio com as pessoas, são consequência de um problema sério, de uma doença que atinge a mente, embora possa mantê-lo ativo e serelepe. O desgaste que sua filha sofre e demonstra, inclusive com a troca de cuidadoras que ele, de um lado, rejeita, de outro, se relaciona de um modo totalmente inconveniente, não é percebido como algo relacionado ao que ele faz. Assim como as malandragens que o divertem são da ordem de um comportamento infantil, que ele não percebe como fora de lugar. Enfim, o roteiro do diretor Philippe Le Guay e de Jérôme Tonnerre, com base em história de Florian Zeller, explora muito bem as características da doença de Alzheimer, se manifestando numa pessoa dinâmica, forte e divertida, muito difícil de abordar, controlar e restringir. Tanto que, quando ele resolve fazer uma grande viagem, o fará, de um modo ou de outro. No caso, o destino é a Flórida, onde supostamente vive sua outra filha, e que produz um suco de laranja inigualável. Claude não aceita nenhum outro suco em seu lugar. Para que o filme se complete, surpreenda ao final e faça valer a boa trama que construiu, aplica-se uma pegadinha na plateia. Sem ela, não seria possível. Não gosto desse recurso, apesar de reconhecer que funciona no filme. É, digamos, um mal menor que se pode tolerar. A direção, numa abordagem clássica, consegue passar um clima de leveza e informação séria, que faz a gente refletir, se divertindo. À semelhança de um outro trabalho anterior de Philippe Le Guay, “Pedalando com Moliére” (2013), o humor é o seu ponto forte. Um humor inteligente, sofisticado. Em “A Viagem de Meu Pai”, nada supera a construção do personagem. É seu grande trunfo. Claude é muito especial e vivido com enorme talento pelo ator Jean Rochefort (“Uma Passagem para a Vida”). Ele é brilhante, consegue uma atuação impecável, luminosa, que encanta. A gente ri, se diverte, sofre com ele, torce por ele, admira sua determinação. Rochefort constrói um personagem inesquecível, que vale o filme.
A Intrometida rende um dos melhores papeis recentes de Susan Sarandon
A luta das atrizes veteranas de Hollywood por bons papéis parece estar surtindo efeito nestes tempos em que a representatividade é a palavra de ordem no cinema. Isso porque tivemos nos últimos meses ao menos quatro filmes que se sobressaíram dentro do circuito independente com mulheres maduras: “Reaprendendo a Amar”, “Aprendendo com a Vovó”, “Hello, My Name Is Doris” e, agora, “A Intrometida”. Grande atriz, Susan Sarandon vive no segundo longa-metragem de Lorene Scafaria (“Procura-se um Amigo para o Fim do Mundo”) a sua melhor protagonista desde “Anjo de Vidro”, drama natalino produzido em 2004. Na superfície, a sua Marnie tem semelhanças com a Carol Petersen de Blythe Danner em “Reaprendendo a Amar”. São duas mulheres na faixa dos 60 anos que não sabem muito bem como aplacar a solidão advinda da viuvez, reavaliando as próprias funções em uma vida que não as surpreende mais. No entanto, as semelhanças param a partir do momento em que fica evidente a personalidade mais expansiva de Marnie, que não tem qualquer dificuldade em se meter em assuntos alheios, como bem deixa explícito o título do filme. É um comportamento que sufoca a sua filha única Lori (Rose Byrne, de “Vizinhos”), uma roteirista com dificuldades para superar o fim do relacionamento com Jacob (Jason Ritter, da série “Parenthood”), um jovem ator que já está com outra companheira. Diante da exigência de Lori para que tenha a sua independência respeitada, Marnie passa a estreitar os laços com outras pessoas, tentando justificar a sua presença a partir de um auxílio por vezes financeiro para quem não tem a mesma fortuna que a sua. A primeira a contar com as suas generosas contribuições é Jillian (Cecily Strong, do humorístico “Saturday Night Live”), colega lésbica de Lori que teve um casamento feito às presas e que agora terá a chance de celebrar como deseja em uma festa de mais de US$ 10 mil totalmente bancada por Marnie. Outro a ter a sua ajuda é Freddy (Jerrod Carmichael, também de “Vizinhos”), vendedor de uma loja da Apple que conta com as caronas de Marnie para se deslocar até a faculdade iniciada recentemente. Mesmo partindo de um registro mais cômico do que dramático, surpreende como Lorene Scafaria (também autora do roteiro) não ridiculariza Marnie por estar em uma posição privilegiada diante dos personagens secundários. Claro que a protagonista terá o momento em que ouvirá algumas boas verdades sobre o seu comportamento a partir das consultas com a mesma terapeuta de sua filha, Diane (Amy Landecker, da série “Transparent”). No entanto, isso não reduz a sua benevolência natural, a sua amabilidade com o próximo. Outro fato que traz maior interesse ao filme é o seu tom de crônica, oferecendo uma perspectiva crível de pequenas cenas do cotidiano, que irá gerar uma proximidade muito especial com o público da terceira idade, inclusive no interesse amoroso de Marnie com o policial aposentado Zipper (J.K. Simmons, de “Whiplash”). Não que o espectador mais jovem seja incapaz de ter empatia por essa história, que também destaca a cumplicidade na relação entre mães e filhas.
Negócio das Arábias envolve sem que o espectador perceba
A carreira do cineasta alemão Tom Tykwer é marcada por filmes bastante distintos entre si. Ele ganhou notoriedade internacional com o divertido “Corra Lola Corra” (1998), trabalhou em um dos filmes de um projeto póstumo de Krzysztof Kieslowski, “Paraíso” (2002), dirigiu a adaptação de um best-seller de prestígio, “Perfume – A História de um Assassino” (2006), e fez parceria com os irmãos Wachowski no ambicioso “A Viagem” (2012), para citar alguns de suas obras mais conhecidas. Há muito pouco em comum entre todos esses filmes, a não ser uma certa plasticidade, que se apresenta evidente em todos os seus trabalhos. Difícil considerá-lo um autor. De qualquer maneira, isso não é preciso. Cada filme é um projeto único e pode ser visto de forma totalmente independente. Principalmente no caso de um diretor como Tykwer. “Negócio das Arábias” é o seu mais recente trabalho para o cinema, que volta a reuni-lo com Tom Hanks, com quem havia trabalhado em “A Viagem”. Trata-se de um filme de narrativa diferenciada desde as primeiras imagens, um tanto rápidas, quase lisérgicas, no modo como apresenta o dia a dia do protagonista Alan, um executivo falido que deixa o seu país arruinado, os Estados Unidos, para tentar a sorte na Arábia Saudita, lugar que experimenta crescimento econômico. O retrato dos Estados Unidos, inclusive, é bem pequeno e pobre, em contraste com a vastidão dos desertos e dos prédios gigantescos daquele lugar de cultura estranha. Há um homem que serve de motorista e de guia turístico para Alan, o divertido Yousef (o estreante Alexander Black). Mas é curioso como, apesar de se destacar, ele sempre aparece em cenas curtas. Como, aliás, todos os demais personagens que rodeiam Alan. Mesmo a médica por quem ele se interessa, vivida por Sarita Choudhury (série “Homeland”), e que ganha mais espaço no final, parece um apêndice na vida do protagonista – e até um pouco deslocada na história, como se quisessem incluir um interesse amoroso a fórceps. Outra coisa que desaponta é a tal apresentação que ele vai fazer para o Rei da Arábia, em um holograma – razão do título original, “A Hologram for a King”. Do jeito que é mostrada, não causa o menor fascínio. Principalmente porque é criada grande expectativa para sua exibição. Mesmo assim, “Negócio das Arábias” é um filme que envolve, apesar de frágil, sem que o espectador perceba.
A Lenda de Tarzan acerta mais que erra na renovação do personagem clássico
Criado em 1912 por Edgar Rice Burroughs, Tarzan é um personagem representante de uma mentalidade da virada do século 19 para o 20, que opunha selvageria e civilização a partir dos conceitos europeus em voga na época. Assim, o personagem atraía fascínio pela mistura destas oposições: o “selvagem” Tarzan e a “civilizada” Jane, seu grande amor e possibilidade de fazê-lo reencontrar a nobreza de sua família. Mais do que isso, Tarzan reinava sobre os animais e africanos enquanto nobre inglês branco. Mesmo criado por macacos e desconhecendo sua origem, o personagem parecia ter uma genética superior, algo que o faria naturalmente especial no ambiente da selva fabular que Burroughs imaginou sem nunca ter ido à África. Ao tentar atualizar o personagem, “A Lenda de Tarzan” toma certos cuidados para não cair nos estereótipos do início do século passado, mas não consegue fugir daquilo que é o cerne do personagem: é o homem branco que vai liderar e salvar os africanos de um destino cruel. Se por esse lado não há novidades, por outro o filme insere um personagem negro – e americano (Samuel L. Jackson, de “Os Vingadores”) – para ser o braço direito do protagonista e tenta fazer de Jane (Margot Robbie, de “Esquadrão Suicida”) uma mocinha que não esteja em perigo. São propostas importantes para deixar um personagem anacrônico em consonância com os novos tempos, mas o resultado é desequilibrado: o personagem de Jackson nunca está à altura dos feitos do protagonista e Jane, apesar de se mostrar forte e decidida, acaba sendo sempre o par romântico que precisa ser salvo pelo herói. Mas apesar das ressalvas o filme diverte e funciona bem em se propor como uma espécie de continuação para a história que todas já conhecem. Quando encontramos Tarzan pela primeira vez, ele não é o senhor das selvas, mas o lorde John Clayton, já “civilizado”, de volta ao castelo de sua família. Uma armadilha arquitetada pelo explorador de diamantes Leon Rom (Christoph Waltz, de “Django Livre”, fazendo o mesmo vilão divertido de sempre) leva o personagem-título de volta à África e ao seu reencontro com sua verdadeira natureza. David Yates usa paletas sombrias para contar a história, mas não se decide entre o realismo e o fantasioso. Parece haver dois filmes em “A Lenda de Tarzan”, um primeiro e mais interessante que se propõe a ser um épico sóbrio (dentro do possível, claro) sobre as dualidades de um homem criado em meio aos animais; e um segundo que mais lembra um filme de super-herói da Marvel. Algumas piadinhas e frases de efeito também não funcionam e parecem deslocadas neste filme, que pende para lados diferentes de acordo com o que roteiro precisa. Trazendo um clímax que abusa de efeitos digitais sem empolgar muito, “A Lenda de Tarzan” dá um novo sopro de vida ao personagem e consegue torná-lo interessante para as novas gerações, sem fazê-lo perder suas características essenciais. Mas enquanto fóssil perdido do tempo, representante de uma era passada e ultrapassada, Tarzan, o personagem, é mais interessante do que seu próprio filme. E a interpretação acima da média de Alexander Skarsgard (da série “True Blood”) ajuda muito neste sentido, trazendo imponência e complexidade para que acreditemos nesta figura deslocada no tempo e espaço. “A Lenda de Tarzan” está longe de ser perfeito, mas consegue em grande medida cumprir sua promessa de aventura como as matinês de antigamente.
Esquadrão Suicida não entrega o que promete
Após o banho de água fria provocado por “Batman vs Superman: A Origem da Justiça”, “Esquadrão Suicida” prometia um tom diferente para o universo que a DC está construindo nos cinemas, uma espécie de resposta à concorrência já consolidada da Marvel. Mas, lamentavelmente, a tentativa não rendeu o esperado na tela. Espécie de sequência direta dos eventos trágicos envolvendo a figura do Superman (Henry Cavill), “Esquadrão Suicida” inicia com a exposição dos planos da implacável Amanda Waller (Viola Davis), oficial da CIA que recomenda ao presidente a escalação de um time composto pelos maiores criminosos do país para combater uma entidade que pretende cobrir o mundo com trevas e converter humanos em soldados monstruosos. O time? Floyd Lawton (Will Smith), conhecido como Pistoleiro, um matador de aluguel com uma filha de 11 anos; Harleen Quinzel (Margot Robbie), que adotou o nome Arlequina ao se tornar a companheira de Coringa (Jared Leto); George Harkness (Jai Courtney), o Capitão Bumerangue, Waylon Jones (Adewale Akinnuoye-Agbaje), o Crocodilo; Chato Santana (Jay Hernandez), apelidado de El Diablo e com habilidades em incendiar tudo ao redor; e Christopher Weiss (Adam Beach), também chamado de Amarra. Ainda que Weller tenha implantado um chip capaz de causar a morte instantânea com o comando em um aplicativo sob o seu controle, é necessário trazer a bordo um líder capaz de supervisionar o temperamento de figuras que podem a qualquer momento trair o acordo de salvar o dia por uma redução de pena. Para isso, é escalado o soldado Rick Flag (Joel Kinnaman), namorado da arqueóloga June Moone (Cara Delevingne), possuída por um espírito milenar que cumpre um papel importante na ação. Outra adição que possui um bom caráter é Katana (Karen Fukuhara), japonesa extremamente habilidosa com espadas. Com a leva inesgotável de mutantes e justiceiros zelando pela sobrevivência da humanidade, “Esquadrão Suicida” trazia como possibilidade uma visão ainda pouco explorada nas adaptações de quadrinhos, na qual a moralidade surge distorcida, quando a prática do bem não parece uma alternativa clara para reverter a arquitetura do caos. Algo recentemente testado com sucesso em “Deadpool”, que tinha um anti-herói como protagonista. O passo de “Esquadrão Suicida” sugeria ser o mais largo, com um material promocional regado na piração e com um diretor, David Ayer, que entende a linguagem dos personagens marginalizados, das escórias da sociedade, como já demonstrou em seu roteiros de “Dia de Treinamento” (2001), “Tempos de Violência” (2005) e “Marcados para Morrer” (2012). Porém, o peso da insanidade parece ter recaído somente sobre os ombros de Margot Robbie, que supera todas as expectativas como uma delinquente que desejava apenas ter uma vida de comercial de margarina com o seu amado de sorriso nefasto – o Coringa, aliás, deve ter ficado com a maior parte de sua participação perdida na ilha de edição, ao julgar por suas intervenções de caráter quase figurativo. Além de uma encenação branda da violência, “Esquadrão Suicida” não é competente nem ao introduzir os seus personagens para o público. Confuso, o primeiro ato acredita que uma playlist de rock e cartilhas ininteligíveis dão conta de carregar todo o histórico de cada um. Igualmente mal resolvido é o desejo da Warner de fazer um “Os Vingadores” dos vilões, forçando um sentimento de amizade e companheirismo que definitivamente inexiste entre os personagens. Ao final, o efeito provocado por “Esquadrão Suicida” é como uma promessa de embriaguez épica, que só no primeiro gole revela ser patrocinada por cerveja sem álcool.
De Longe Te Observo confirma bom momento do cinema latino-americano
O venezuelano “De Longe Te Observo”, primeiro longa de Lorenzo Vigas, foi o vencedor do Leão de Ouro no Festival de Veneza e chegou a ser exibido na 39ª. Mostra Internacional de Cinema de São Paulo com seu título original, “Desde Allá”. O filme navega num universo em que a homossexualidade como desejo traz à tona uma série de questões e constrói uma narrativa complexa, muito forte, que surpreende. Tem uma estrutura consistente, que inclui a realidade social dos meninos de rua, mexe e brinca com preconceitos estabelecidos. E envereda por uma trama que tem elementos policiais e suspense. Faz tudo isso de forma bem concatenada. A narrativa se centra no relacionamento entre Armando (Alfredo Castro), um homem que paga para que jovens fiquem nus para ele se masturbar sem tocá-los, e Elder (Luís Silva), adolescente em situação de rua, que lidera uma gangue juvenil. A relação se dá por meio do dinheiro, mas se estabelece de forma complicada, trazendo muitos elementos. O dinheiro aparece como roubo, meio de agressão, chantagem, afeto ou solidariedade. Traz mistérios que envolvem o passado de Armando e o pai dele, que entrarão nessa relação, vinculando dois personagens que, a rigor, só estariam em contato em função de interesses imediatos e fugazes. Assim como o personagem Armando, a câmera observa as situações, passeia pela vida deles e de seus encontros, dá tempo para que entendamos o contexto e as variáveis que os envolvem, mantendo um clima seco, duro e algo misterioso. O que está para ser revelado nunca sabemos muito bem o que é, do que se trata realmente. A trama conta especialmente com os dois protagonistas em ótima atuação, sutil e contida, que ajudam a prender a nossa atenção para o que vai se desenrolar em camadas sucessivas. A história original que serviu de base para o roteiro do diretor é do escritor e roteirista mexicano Guillermo Arriaga, de trabalhos como “Babel” e “Amores Brutos”. O filme é coproduzido pelo México. E resultada num belo trabalho do cinema venezuelano, que confirma a observação de um grande momento criativo para a sétima arte na América Latina.
O Bom Gigante Amigo é o filme mais tedioso de Steven Spielberg
“O Bom Gigante Amigo” é o mais tedioso filme de Steven Spielberg desde “Amistad” (1997). Aliás, consegue ser ainda mais chato para quem não curte o gênero fantasia, embora tenha um viés de filme infantil antigo e inocente da Velha Hollywood. É bem a cara da Disney, nesse sentido, uma empresa que deseja que o mundo tivesse parado na primeira metade dos anos 1960. Já fazia algum tempo que Spielberg não dedicava um filme com atores às crianças. O último foi o também horrível “Hook – A Volta do Capitão Gancho” (1991), desconsiderando a animação “As Aventuras de Tintim” (2011). “O Bom Gigante Amigo” até tenta ser dinâmico, mas acaba não conseguindo imprimir muito ritmo à sua história, pois após o gigante misterioso (Mark Rylance, também conhecido como o sujeito que tirou o Oscar de Sylvester Stallone em 2016) raptar uma garotinha (a estreante Ruby Barnhill) de um orfanato e levá-la para a terra dos gigantes, pouca coisa interessante acontece. Ao contrário do que a garotinha esperta e insone pensa, o gigante não quer devorá-la, mas a prende com medo de que ela revele sua existência, o que se tornaria um problema para ele e os demais gigantes da ilha. Aos poucos, vamos conhecendo os outros gigantes, os malvadões, que gostam de aplicar bullying no gigante menor, e é curioso como o filme trabalha com essas relações de tamanho. O gigante, que parecia enorme, é considerado pequeno para os gigantes valentões que gostam de comer seres humanos. A história é basicamente sobre a tentativa do bom gigante de esconder a garota dos demais e apresentá-la ao seu mundo, já que ele é também uma espécie de mago dos sonhos. É possível que o filme consiga maior efeito sobre as crianças, ao criar uma imagem de encantamento que para a maioria dos adultos não funciona. Spielberg já conseguiu deixar pessoas de todas as idades completamente maravilhadas ao longo de sua carreira, atingindo o auge do encantamento na apresentação das primeiras imagens dos dinossauros em “Jurassic Park” (1993). Mas agora que o público já está anestesiado de tantos filmes repletos de efeitos especiais, o que ele mostra em “O Bom Gigante Amigo” acaba sendo mais do mesmo. Além disso, o roteiro de Melissa Mathison (“E.T. – O Extraterrestre”), adaptado do livro homônimo de Road Dahl (“A Fantástica Fábrica de Chocolate”), parece esticar demais um fiapo de história. Até a garota e o gigante arranjarem uma maneira de se livrarem dos seus inimigos, a trama é capaz de deixar qualquer um impaciente. O final até dá uma melhorada na narrativa, mas tudo poderia ser resumido a uma hora e meia de projeção. O problema é que Spielberg gosta de longas durações. E narrativas esticadas. Talvez devesse perceber que o tempo de fazer aventuras infantis já passou para ele.
Ação eletrizante de Jason Bourne começa a ficar repetitiva
“Jason Bourne”, título preguiçoso da quarta aventura do agente interpretado por Matt Damon – aquele com Jeremy Renner não conta -, é um filme para deleite dos fãs da franquia, que resgata as lutas cruas, secas, suadas, assim como as perseguições empolgantes que deixam qualquer filme da série “Velozes e Furiosos” no chinelo – um mérito da montagem histérica de Christopher Rouse, premiada com o Oscar por “O Ultimato Bourne” (2007). Como pontos positivos, também contam o olhar documentarista de Paul Greengrass de volta à direção, e Damon retomando seu papel de protagonista, porque não dá para engolir qualquer outro ator num filme de Jason Bourne. Adicionam-se à equação novos intérpretes de peso e 100% competentes – destaque para Tommy Lee Jones (“Homens de Preto”) e, principalmente, a gloriosa Alicia Vikander (“A Garota Dinamarquesa”), que quase transformam o herói da franquia em coadjuvante de seu próprio filme. E, claro, Bourne falando pouco, fazendo cara de “não me toque”, ora dando porrada, ora desaparecendo e andando/pilotando para lá e para cá. Tem até a trilha habitual e nervosa de John Powell (dividida aqui com David Buckley) e a musiquinha tradicional do Moby nos créditos finais. Ou seja, tudo em seu devido lugar. Faltou apenas um roteiro que justificasse tudo isso, uma trama tão ágil e eletrizante quanto as cenas de ação, capaz de transformar o filme num recomeço para a franquia, e não apenas uma versão similar do que já foi visto antes. A trama se resume a uma correria, porque é um fiapo de história, como aconteceu em “O Ultimato Bourne”, mas ali o que importava era o protagonista concluir a jornada recuperando de vez sua memória. O final da trilogia original, com Bourne nadando, sugeria uma vida em fuga, jamais em paz. Pois voltar para o fogo cruzado apenas conduz o protagonista para um ciclo infinito de mesmice. Só não dá para lamentar a ausência de Tony Gilroy como roteirista. Ele pode ter assinado a ex-trilogia, mas sem filtro de Greengrass e Damon mostrou do que realmente era capaz no infame “O Legado Bourne” (2012). O texto do novo filme foi construído pelo próprio Greengrass e o exímio montador Christopher Rouse com carinho pela série e uma preocupação sobre segurança e privacidade das informações numa era pós-Edward Snowden. Mesmo assim, o script é repleto de coincidências forçadas, reviravoltas pouco criativas e uma desnecessária intenção de emprestar ao retorno de Bourne uma motivação mais pessoal que a premissa contada em “A Identidade Bourne” (2002). Enfim, são clichês capazes de fazer a série continuar para sempre, ainda que esse novo filme já repita algumas ideias que deram certo nos filmes anteriores. Pelo menos serve para matar a saudade, após quase uma década sem ver o personagem. Mas uma provável continuação terá a obrigação de ousar mais.
Mãe Só Há Uma materializa nova provocação de Anna Muylaert
É natural que se busque uma associação entre os dois filmes mais recentes de Anna Muylaert, “Que Horas Ela Volta?” (2015) e o novo “Mãe Só Há Uma”. Afinal, ambos tratam do tema da maternidade e da questão da identidade. Mas se havia um pouco de caricatura cômica no drama de “Que Horas Ela Volta?”, desta vez o tom é abertamente dramático, tendo como ponto de partida uma história verídica de criança roubada. O filme acompanha Pierre (o estreante Naomi Nero, sobrinho de Alexandre Nero), um rapaz que costumava ter uma vida tranquila com a mãe (Daniela Nefussi, de “É Proibido Fumar”) e sua irmã pequena (Lais Dias). Até o dia em que descobre ter sido roubado na maternidade, vê sua mãe ser presa, descobre que tem outro nome e precisa se adaptar a um novo lar com seus pais biológicos, vividos por Matheus Nachtergaele (“Trinta”) e novamente por Nefussi, numa estratégia de casting que ajuda a acentuar a confusão mental do rapaz – bem como enfatizar o próprio título “Mãe Só Há Uma”. Interessante o modo como Muyalert constrói sua narrativa, com elipses que fazem a história de convivência de Pierre e sua nova família adquirir duração indeterminada, passando a impressão de abranger semanas no espaço de enxutos 82 minutos de projeção. Aliás, a edição é tão acertada que “Mãe Só Há Uma” é daqueles filmes que não exaurem o espectador, terminando no momento certo. Também muito importante é a construção do personagem Pierre/Felipe. Seu mundo vira de cabeça pra baixo justo quando ele está no processo de descobrir sua identidade sexual, que a trama faz questão de não simplificar. Desde o começo, ele é mostrado como um rapaz que gosta de usar calcinhas e maquiagem, mas que não deixa de transar com garotas por causa disso. Ele até faz muito sucesso com elas. Uma das cenas mais interessantes acontece quando ele vai provar uma roupa com seus pais biológicos, que querem moldá-lo à maneira deles. Em determinado momento, ele fala: “é só uma roupa!”, ao procurar fazê-los entender a bobagem que é discutir sobre aquilo. O que pode incomodar um pouco os espectadores é o modo como Muylaert, mais uma vez, trata alguns personagens quase como caricaturas. Desta vez, são os pais biológicos de Pierre, que lembram um pouco os pais de Fabinho em “Que Horas Ela Volta?” . Ainda assim, esse tipo de representação pode ser encarado como uma provocação da diretora, diante do modelo tradicional da família brasileira, numa continuação do que havia sido visto em seu trabalho anterior. O que importa é que estamos diante de mais uma obra sólida e consistente de uma cineasta que se mostra muito acima da média da atual cinematografia nacional.
Entre Idas e Vindas coloca uma simpática comédia romântica na estrada
Quando “Alemão” (2014), o maior sucesso comercial de José Eduardo Belmonte, chegou aos cinemas, o diretor já estava filmando “Entre Idas e Vindas”, que na época tinha um outro nome menos genérico. Em comum, ambos os filmes se aproximam mais do grande público que a maioria dos trabalhos mais autorais do cineasta. A leveza e algumas escolhas frustrantes da trama de “Entre Idas e Vindas” podem até incomodar os fãs de suas obras mais complexas, como “A Concepção” (2005), “Se Nada Mais Der Certo” (2008) e “O Gorila” (2012), mas é difícil não simpatizar com a história. Claro que poderia ser um filme melhor se concentrasse seus esforços apenas na trajetória das quatro mulheres que trabalham com telemarketing, sem forçar a mão no relacionamento amoroso entre a personagem de Ingrid Guimarães (“Pernas pro Ar”) e Fábio Assunção (“País do Desejo”), que aparece em cena com seu filho João Assunção. É justamente aí que reside o principal problema do filme: querer ser quase uma comédia romântica hollywoodiana. Ao menos, o diretor brasiliense tem bom gosto, sabe filmar, e há um trio de mulheres de tirar o chapéu no motor home que pega a estrada apenas para aproximar o casal central: as amigas da protagonista, vividas por Alice Braga (série “Queen of the South”), Rosanne Mulholland (“Carrossel 2: O Sumiço de Maria Joaquina”) e Caroline Abras (“Sangue Azul”). Além do mais, se a intenção é mesmo copiar o estilo do gênero americano, até que Belmonte não fez feio. Como se trata de um filme sobre personagens com dores de relacionamentos, o melhor da trama está justamente nas cenas em que os problemas são confrontados, como nos belos momentos entre pai e filho (o filho quer saber mais de sua mãe, uma mulher que os abandonou há seis anos, mas que o pai não consegue esquecer e por isso vive na fossa). Neste quesito, a melhor cena é a da roda de apostas sobre quem tem a história mais triste. É quando o público é convidado a se solidarizar com cada um dos personagens – embora seja muito difícil comprar a história de Rosanne. De todo modo, é neste momento que o filme se engrandece. A química dos atores funciona muito bem, e por mais que Caroline Abras seja mal aproveitada, cada vez que ela aparece na tela é como se um dia nublado virasse um dia de sol. E não só porque ela é muito bonita, mas por conseguir passar uma sensação radiante. Algumas cenas na praia, filmadas com outras lentes, também são belas e ajudam a tirar o filme do ordinário. No entanto, mesmo com tanta beleza natural (das meninas, do garoto inteligente que se apaixona por uma delas, da natureza, das locações etc.), o romance do casal principal continua sendo a pedra no meio do caminho, fazendo balançar um road movie que tinha potencial para passar mais longe do lugar comum.
Um Dia Perfeito denuncia a burocracia que aumenta o absurdo da guerra
“Um Dia Perfeito” é um filme espanhol, falado em inglês e nas línguas locais do conflito que aborda, baseado no romance “Dejarse Llover”, de Paula Farias, escritora, médica humanitária e ex-presidente da ONG Médicos Sem Fronteiras. O argumento enfoca agentes de resgate humanitário, atuando na guerra dos Bálcãs, em 1995. Esses agentes têm por missão salvar vidas e resolver questões sensíveis em meio aos conflitos da guerra. São pessoas dedicadas, persistentes, que têm de enfrentar burocracias paralisantes, assistir à inoperância da ONU e manter o humor, em meio a circunstâncias trágicas. Como diz o diretor Fernando León de Aranoa, “Salvar vidas não é um ato heróico em si. O heroísmo vem da persistência”. O que explica que os personagens retratados no filme sejam figuras absolutamente corriqueiras, mas colocadas num contexto exasperante e que assim se aguentam e sobrevivem de ajudar os outros. No filme, a região conflagrada já está em procedimentos de paz, mas tudo está muito confuso por lá. Um defunto foi arremessado no único poço que abastece uma região, para contaminar a água que serve à população local. Para tirar esse corpo de lá, será preciso obter uma corda, o que pode não ser uma tarefa simples. Há as minas colocadas nas estradas, ao lado de vacas que bloqueiam a passagem. E há, é claro, uma burocracia ilógica e incompreensível. Como é toda burocracia, diga-se de passagem. Um bom assunto para uma comédia ácida, que se vale da ironia e da farsa para revelar, uma vez mais, os absurdos das guerras e dos mecanismos internacionais de controle a elas associados. Um elenco de atores e atrizes de peso consegue dar o tom apropriado a essa história, que é cômica porque também é trágica. Benício Del Toro (“Sicário”) e Tim Robbins (“Laterna Verde”), em ótimos desempenhos, nos colocam no fulcro da questão, olhando para o poço contaminado, levando um menino em busca de uma bola, percebendo que as cordas muitas vezes estão ocupadas pelos enforcados. A atriz ucraniana Olga Kurylenko (“Oblivion”) e a francesa Mélanie Thierry (“O Teorema Zero”) são os destaques femininos. Muito convincentes. O filme foi exibido na Quinzena dos Realizadores, em Cannes 2015, e venceu o Prêmio Goya, o Oscar espanhol, de Melhor Roteiro Adaptado, escrito por Aranoa.
Dois Caras Legais diverte com comédia de detetives à moda antiga
Não é fácil fazer humor no universo do film noir, de forma que o resultado pareça inteligente. Nem Paul Thomas Anderson conseguiu com seu “Vício Inerente” (2015), por mais que haja defensores de seu filme e ele tenha escolhido adaptar uma obra difícil. Shane Black teve mais sorte, ao transpor a atmosfera típica de mistério e materialismo exacerbado para o clima dos filmes policiais dos anos 1970. Mas por mais que referencie os loucos anos 1970 e que lide bem com a questão da decadência de Los Angeles durante o boom da indústria pornográfica, a verdadeira influência de “Dois Caras Legais” são os “buddy films” dos anos 1980, em que dois parceiros com nada em comum precisam trabalhar juntos. O diretor Shane Black, por sinal, começou sua carreira com um roteiro clássico desse subgênero, “Máquina Mortífera” (1987). E a relação entre os personagens daquele filme, detetives durões que se alternavam entre ódio e amor, violência e humor, não é muito diferente da interação de Russell Crowe (“Noé”) e Ryan Gosling (“A Grande Aposta”) na nova produção. Entretanto, apesar de especialista em filmes de “duplas” – veja-se, também, “Beijos e Tiros” (2005) – , o diretor acaba falhando justamente no desenvolvimento da relação de amizade entre os protagonistas, algo que fica só na superfície. Em “Dois Caras Legais”, os astros vivem detetives particulares picaretas, Jackson Healey (Crowe) e Holland March (Gosling), que acabam juntando forças para resolver o mistério do desaparecimento de uma jovem envolvida em uma produção pornográfica. Como é comum em produções inspiradas pela estética noir, toda a investigação leva a caminhos nebulosos, e cada sucesso é fruto de pura sorte. Ou, no caso, da ajuda da filha de March, vivida pela garota-revelação Angourie Rice. Ela rouba as cenas sempre que aparece. É dessas jovens atrizes que a gente torce para que tenha uma carreira longa e bem-sucedida no cinema (e já foi confirmada no novo Homem-Aranha). O resultado é “cool” o suficiente para agradar um público mais exigente e bastante divertido para arrancar risadas do espectador menos esforçado, com uma trama meio labiríntica, senso de humor relaxado e várias cenas movimentadas muito bem engendradas, o que faz com que “Dois Caras Legais” acabe se destacando na produção atual de Hollywood, carente de bons filmes policiais. Como Richard Donner, o diretor de “Máquina Mortífera”, parece ter se aposentado, Shane Black se mostra, a cada filme (inclusive em “Homem de Ferro 3”), bem disposto a se tornar o seu sucessor. Para o bem e para o mal.












