Canção da Volta reflete fascínio e frustração com suicidas
Os índices de suicídios têm aumentado de modo tão assustador nos últimos anos que o fascínio pela história de pessoas que vão ao extremo de tirar a vida pode despertar inevitável curiosidade. Em seu primeiro longa de ficção, o paulistano Gustavo Rosa de Moura parte de um registro privado sobre uma personagem que sobreviveu para carregar o peso de ter, em um momento de desespero, tentado provocar a própria morte, algo forte o suficiente para manter, ao menos a princípio, o interesse por “Canção da Volta”. Sem uma experiência expressiva como intérprete, Marina Person, que é esposa de Gustavo, tem a difícil missão de incorporar Júlia, na maior parte do tempo em dissintonia com um mundo que outrora tentou abandonar. No entanto, a perspectiva que acompanhamos é a de Eduardo (João Miguel, de “Xingu”), o marido que lida praticamente só com as responsabilidades domésticas após cumprir a rotina profissional. Sem verbalizar as motivações de Júlia, “Canção da Volta” prefere se ater a um presente em que o incômodo de ter algum familiar ou conhecido indagando sobre a motivação de seu desejo suicida se transformou em uma questão diária. Há também a dinâmica de um casal que não funciona mais e a presença de um filho, Lucas (Francisco Miguez, o protagonista de “As Melhores Coisas do Mundo”), que agora convive com a impressão de não ter sido priorizado durante a escolha radical de sua mãe. Com mais sugestões que resoluções, o drama não progride, especialmente pela direção não oferecer um tratamento visual que seja capaz de representar uma atmosfera de sufoco físico e emocional. Além do mais, a adoção de uma estrutura quase fragmentada mais dispersa do que garante o envolvimento com a história, esta praticamente jogada ao deus-dará em um terceiro ato com pistas mal ajambradas (as notificações no WhatsApp, a caixa misteriosa) e um encerramento no mínimo descuidado.
Cinema Novo faz ensaio-poesia sobre o movimento mais famoso do cinema brasileiro
A opção de Eryk Rocha de fazer de “Cinema Novo” um documentário em formato de ensaio-poesia, em vez de um filme mais convencional e informativo, é compreensível, inclusive dentro da curta duração – cerca de uma hora e meia. Para se contar a história do Cinema Novo em um projeto audiovisual, o ideal seria mesmo uma minissérie para a televisão com mais tempo disponível. Mas mesmo aceitando a proposta, a falta de identificação nas imagens utilizadas – qual é tal filme em tal cena mostrada – não deixa de ser problemática. O resultado privilegia a edição e a força das imagens de grandes obras – algumas pouco conhecidas do grande público – , mas deve sua existência principalmente aos depoimentos de arquivo da época (anos 1960 e 1970), de cineastas (Nelson Pereira dos Santos, Cacá Diegues, Joaquim Pedro de Andrade, Glauber Rocha, Leon Hirszman, Arnaldo Jabor, Ruy Guerra e vários outros) que comentam direto do túnel do tempo. Não há depoimentos novos, o que torna o trabalho do filho de Glauber Rocha diferente e interessante. Um dos problemas do filme, premiado no Festival de Cannes deste ano, está no fato de que, se exibido para uma plateia que desconhece totalmente o movimento original, pode até despertar desinteresse. Mas, para quem conhece um pouco, permite rever sequências lindas, como as de “A Falecida”, “Vidas Secas”, “Rio, Zona Norte”, “Terra em Transe”, “Macunaíma”, além de filmes que não são necessariamente do Cinema Novo, mas pioneiros do próprio cinema brasileiro, como “Limite”, de Mário Peixoto, e o trabalho de Humberto Mauro. O que importa é que Eryk, enquanto deixa o público intrigado com certas cenas de filmes menos conhecidos, não deixa dúvidas a respeito da grandeza de nosso cinema. Ele pontua tudo de forma mais ou menos organizada em blocos temáticos, e procura emular o clima de tensão que surge a partir dos eventos políticos ocorridos no Brasil durante o Golpe militar, através de um som e de uma montagem inteligentes. Ainda assim, acaba parecendo estranho quando, no final, entre os créditos de diversos cineastas envolvidos com o Cinema Novo, surge o nome de Walter Hugo Khouri, que não era muito bem-visto pelo movimento e considerado basicamente alienado, distante dos interesses sociais e de natureza revolucionária de Glauber, Diegues e cia. De todo modo, há tanta gente boa envolvida nesse que é o maior movimento cinematográfico da América Latina, que a vontade de ver e rever os filmes apresentados é grande. A admiração que já temos por cineastas como Leon Hirszman e Joaquim Pedro de Andrade, por exemplo, só aumentam, diante de seus depoimentos e trechos de filmes. Há também algo que faz com que “Cinema Novo” dialogue muito bem com o momento atual em que estamos vivendo, tanto do ponto de vista político, como no que se refere à baixa audiência de público para o cinema brasileiro (que importa). Uma cena em particular mostra Diegues e Jabor debatendo sobre a dificuldade de atingir o grande público, que até hoje continua resistente ao tipo de filmes que eles faziam. Mas, ao ver, por exemplo, um trecho de “Terra em Transe”, clássico do pai de Eryck, com dois personagens recitando suas falas de forma poética e teatral, percebe-se o porquê de esses filmes não lotarem salas. O cinema brasileiro dessa época só chegaria nas massas na década de 1970, com o advento das pornochanchadas. Mas isso já é outra história e de outra turma, que seria até bem mais divertida de ser vista em um filme-ensaio desse tipo.
Doutor Estranho conjura visual surpreendente em mais um acerto da Marvel
Quem era leitor de quadrinhos de super-heróis até a década de 1990 jamais imaginaria que um dia seus heróis favoritos pudessem se materializariam em grandes produções cinematográficas que fizessem justiça às publicações. Mas, graças aos avanços no uso da computação gráfica, isto agora é corriqueiro. As ferramentas estão à mão. E dinheiro não falta, já que o retorno tem sido muito positivo, a ponto de os filmes de super-heróis se tornarem os grandes blockbusters da atualidade. Ninguém poderia imaginar, há 20 anos, que o sucesso do gênero enchesse a Marvel de coragem para emplacar filmes sobre heróis menos conhecidos do grande público, como “Guardiões da Galáxia” (2014) e “Homem-Formiga” (2015). Muito menos poderia prever uma adaptação do Mago Supremo dos quadrinhos. E dirigido por um especialista em filmes de horror, Scott Derrickson – que nem é dos melhores do gênero, embora tenha alguns bons títulos no currículo. Pois “Doutor Estranho” foi realmente feito. E com um número de acertos bem significativos, que elevam a produção acima de outros filmes de super-heróis, fugindo de lugares-comuns que começam a habitar o gênero. Desde os primeiros trailers divulgados, já se sabia que a abordagem seria diferente, com um tratamento visual mais caprichado, especialmente no uso da tecnologia 3D – e agora também do IMAX – , com a intenção de capturar o clima psicodélico das primeiras histórias do personagem, desenhadas pelo lendário Steve Ditko. E os meninos de antigamente podem arregalar bem os olhos e chorar, porque o filme consegue realizar seu objetivo de filmar o infilmável: a lisergia dos quadrinhos de Ditko. Mas o encantamento causado por “Doutor Estranho” não se resume ao visual. O elenco é um luxo, a começar por Benedict Cumberbatch como Stephen Strange, e sem esquecer Rachel McAdams como a apaixonante médica e interesse amoroso de Strange, a Dra. Christine Palmer, Tilda Swinton como a Anciã, a mulher que apresenta a Strange um novo mundo, Chiwetel Ejiofor como o mago Mordo, Benedict Wong como o Wong, e Mads Mikkelsen como o principal vilão do filme – embora seja também o seu maior problema. É que os embates entre Estranho e o personagem de Mikkelsen, por mais que possam ser apreciados pelos efeitos de desconstrução da realidade, acabam tornando a história um pouco aborrecida em alguns momentos. Afinal, quem não queria mais um pouco de plantão médico com a Rachel McAdams, de tão adorável que é sua personagem? E não é fantástica a Anciã de Tilda Swinton, com suas palavras de sabedoria tão bem construídas e tão pouco usuais em filmes desse tipo? O que dizer da cena que compartilha com Estranho no alto de um prédio, enquanto o corpo dela está sendo operado? Um grande momento do filme, sem dúvida. Assim como é também um grande momento o encontro pessoal do herói com um dos supervilões mais tenebrosos do Universo Marvel, Dormammu, um ser místico que vive nas profundezas de uma dimensão sombria. A cena do confronto com Dormammu é outro ponto alto. Aliás, é interessante notar como “Doutor Estranho” consegue ser ao mesmo tempo compacto e dinâmico, sem parecer apressado em sua condução narrativa – diferente do que se percebe nos filmes dos Vingadores, por exemplo. Isso se deve, em parte, por ser uma história de um herói individual, mas mesmo assim se deve dar o devido crédito ao realizador, aos roteiristas, ao montador. Como é natural nos filmes da Marvel, o humor está presente, muitas vezes até descaracterizando o personagem, que costuma ser bem mais sério nos quadrinhos – para conservar sua aura de mistério. No cinema, na falta de outro personagem que servisse de alívio cômico, o próprio Estranho acabou cumprindo a função. Mas isso não tira seu mérito, até porque algumas cenas de humor funcionam muito bem, em especial as que envolvem Wong, que aqui ainda aparece como o guardião da biblioteca de livros místicos. E nem é preciso dizer que a construção gráfica do herói, com direito a manto de levitação e ao Olho de Agamotto, foi feita no capricho. Que sina da Marvel: acertou mais uma vez no cinema, inserindo agora um personagem que lida com magia para integrar seu universo e participar dos próximos filmes dos Vingadores. Já foi antecipado que o Doutor Estranho voltará para uma breve aparição em “Thor: Ragnarok”, previsto para novembro do próximo ano. Pelo visto, os super-heróis da Marvel continuarão aumentando no cinema até refletir sua superpopulação nos quadrinhos. E isto não é um sonho geek, é o futuro/presente de Hollywood.
Diretor de A Queda volta a mirar Adolf Hitler em 13 Minutos
O alemão Oliver Hirschbiegel é mais um caso de cineasta estrangeiro que fracassou em seu ingresso em Hollywood após produzir um filme que causou impacto mundial. Gavin Hood (“Infância Roubada”), Florian Henckel von Donnersmarck (“A Vida dos Outros”) e Susanne Bier (“Em Um Mundo Melhor“) são alguns de seus colegas nesta sina. Após os sucessos de “A Experiência” (2001) e de sua obra-prima “A Queda: As Últimas Horas de Hitler” (2004), Hirschbiegel se meteu em três enrascadas em língua inglesa. Além de ter perdido o controle criativo de “Invasores” (2007), ainda teve de engolir o seu “Rastros de Justiça” (2009) sendo lançado na TV, quando a intenção original era uma estreia nos cinemas, e todas as vaias direcionadas ao seu equivocado “Diana” (2013). Exausto, o realizador tenta fazer as pazes com a melhor versão de si mesmo em “13 Minutos”, drama que, assim como “A Queda”, é ambientado na 2ª Guerra Mundial. E a história é fascinante. Trata-se do resgate de Georg Elser, figura heroica pouco lembrada pela história, que teria arquitetado um plano para matar Adolf Hitler. Se não fossem os 13 minutos que marcaram a saída do Fühler de uma reunião com a detonação de uma bomba no local, Elser teria mudado radicalmente o curso do mundo. O roteiro da dupla Fred Breinersdorfer e Léonie-Claire Breinersdorfer deixa claro já em seu prólogo que o plano resultou mal-sucedido, dando espaço para compreender como Elser (interpretado pelo ótimo Christian Friedel, de “A Fita Branca”) chegou ao ponto de protagonizar sozinho uma ação tão arriscada. Em meio a torturas, omissões, ameaças e golpes, o seu passado é encenado. “13 Minutos” tem um primeiro ato bem efetivo, sendo ágil ao ilustrar certa opulência na adoração a um ditador visualizado somente por alguns segundos à distância, em contraste com a vulnerabilidade de Elser, um homem sem qualquer traço de bravura. Infelizmente, os desdobramentos vão perdendo fôlego na medida em que o romance de Elser com Elsa (Katharina Schüttler) ganha uma importância maior, não ornando muito bem com a iniciativa que notabilizou o biografado. Ao menos, é uma possibilidade de ver um exemplo da resistência alemã ao nazismo, que como cinema é bem superior a “Operação Valquíria” (2008).
Estranhos no Paraíso permanece marcante após mais de 30 anos
“Estranhos no Paraíso”, que volta aos cinemas em cópia remasterizada, costuma ser louvado como um dos filmes mais importantes do cinema indie dos anos 1980. O longa de 1984 de Jim Jarmusch marcou época com sua fotografia em preto e branco, cenas paradas e fade to blacks mais demorados do que o normal, passando uma sensação de estranheza e charme bem próprios. Mas em meio ao incômodo, causado também pelo modo como se comportam os personagens naquele cenário um tanto desolado, o filme é muito engraçado. Já foi notado que a situação de seus três personagens se compara a de pessoas vivendo em uma espécie de purgatório, de onde não conseguem escapar. Mesmo Eva (a ótima Ezter Balint), a húngara que chega aos Estados Unidos e se depara com aquele lugar imerso em tédio, não consegue evitar a situação, por mais que tente ter uma atitude mais ativa e positiva diante da vida. O problema é que sua energia parece sugada pelos dois rapazes a seu lado, que mais parecem mortos-vivos, cada um à sua maneira. O filme pode ser visto como uma crítica ao american way of life, mas Jarmusch vai além disso. Até em seus filmes mais recentes, o tédio e a falta de sentido na vida afetam personagens tão distintos quanto o cansado mulherengo vivido por Bill Murray em “Flores Partidas” (2005) e os vampiros existencialistas de “Amantes Eternos” (2013). Portanto, o incômodo de estar vivo parece uma tendência no cinema do diretor. Mas há algo que diferencia “Estranhos no Paraíso” dos demais longas do diretor, que é a forma. A forma dá substância ao conteúdo, ao fiapo de trama. O filme é composto de vários planos-sequência, filmados em preto e branco granulado, em que a câmera quase nunca sai do lugar. E na maioria das vezes fica confinada em espaços fechados, com os personagens assistindo televisão, principalmente. Mesmo quando eles vão ao cinema, o ar de cansaço ou de frustração com a vida está presente – a não ser pelo olhar bobão do personagem de Richard Edson, melhor amigo do protagonista Willie (o músico John Lurie). Poderia falar da tendência que retrata os personagens masculinos como idiotas, na velha tradição das obras de John Cassavetes – e assim como Cassavetes foi o rei do cinema indie americano nos anos 1960-70, pode-se dizer o mesmo de Jarmusch nos 1980-90 – , mas será essa a intenção do diretor? Talvez não. É palpável o carinho do cineasta por esses personagens. O ódio ou o desprezo podem surgir do julgamento do espectador, o que é natural. Faz parte da quebra de expectativas que o filme propõe. Uma subversão com mais de 30 anos e que ainda consegue instigar a imaginação.
A Nona Vida de Louis Drax apela ao subconsciente para disfarçar seu déjà vu
Seguindo a linha de filmes sobre o subconsciente, como o incrível “O Labirinto do Fauno” (2006) e o irregular “Sucker Punch – Mundo Surreal” (2011), “A Nona Vida de Louis Drax” volta a abordar o tema das diferentes facetas assumidas pelo trauma. E, por mais que não seja nada inovador, a mistura de gêneros (suspense, fantasia, etc) da proposta consegue manter a atenção do espectador ao longo das reviravoltas da trama, sem nunca fazer delas o centro da sua narrativa. Escrito pelo ator Max Minghella (“A Rede Social”) com base no livro homônimo de Liz Jensen, o roteiro é estruturado em flashbacks e acompanha a história de Louis Drax (o menino Aiden Longworth, incrível), um garoto “propenso a acidentes” que está em coma depois de ter caído de um penhasco. Enquanto a polícia procura pelo pai (Aaron Paul, da série “Breaking Bad”) do menino, suspeito de ter causado o “acidente”, sua mãe (Sarah Gadon, de “Drácula: A História Nunca Contada”) fica ao seu lado no hospital, esperando que ele apresente algum sinal de recuperação. Lá, ela acaba se aproximando do Dr. Pascal (Jamie Dornan, de “Cinquenta Tons de Cinza”), médico encarregado do tratamento e dono de algumas teorias controversas a respeito de pacientes em coma. O Dr. Pascal acredita que pacientes na condição de Louis Drax vivenciam tudo o que acontece ao seu redor, e precisam de um incentivo para sair dessa situação. Essa teoria é corroborada pela narrativa do filme, que coloca o garoto numa realidade alternativa, ou um limbo, com um bizarro monstro marinho. As semelhanças com o já mencionado “O Labirinto do Fauno” são gritantes, mas a grande sacada de Minghella é entender a previsibilidade da trama. O roteirista estreante aborda cada nova informação como um adendo e não como peças de um quebra-cabeças intricado – como é o caso da própria identidade do monstro, revelada sem grande alarde. Não se trata, portanto, de um mistério a ser desvendado, mas sim de entender os motivos que levaram aquilo a acontecer. Igualmente acertada é a concepção visual do diretor Alexandre Aja (“Piranha”), que investe num clima onírico, cheio de nuvens e fumaça (quase como se o mundo real e o mundo dos sonhos fossem iguais), e numa ambientação sombria em determinados momentos – vale lembrar que o cineasta tem experiência com terror, algo visível nas cenas em que o monstro aparece. Mas o mesmo não pode ser dito dos momentos dramáticos. Aja pesa a mão no melodrama, tornando difícil que se acredite nas relações daqueles personagens – apenas a relação do garoto com o pai funciona. Além disso, é preciso comprar a crença do Dr. Pascal a respeito dos pacientes em coma, uma vez que o filme depende dessa ideia. Em determinado instante, há até uma experiência de transferência de pensamentos, que leva a trama para o terreno da ficção científica, colocando em cheque os seus elementos mais dramáticos. Sem a qualidade narrativa da obra de Guillermo del Toro ou os exageros visuais de Zack Snyder (o diretor de “Sucker Punch”), “A Nona Vida de Louis Drax” busca o seu espaço com uma abordagem um pouco diferenciada, que visa disfarçar o fato de não abordar nada que já não tenha sido visto antes – um déjà vu.
Doce Veneno é um filme de outra época, mais divertida e libertária
“Doce Veneno” evoca a época das pornochanchadas brasileiras ou, equivalente, a era de ouro do cinema erótico italiano. Mas também na França das décadas de 1970 e 1980 se produzia filmes mais apelativos, ainda que o cinema do país sempre parecesse tratar a sexualidade com mais naturalidade e menos malícia do que nós e os italianos. A comédia de Jean-François Richet (“Herança de Sangue”) é, na verdade, remake de um desses filmes, que busca fazer graça, mexer um pouco com a libido e também encher os olhos do espectador com a beleza e o viço de sua estrela, a ninfeta que dá em cima do melhor amigo do próprio pai. Para se ter ideia, o cartaz do filme original, traduzido como “Um Momento de Loucura” em 1977, era uma ilustração sacana de Georges Wolinski, o mestre do cartum erótico francês, assassinado no massacre da revista Charlie Hebdo, vítima da repressão e do mau humor contemporâneo. Na trama, dois amigos, Laurent (Vincent Cassel, de “Jason Bourne”) e Antoine (François Cluzet, de “Intocáveis”), levam suas jovens filhas para passar uns dias na praia para se divertirem. Laurent é divorciado e Antoine está passando por uma crise no casamento. O filme já começa com os quatro dentro do carro e a caminho da casa que servirá de local para muitas confusões e intrigas. Mas tudo é visto de maneira bem leve, embora às vezes o diretor pese um pouco a mão, e em ocasiões Cluzet esteja visivelmente exagerado no registro cômico, especialmente quando descobre que um sujeito bem mais velho andou mexendo com sua filha. A cena fica, claramente, parecendo mesmo de um filme de outra década. Curiosamente, a mesma premissa serviu de inspiração para um filme americano bem parecido, “Feitiço do Rio” (1984), que contou com Michael Caine como protagonista e trouxe Demi Moore de topless nas praias cariocas. “Doce Veneno” é um pouco menos apelativo, embora seja generoso em pelo menos uma cena de nudez da lolita estreante, Lola Le Lann. De fato, a cena que os dois protagonistas ficam pela primeira vez juntos, uma cena na praia, é uma das melhores do filme. Mas enquanto a lolita insiste que a vida é pra ser vivida agora, ou algo do tipo, Laurent morre de preocupação, pois estaria se envolvendo com uma menor de idade (17 anos e meio), bem mais nova do que ele e, pior, filha de seu grande amigo. Mas quem espera que o filme prossiga com esse tom de provocação sensual pode até ficar um pouco decepcionado, já que há um interesse maior no modo como essa relação, que nasceu em noite de lua cheia, abalará as estruturas das relações entre amigos e pais e filhas dentro daquele ambiente. Ainda que não se trate de um grande filme, é agradável de ver. E o anacronismo não incomoda. Ao contrário: acaba funcionando a seu favor, por mais que muitos considerem o resultado uma simples bobagem. Enquanto mais bobagens como essa aparecerem nas comédias contemporâneas, mais claro ficará que o cinema de décadas passadas era bem mais divertido e libertário. É como se a culpa que sente o personagem de Cassel tivesse sido incorporada por todas as novas gerações em relação ao prazer.
Ouija – Origem do Mal é muito melhor que o primeiro filme
Quem diria que a continuação de um grande filme como “Invocação do Mal” (2013) resultaria em um filme tão aquém do que se espera de James Wan, e que a continuação de uma obra tão insignificante quanto “Ouija – O Jogo dos Espíritos” (2014) fosse resultar em um trabalho interessante? “Ouija – Origem do Mal” (2016) não é exatamente uma continuação, mas um prólogo, e não é necessário ver o filme anterior para entender qualquer coisa. Felizmente. Trata-se de uma história independente, que tem um parentesco muito maior com outra obra do mesmo diretor, “O Espelho” (2013), um dos mais inventivos filmes de horror desta década. Mike Flanagan, o diretor, é desses nomes que merecem atenção neste atual cenário de poucas novidades no gênero – pelo menos em comparação com a safra de mestres surgidas nas décadas de 1970 e 1980. Flanagan não traz apenas ideias novas, como faz tudo com uma elegância de tirar o chapéu. Pode até ter derrapado um pouco na conclusão do novo filme, mas ainda assim é difícil negar as qualidades da produção. A começar pelos créditos iniciais, que trazem o logo antigo da Universal, como nos anos 1960, época em que se passa a trama, e depois com o título escrito em letras grandes, como se estivéssemos vendo um filme sessentista. A reconstituição de época é apurada, com um trabalho de direção de arte e fotografia que ajuda a tornar narrativa ainda mais atraente, por mais que o enredo possa parecer, em alguns momentos, requentado ou um tanto previsível. Mas na verdade só parece. Embora haja algumas apropriações de cenas do primeiro filme, como a inevitável brincadeira de olhar pela lente do indicador do tabuleiro ouija e ver alguma coisa que provocará medo na plateia, há muitas surpresas ao longo da metragem. Flanagan sabe lidar muito bem com a expectativa, principalmente nos 2/3 iniciais do filme, que são perfeitos em sua condução narrativa e recursos de câmera que funcionam a favor da trama, como a profundidade de campo – na cena em que a garotinha vai buscar, a pedido de um espírito misterioso, uma bolsa cheia de dinheiro para sua mãe. O jogo com o medo do espectador é feito com muita eficiência, mesmo quando o filme sai do território das sutilezas para mostrar a entidade maligna ou uma expressão assustadora no rosto da garotinha de forma mais gráfica. Mas é no modo como a garota consegue ser sinistra apenas sorrindo, que vemos o quanto este prólogo está longe da vulgaridade dos filmes do gênero. E isso é muito bom de constatar. Na trama, uma família trambiqueira, formada por uma mãe (Elizabeth Reaser, da “Saga Crepúsculo”) e duas filhas (a adolescente Annalise Basso, de “O Espelho”, e a menina Lulu Wilson, da série “The Millers”), que vive de aplicar golpes em clientes fingindo se comunicar com os mortos. Através de combinações prévias com as filhas, ela consegue enganar até mesmo as pessoas mais céticas. Mas, como é de se esperar, brincar com os espíritos – que começam a perturbar a família através do tabuleiro ouija – se provará muito perigoso. Talvez um dos problemas de “Ouija – Origem do Mal” seja a explicação da trama, que acaba sendo convencional. O que importa mesmo é a habilidade de Flanagan em extrair momentos de medo e suspense, não somente com sustos, mas por meio da construção dos personagens, fazendo com o que o público se interesse por eles. Junte-se isso à atmosfera de medo e o tratamento visual sofisticado e o resultado é um pequeno grande filme, muito melhor que o anunciado.
Festa da Salsicha serve bobagem com molho de ousadia
Após incentivar ataque de hackers e quase iniciar uma guerra com “A Entrevista” (2014), a Sony ainda assim decidiu investir em um novo trabalho de Seth Rogen, uma animação completamente diferente de tudo já visto no cinema. Apesar de animações adultas, como “Mary & Max” (2009) e “Anomalisa” (2015), virem se destacando em meio aos lançamentos de Hollywood, ainda não é comum a união do humor besteirol e animação, tornando possível, até mesmo, contar nos dedos os últimos filmes com esse tom, como: “South Park: Maior, Melhor e Sem Cortes” (1999) e “Team America” (2004). Em “Festa da Salsicha”, as mentes de Rogen, seu parceiro de sempre Evan Goldberg e de novos agregados apresentam ao público à rotina de alguns produtos de supermercado e como eles se relacionam uns com os outros, além de expressar claramente a devoção pelos humanos, considerados até mesmo como “Deuses”. O enredo ganha força quando a salsicha Frank e a bisnaga Brenda vão atrás de explicações sobre como funciona o tal paraíso, e o que acontece quando os humanos levam os alimentos para casa, embarcando em uma aventura pelos diversos corredores do supermercado, que funcionam como metáforas da sociedade contemporânea. Como esperado, o longa segue o mesmo ritmo dos filmes roteirizados por Seth Rogen e Evan Goldberg, como “A Entrevista” “É o Fim” (2013), “Superbad” (2008) e “Segurando as Pontas” (2007). Entretanto, quem pensa que “Festa da Salsicha” é apenas de um monte de bobagem em 3D está (parcialmente) engado. Afinal, entre as inúmeras piadas de duplo sentido, o filme aborda temas polêmicos e ainda faz uma reflexão muito parecida com as filosofias de Platão. Nem os grandes estúdios de animação, como Disney, Pixar e DreamWorks, são poupados pelas piadas do filme, que consegue fazer referências a cenas importantes de animações e transformá-las em algo longe de fazer algum sentido. É importante ressaltar que os momentos mais marcantes de “Ratatouille” (2007), “Toy Story” (1995) e até mesmo “As Viagens de Gulliver” (2010) nunca mais serão vistos da mesma forma. Seria injusto escrever sobre “Festa da Salsicha” e não comentar sobre a equipe de dublagem. Todo alimento do filme recebe um tratamento especial e único em relação a sua voz – cada uma delas compostas por personalidades como James Franco, Paul Rudd, Jonah Hill, Kristen Wiig, Michael Cera e Edward Norton. No Brasil, a equipe do Porta dos Fundos ficou responsável pela direção de dublagem de grande parte dos personagens e não deixou nenhum palavrão censurado. Contudo, mesmo perdendo um pouco de força na metade do filme, e apresentando um visual de animação relativamente simples, “Festa da Salsicha” é capaz de divertir em proporções absurdas, podendo ser aclamado por sua coragem e inovação. É de extrema importância lembrar que o filme tem a exclusiva função de ser uma sátira. Piadas e comentários de humor negro são constantes nos diálogos, cabendo a cada espectador relevar e rir com as mesmas, ou se irritar entendendo tudo como uma grande ofensa.
O Mestre dos Gênios destaca o pouco incensado trabalho do editor literário
Em cinebiografias voltadas a grandes nomes da literatura, a singularidade de um escritor está sempre atrelada ao seu estilo de vida um tanto conturbado, geralmente encontrando em seus reveses a inspiração para a concepção de um novo livro. No entanto, há um agente intermediário sempre esquecido, aquele que desempenha uma função definitiva para a forma que uma obra literária toma antes de chegar ao público: o editor. A memória pode nos enganar, mas “O Mestre dos Gênios” deve ser o único filme em que um editor tem um nível de importância maior que a de um notável escritor. E esse personagem vem a ser uma figura real: Maxwell Evarts Perkins (Colin Firth), britânico que apostou em nomes como Ernest Hemingway (Dominic West) e F. Scott Fitzgerald (Guy Pearce). Os autores de “Adeus às Armas” e “O Grande Gatsby” seriam escolhas óbvias para assumirem o protagonismo de “O Mestre dos Gênios” ao lado de Maxwell, mas o diretor estreante Michael Grandage (de vasta experiência teatral) preferiu, junto com o roteirista John Logan (dos últimos “007”), se basear em um livro de A. Scott Berg que relata a relação do editor da Scribner com Thomas Wolfe (Jude Law) iniciada em 1929, ano em que entrega a ele centenas de páginas que se transformariam no best-seller “Look Homeward, Angel”. Os biógrafos de ambos afirmam que o convívio foi além do profissional, partindo para uma amizade quase obsessiva. Não se tratava de paixão mútua, mas de admiração por mentes igualmente brilhantes, com Maxwell sabendo exatamente como agir para organizar o tumulto intelectual de Thomas Wolfe. Uma dinâmica na qual “O Mestre dos Gênios” sugere ter quase arruinado o casamento de Maxwell com Louise Perkins (Laura Linney) e de Wolfe com a figurinista Aline Bernstein (Nicole Kidman, em parceria com Grandage continuada em “Photograph 51”, peça apresentada em Londres no ano passado sobre a cientista Rosalind Franklin). Com 43 anos, Jude Law é velho demais para dar vida a um Thomas Wolfe apresentado inicialmente aos 27 anos. Ainda assim, a efervescência que traz ao papel contrabalanceia perfeitamente a discrição a qual Colin Firth se notabilizou ao viver os seus melhores personagens. Essa sintonia, somada ao diferencial de conferir maior importância a alguém sempre eclipsado quando se discute a genialidade de um escritor, favorece o registro de Michael Grandage, que foi sábio ao dar ao seu filme um caráter mais afetuoso e menos deslumbrado.
A Maldição da Floresta explora terror pagão com clima onírico
A safra de filmes de horror contemporâneo lançados no circuito anda tão em fraca que, quando surge algum trabalho que seja ao menos diferente, que fuja do lugar comum, já inspira festa. Este é o caso de “A Maldição da Floresta” (2015), produção que se passa na Irlanda, mas que também conta com dinheiro inglês e americano. A história companha um casal com um filho pequeno, que se muda para uma região rural da Irlanda, próxima a uma floresta que é considerada amaldiçoada e cheia de criaturas malignas, como dizem os moradores. Interessante como florestas continuam servindo de inspiração para o gênero, do melhor filme de horror deste ano, “A Bruxa”, ao pior, “A Bruxa de Blair”. Até o Brasil explorou o tema, com “A Floresta de Jonathas” (2012), de Sergio Andrade. Quanto ao filme em questão, seu mérito consiste em saber esconder as criaturas, até certo ponto, e assim torná-las mais assustadoras, mas também na coragem de explicitá-las quando chega a hora, o que acaba aproximando “A Maldição da Floresta” do tipo de cinema de horror que se fazia nas décadas de 1970 e 80, quando se trabalhava pouco ou quase nada com computação gráfica. A estreia na direção de Corin Hardy é muito bem-vinda, cheia de elementos sobrenaturais que fogem dos estereótipos do terror cristão, predominantes hoje em dia. E este tipo de cinema mais pagão ainda causa estranheza, permitindo que ganhe a aparência de uma espécie de pesadelo filmado. O clima onírico predomina e algumas cenas ficam grudadas na memória, como a tentativa do protagonista de dirigir na estrada, o olho na fechadura, ou a busca desesperada da mãe pelo filho capturado pelas criaturas. São cenas que, ainda que numa obra irregular, acabam demonstrando o talento do diretor. Além de alguns curtas-metragens no currículo, Hardy também fez alguns videoclipes antes de se lançar no cinema. Talvez o mais conhecido deles seja o que ele fez para o Keane, para a canção “Somewhere Only We Know”. Por “A Maldição da Floresta”, ele chegou a ganhar alguns prêmios em festivais de cinema fantástico, como o Screamfest e o Toronto After Dark. E embora passe longe de ser um filme perfeito, pareceu razoável o suficiente para chamar a atenção de Hollywood e dar ao diretor um grande orçamento para seu próximo filme – o amaldiçoado remake de “O Corvo” (1994).
É Fada! faz sucesso com pouco esforço, preconceito e superficialidade
Há alguma coisa muito errada nas comédias feitas para cinema no Brasil. A busca pelo riso certamente não é determinada por uma cartilha com regras definidas, portanto cada um é livre para buscar a sua maneira de fazer rir. Infelizmente, essa liberdade de escolha em vez de estimular os nossos comediantes a buscar o novo, parece dizer pra eles que a comédia é a manifestação artística do menor esforço, a que se conecta com o público com mais facilidade, e por isso não é necessário pesquisar, estudar, investigar nada, uma vez que o “jeito” engraçado basta para fazer rir. Mas não estou dizendo nada de novo. Quem acompanha as comédias produzidas pelo cinema brasileiro nos últimos anos sabe do que estou falando, e relatar isso aqui muda quase nada. “É Fada!” é um dos líderes de bilheteria no Brasil (assim como outras comédias nacionais foram em anos anteriores). No final do ano, o longa vai inchar o número de espectadores que os filmes brasileiros alcançaram em 2016, vai arrecadar um bom dinheiro, e agora eu vou ser o antipático aqui de novo. A roda gira. A trama preguiçosa e banal nos apresenta a Geraldine (Kéfera Buchmann), uma fada que perde as suas asas após levar um peteleco do ex-técnico da seleção brasileira de futebol, Luís Felipe Scolari, durante a semifinal da Copa do Mundo, por dar um conselho mal recebido pelo treinador – sim, é sério, é assim que o filme começa. Para ter as suas asas de volta, ela precisa ajudar Júlia (Klara Castanho), uma adolescente que, recém-chegada numa escola de classe alta, não possui um bom relacionamento com os colegas e ainda convive com os desentendimentos do pai operário com a mãe socialite. Não podemos nos esquecer de que “É Fada!” é dirigido por Cris D’Amato, diretora de outra atrocidade, “S.O.S Mulheres Ao Mar” (2014). A cineasta apresenta um olhar aguçado para realizar obras equivocadas, além, é claro, de um cinema de péssima qualidade. Enquanto o seu filme anterior é um absurdo manifesto machista (disfarçado de empoderamento feminino), este seu novo trabalho possui tantos preconceitos que fica difícil saber por onde começar. O conceito de fada aqui é modificado, e agora este ser mágico é a garota diferentona, danada, que quer zoar, provocar, safada, safadinha e safadona (como ouvimos incessantemente na música dos créditos finais), cheia de falas e gírias da moda, antenada com os memes e gifs mais tops do momento, e que sempre retira do seu ânus os objetos necessários para ajudar a sua cliente. Até aí “tudo bem”, mas o que a diretora e os seus roteiristas não perceberam é o tom terrivelmente preconceituoso, ignorante e equivocado que a personagem Geraldine traz para o filme! A extreme makeover que ela traz para a vida de Júlia é “arrumar” (esse é o verbo utilizado pela personagem) o cabelo da garota através de uma chapinha; encher o seu Instagram e Facebook de fotos em lugares que ela não foi; mentir para impressionar o boy e assim conseguir ficar com ele; fazer ela negar o pai e o amigo pobres para parecer rica e assim impressionar as típicas meninas populares/metidas/arrogantes, ou seja, transformar a garota num ser genérico e superficial cheia de boniteza. Tudo isso tendo como álibi uma frase curta dita no final do filme: “É errando que se encontra o caminho certo”. Sério? Passamos por 80 longos minutos de um filme muito mal realizado, com nada de engraçado, acompanhando uma série de absurdos que a fada induz a garota a fazer, tudo para aprendermos junto com ela que é errando que se aprende? O máximo que podemos aprender é que é errando muito que se faz uma comédia de sucesso de público no Brasil. Esse álibi também não cola pela série de comentários absurdos que a personagem comete quando, por exemplo, diz de maneira pejorativa que o cabelo de um rapaz parece uma samambaia, ou quando diz que é contra falsificação por isso parou de ir à China. E sendo preconceituoso se aprende o quê? Mas quem me dera que os defeitos do filme estivessem “apenas” aí. D’Amato tem a sutileza da pata de um elefante para estabelecer os conflitos do filme, que por sinal abusam de clichês. A escola na qual a garota estuda foi tirada de algum filme do John Hughes nos anos 1980, em que apenas o estereótipo norte-americano foi pinçado, sendo (mal) encaixado de maneira grosseira no contexto brasileiro. Os conceitos mais batidos de bullying e das diferenças entre as classes sociais dos alunos são repetidos a exaustão pra fixar bem na nossa cabeça. Os personagens, todos, são absolutamente rasos na sua criação e desenvolvimento. A fada é diferentona, safadinha; a garota é infeliz e tímida e vislumbra a chance de ser bonita e popular; o pai é honesto, trabalhador humilde que se decepciona com a perda de valores da filha; a mãe é rica, indiferente, e se preocupa apenas se a filha está bem vestida e tem amigos ricos; e as vilãs são vilãs porque o mal é legal de fazer. Os supostos arcos dramáticos envolvendo estas figuras são previsíveis, e demonstram como o roteiro desde sempre se contentou em trabalhar com arquétipos pra facilitar a compreensão da geração do Youtube – o público alvo do filme por contar com Kéfera no elenco – que, acostumada com vídeos de curtíssima duração, poderia ficar desestimulada a assistir ao filme se os personagens propusessem uma discussão minimamente complexa. Sei. Isso sem contar as situações mal planejadas e desenvolvidas, como a levitação fora de hora em um momento específico, porque “deu erro” na chamada pro mundo das fadas, numa festa vendida como bombante, mas que foi filmada de maneira esvaziada e desanimada; a sequência risível (talvez o único momento que dei uma risada) em que o filme tenta assumir um tom dramático ao propor um conflito pela guarda de Julia por conta dos desentendimentos dos pais; além da sequência em que a vilã aparece e fala todo o seu plano e o que o levou a realizar tamanha maldade. A pegada publicitária da fotografia e montagem denota a total falta de criatividade e capacidade de D’Amato como diretora. Deve ter sido difícil e caro o aluguel do drone para fazer as imagens de apoio e transição, pois fica claro que cada segundo em que é possível inserir uma imagem aérea ela é inserida, mesmo quando o recurso já cansou há tempos. Parece que a diretora considera sofisticado o efeito, e se apaixonou pela ideia, quando no fundo temos apenas uma sensação artificial trazida por um efeito criativamente pobre. Outro ponto que deve ser um desafio e tanto para a diretora é a decupagem nas cenas de dança. Pra quê tantos cortes, meu Deus? Pra dar ritmo à cena? Tal característica demonstra uma notável incapacidade de D’Amato, pois não causa o efeito esperado, apenas nos deixa perdidos, com uma leve dor de cabeça, sem saber onde está cada coisa. As duas sequências de dança mais importantes do filme são verdadeiramente constrangedoras. Os efeitos digitais chamam a atenção negativamente nos tirando do filme. O desenho de produção da “floresta” onde vive Geraldine parece ter sido feito por um aluno de primeiro período de design utilizando um Windows 95, enquanto que a inserção digital de um copo de Rei do Mate na cena do clube explicita o quanto este filme não é levado a sério nem mesmo pelos seus realizadores. Mas como já disse lá no início da crítica, esse texto não muda muita coisa. Vida que segue.
O Shaolin do Sertão vai de Tarantino a Didi Mocó em busca do riso fácil
O sucesso popular e o caráter de novidade de “Cine Holliúdy” (2012) fizeram com que Halder Gomes se tornasse um nome quente. Não que o filme tenha sido a estreia dele na direção. Mas é como se fosse: era o seu projeto mais autoral, reunindo duas coisas que muito lhe agradavam: as artes marciais e o humor tipicamente cearense, com intenção, inclusive, de apresentar para os quatro ventos o “cearês”, o linguajar típico regional. “O Shaolin do Sertão” dá seguimento a esse projeto de comédia regional com ambição de ganhar o Brasil, e talvez até mesmo de ser vista com curiosidade por algum espectador estrangeiro. Mas talvez um dos erros de Halder tenha sido entregar o trabalho de roteirização para outra pessoa, em vez de ele mesmo cuidar disso, como fez com “Cine Holliúdy”. Ou talvez o filme tenha partido de apenas uma ideia, um esqueleto, e não tenha conseguido desenvolver tão bem o seu miolo, com as piadas, que são de fundamental importância para que o filme seja bem aceito pela plateia. Não quer dizer que “Shaolin do Sertão” não arranque algumas boa gargalhadas e que funcione melhor do que muitas outras comédias brasileiras, mas é um filme cujo humor vai ficando cansativo pela repetição e por problemas de timing e montagem. Uma das coisas que chama logo a atenção na parte técnica do filme são os créditos de abertura, que emulam uma transmissão de televisão dos anos 1980 de um filme de kung fu de Hong Kong, como aqueles que passavam com imagem espichada no Faixa Preta, programa dedicado a filmes do gênero que fez grande sucesso naquela década. A brincadeira com o fato de os atores aparecerem magos e altos se dava ao fato de a janela original em scope ser esticada para caber na telinha quadrada dos antigos televisores. Daí o personagem de Aluísio Li (Edmilson Filho, também protagonista de “Cine Holliúdy”) acreditar que os chineses eram um povo alto e magro, enquanto que os cearenses eram baixinhos e de cabeça chata. Essa é uma das boas sacadas do filme, aliás. A dicção ruim dos atores mirins em “Cine Holliúdy”, e que acabou por exigir que os filmes fossem apresentados em cópias legendadas, deixou de ser um problema em “O Shaolin do Sertão”. Até porque o garotinho Piolho, interpretado por Igor Jansen, está muito bem, no papel do melhor amigo de Aluísio. Ele é o único que entende a vontade do protagonista de se tornar uma pessoa parecida com aqueles que ele tanto admira nos filmes de artes marciais, muito embora ele só consiga apanhar e ser alvo de chacota de todos os moradores de Quixadá, cidade onde vive. A sua motivação ganha ímpeto na forma de uma disputa que acontecerá em sua cidade, que o leva a se voluntariar para lutar contra o terrível Tony Tora Pleura (Fabio Goulart), campeão de luta livre que vem vencendo e mandando para o hospital seus adversários em cada cidade do interior por onde tem passado. E daí entra em cena o personagem do Chinês, vivido por Falcão, que será, por assim dizer, o treinador de Aluísio. Os momentos de treinamento lembram tanto “Karatê Kid” (1984) quanto “Kill Bill: Vol. 1”, mas com sotaque e piadas cearenses (algumas propositalmente datadas). Pena que boa parte delas não funcione, e algumas parecem apenas grosseiras. Esse traço irregular do humor acaba por fazer de “O Shaolin do Sertão” um filme um pouco cansativo, justamente pela intenção de fazer rir a quase todo instante. Ninguém tem a obrigação de rir de piadas que não funcionam, mas percebe-se o esforço do realizador e daí vem o incômodo. Fazer comédia não é fácil. Pensando nos aspectos positivos, o filme conta com alguns ótimos momentos, e o jeitão meio Chaplin e meio Didi Mocó de Edmilson Filho faz com que ganhe a nossa simpatia. Mas não dá pra negar que se esperava muito mais, após “Cine Holliúdy”.












