Malasartes e o Duelo com a Morte diverte com comédia caipira na era digital
O maior mérito de “Malasartes e o Duelo com a Morte” é evocar uma face brasileira que está longe das telas há algum tempo. O Brasil do caipira matuto, bem trabalhado nos clássicos de Mazzaropi e em filmes como “A Marvada Carne” (1985). Mazzaropi, por sinal, fez o seu Malasartes em 1960 (“As Aventuras de Pedro Malasartes”). A história adaptada por Luís Alberto de Abreu (“Era O Hotel Cambridge”) e o diretor Paulo Morelli (“Zoom”) põe um olho neste matuto embrionário de Mazarropi, mas vai na fonte do personagem bufão, que teria surgido nos contos populares da Península Ibérica, e aprontava das suas contra nobres empombados e cavaleiros cheios de si. Abrasileirado, o personagem vira o caipira do jeitinho simples (vivido por Jesuíta Barbosa), que se faz de trouxa, mas não tem nada de bobo. Namora Áurea (Ísis Valverde), a mocinha mais bonita do campo, mas cresce os olhos para as caboclas que passam. Tem uma predisposição para o perigo, tanto ao bolar artimanhas que provocam o irmão de Áurea, o truculento Próspero (Milhem Cortaz) que deseja matá-lo, como em provocar o pacífico Zé Cadinho (Augusto Madeira). Mas sua astúcia, cínica e de golpes e expedientes inesgotáveis, chama a atenção no além. Lá do alto, a Morte (Júlio Andrade) vibra com as artimanhas do matuto ao convencer Zé Candinho que seu chapéu mágico transforma estrume de jumento em ouro. Para escapar do tédio de administrar o contingente de mortos que nunca acaba, a Morte planeja abandonar o barco, e acredita que Malasartes é o substituto a altura. A questão é como dobrar o esperto caipira e atraí-lo para uma armadilha. O filme comporta, em suma, uma discussão sobre o poder dos homens, ao confrontar o relativo (homem) e o fatídico (Morte) e promove uma inversão: o a Morte é pomposa e truculenta; já Malasartes, é singelo e lúcido. Seria injusto dizer que essas idéias não são encontráveis na versão de Paulo Morelli. Mas não seria correto dizer que se expressam plenamente. O essencial de suas virtudes vem do texto (um roteiro bastante fluente) e do elenco afinado e afiado. O filme é pontuado em duas partes, Na primeira, mais realista, há uma respiração, uma falta de pressa rara em se tratando de comédia brasileira, o que permite que cada personagem se desenvolva com empatia. A segunda parte se propõe a flertar com o lúdico, o que em princípio, promete. Mas então entram os efeitos visuais e Morelli se encanta demais com as possibilidades pirotécnicas. Verdade que tudo é bem feito, bem produzido, afinal por trás temos a produtora O2 colocando todo seu aparato a serviço do filme. É tudo bonito, mas seria ótimo se eles não favorecessem tanto o plano geral, a ponto de esquecer os atores nessa hora. Há momentos que Jesuíta Barbosa e Júlio Andrade literalmente ganham a dimensão de pulgas, e a grandiloquência digital engole o humano. E isso não acontece em um ou dois momentos. A parafernália tecnológica vira um exercício vazio, quando não há um conceito dramático justificável e consistente. E quem sofre mais por essa opção, são os habitantes do Além – Júlio Andrade, Leandro Hassum e Vera Holtz, que não rendem maravilhas como poderiam. Por sorte, o deslumbramento não compromete o que veio antes. No saldo geral, o filme diverte e dá o seu recado. E o carisma do Malasartes de Jesuíta Barbosa e a simpatia do Zé Candinho, de Augusto Madeira, ficam com a gente.
Planeta dos Macacos – A Guerra empolga com ação, efeitos e sensibilidade
Ainda que Matt Reeves não tenha dirigido os três filmes deste reboot de “O Planeta dos Macacos”, foi ele que, ao assumir o segundo ato, “O Planeta dos Macacos: O Confronto” (2014), superou as formulações óbvias do tema. Junto com o colaborador Mark Bomback, tanto em “Confronto” como nesse novo “Planeta dos Macacos: A Guerra”, não brinca apenas com a ideia de um mundo onde a supremacia símia de repente parece ser mais civilizada do que a humana. Ambos – diretor e roteirista – se deliciam em imaginar as implicações desta inversão social. Isso do ponto de vista dramático. Já como entretenimento são igualmente felizes. Realizam dois filmes sagazes, cheios de reviravoltas, com empolgantes cenas de ação e um magnífico trabalho de caracterização dos atores. Esse “Planeta dos Macacos: A Guerra”, pra começar, desmente a apologia do título bélico que o marketing do estúdio investe. Em vez de elogio ao conflito, o filme é todo construído sobre a ideia de como uma guerra aborta traumaticamente os planos das pessoas, e como ela aniquila quase tudo o que pode haver de positivo dentro de um ser. Sim, as ações começam pequenas, mas elas vão se desdobrando e esbarrando em outros símbolos de intolerância, racismo, os perigos da obsessão e o veneno da vingança. A história é contada da perspectiva dos macacos. É óbvio desde as primeiras cenas que eles são os protagonistas e os humanos, os vilões. O principal antagonista, o Coronel vivido por Woody Harrelson, é introduzido obliquamente e não recebe uma cena completa até a metade do filme. Mas mesmo neste delineamento fácil de divisar entre o “bem” e o “mal”, há uma perplexidade em cena. Os gestos simiescos soam terrivelmente arbitrários para nós, e nos chamam a atenção para como terrivelmente arbitrários devem ser os nossos próprios atos. No centro da cena está o macaco César (Andy Serkis), o líder desta contradição. César sempre está pagando as contas por procurar uma convivência pacífica com os humanos. Sem seu rival Koba (Toby Kebbell), agora existente apenas em seus pesadelos, o protagonista enfrenta uma oposição que se multiplica em células. Há mais macacos dissidentes e pelo menos dois tipos de humanos: um grupo que caça os símios apenas pelo prazer de exterminá-los, e outro grupo, que está buscando uma vacina para conter o vírus mutante que continua a aprontar das suas com os humanos. César tem que lutar contra todos eles, mas a maior pedra no caminho é o Coronel. As táticas brutais do oficial forçam César a enfrentar os aspectos mais escuros de sua natureza. Quando o vilão mata a mulher e o primogênito do líder símio, o ponderado protagonista macaco perde o chão. Acompanhado por dois companheiros, Rocket (Terry Notary) e o orangotango Maurice (Karin Konoval), César esquece a racionalidade e busca a vingança a qualquer custo. E Andy Serkis mais uma vez oferece uma performance memorável. Reeves mantém o ator sob seu foco e deixa a câmera namorar o rosto de Serkis, suas expressões. Se precisar dar uma pausa na ação, para ir mais fundo nas emoções, Reeves pára e espera. Essa atuação, sabemos, ganha depois a sobreposição dos efeitos digitais, mas e daí? A forma como essas fronteiras se misturam é um maravilhoso testemunho de quão eficaz os dois instrumentos podem ser juntos. Não adianta só a tecnologia. Quando o humano se sobressai, a dramaturgia sai enriquecida. Serkis domina sua criação com uma densidade dramática rara. Em cada um dos filmes, o ator explorou uma estação emocional do personagem. No primeiro, César era jovem, havia um certo entusiasmo em formação, que foi sendo corrompido até levá-lo ao desencanto e depois à revolta. No segundo filme, o dilema de confiar mais uma vez nos humanos emprestaram nuances dignas de um drama shakespereano e ele pagou um preço que ele não esperava: foi traído por um amigo e teve que matá-lo. Terminou a história como um personagem embrutecido. Neste terceiro, a carga pesa ainda mais. César está velho, cansado, tenta se vender como um guerreiro estrategista implacável, mas, depois da morte dos entes queridos, é tomado pela mesma ira que o levou a matar Koba. Conforme aproxima-se de sua vingança, o fantasma do amigo reaparece parar rir da sua escolha. O lado ponderado perdeu-se em César. Ninguém o desarma. Nem mesmo a adorável Nova (Amiah Miller), menina humana órfã que encontra em sua rota. Maurice acolhe a criança, César olha pra ela com ódio nos olhos. Seu oponente, o militar humano (Harrelson) intencionalmente é uma figura bidimensional – tão frio quanto o gelo, ele range os dentes quase como um animal. O vírus que destruiu a humanidade se modificou em tal ordem que agora está conduzindo os homens a regressão das faculdades mentais. O primeiro indício é a perda da fala, depois a atrofia do raciocínio. O Coronel quer liquidar os macacos, porque não admite que o homem vire o animal dos animais. Em sua resignação, o vilão traz muito do Coronel Kurtz vivido por Marlon Brando em “Apocalypse Now” (1979). Há outras menções apontando o clássico de Coppola como referência para Reeves. O Coronel montou seu exército particular. E também é um sujeito recluso, tentando esconder sua mente torturada por uma série de atos terríveis que cometeu. O tributo a “Apocalypse Now” é inteiro neste Planeta dos Macacos. É evocado ainda na sequência de ataque de uma esquadrilha de helicópteros e numa bela pichação numa gruta, onde lemos “Ape kapylpse Now”! Fosse só o filme de Coppola e a homenagem aos filmes de guerra já estaria de bom tamanho, mas Reeves se dá ao capricho de desfiar sua veia cinéfila, emulando cenas dos clássicos “A Ponte do Rio Kwai” (1957), “Fugindo do Inferno” (1963) e “Nascido para Matar” (1987). Claro, as cenas e sensibilidade são todas mais que familiares, mas o filme transpira uma espécie de charme nostálgico das velhas matinês de aventura e, ao mesmo tempo, é tão agradável e isento da tradicional incoerência dos filmes atuais, que parece que estamos presenciando a história pela primeira vez. Obra-prima? Chega perto. Se há um defeito em “O Planeta dos Macacos: A Guerra”, esse reside nas cenas finais. Obviamente não estou contando o que acontece, mas cabe fazer menção ao sentido do que vemos. O final é redentor, lacrimejante e completamente desnecessário.
Belíssimo, O Filme da Minha Vida confirma talento do diretor Selton Mello
O escritor chileno Antonio Skármeta já teve um texto adaptado para o cinema que alcançou grande sucesso, “O Carteiro e o Poeta”, dirigido por Michael Radford em 1996. “O Filme da Minha Vida”, de Selton Mello, adaptação de “Um Pai de Cinema”, pode repetir o feito. É um filme que lida com o público de modo terno, afetivo e lírico. Traz para o cinema o clima poético e nostálgico do texto de Skármeta, acrescentando-lhe novos personagens e situações e fazendo novos elos que tornam a trama mais clara e compreensível, sem resvalar no melodrama ou nas soluções fáceis. E sem perder o clima de mistério, deixando um caminho para o espectador percorrer, que vai além das imagens e, portanto, também além do texto original. O que Selton Mello fez foi uma adaptação literária, mas de um modo muito pessoal, colocando-se no protagonista e no seu contexto de época. Ao transportar a trama das serras chilenas para as serras gaúchas, ele manteve o espírito interiorano da história, com seus limites, mas ressaltou o sonho dos personagens, envolvendo-os com referências brasileiras, mantendo e dando cor local à bela homenagem ao cinema que o texto de Skármeta faz. Em “O Palhaço” (2010), Selton Mello, um dos grandes atores da sua geração, encontrou seu caminho também como cineasta. Mostrou-se capaz de lidar com emoções de forma intensa, mas equilibrada. Buscou comunicar-se com um público amplo, usando o humor, homenageando a cultura popular, inclusive televisiva, sem adotar seu modelo simplista e popularesco. Ele mantém esse espírito em “O Filme da Minha Vida”, onde também dirige e atua simultaneamente, além de ser roteirista, ao lado de Marcelo Vindicatto. O filme tem a cara de Selton Mello. Já é reconhecível sua autoria neste terceiro longa. A fotografia, a cargo de Walter Carvalho, que tantas contribuições tem dado ao cinema brasileiro, é lindíssima. Nos seus tons marrons e amarelados, ressalta a luminosidade da serra e, sob névoa ou luz baixa, nos conduz ao clima frio serrano e aos anos 1960, em que se situa a história, na hipotética cidade de Remanso. Na verdade, as filmagens ocorreram em sete cidades diferentes, na região de Garibaldi. O filme é recheado de boa música daquele período histórico, com ênfase em canções francesas, já que o protagonista Tony Terranova (Johnny Massaro) também dá aulas de francês para sua turma de alunos e é filho de um francês, Nicolas, papel do conhecido ator Vincent Cassel, agora vivendo no Rio de Janeiro. Nem por isso deixa de soar estranho ouvir “My Way” em versão francesa. Outra estranheza para os mais novos pode ser ouvir a seminal “Rock Around the Clock”, de Bill Haley, em versão nacional. Estranhezas à parte, é fácil sair cantarolando do cinema. “Coração de Papel”, de Sérgio Reis, é um dos hits em destaque. E de Charles Aznavour, “Hier Encore”. A história remete à busca de um pai que abandonou misteriosamente mulher e filho para voltar a viver na França e esqueceu-se da família. Mas essa versão faz sofrer e não convence. O que estará por trás disso? O jovem personagem Tony, enquanto busca saber do pai, vai construindo uma vida como professor de província, lidando com a demanda sexual dos alunos pré-adolescentes e da sua própria demanda amorosa e sexual, ele próprio recém-saído da adolescência. Os meninos personagens dão margem a cenas fascinantes e divertidas. Já com a mãe Sofia (Ondina Clais) há afeto, mas a tristeza da perda marca a relação. As jovens Luna (Bruna Linzmeyer), que encanta Tony com seu jeito meio maluquinho, e sua irmã, Petra (Bia Arantes) têm papel decisivo no desenrolar da narrativa. Assim como o manipulador Paco, o papel de Selton Mello no filme. É um senhor elenco de atores e atrizes que mergulham intensamente em seus personagens, revelando que Selton é um ótimo diretor de atores. O que, afinal, não surpreende, com a cancha de representar que ele tem. Duas participações especiais merecem destaque. Rolando Boldrin faz um maquinista de trem, personagem criado por Selton para o filme, especialmente para ser vivido por ele. Antonio Skármeta também atua numa ponta e contracena com Selton Mello, reunindo, assim, os autores da bela narrativa, tanto literária quanto cinematográfica.
O Reencontro foi feito sob medida para os talentos das Catherine Frot e Deneuve
É com uma sequência de um parto que inicia “O Reencontro” (La Sage Femme), longa-metragem francês que traz duas Catherine veteranas no elenco: Catherine Frot (“Marguerite”) e Catherine Deneuve (“O Novíssimo Testamento”). Outros partos estarão na tela para ilustrar a profissão de Claire, a parteira vivida por Frot. Ela ama o que faz e ajuda, de forma maternal e ao mesmo tempo profissional, as mulheres grávidas darem à luz. Porém, a satisfação na clínica em que atua chega ao fim quando recebe a notícia de que ela vai fechar e ceder o espaço aos “hospitais modernos”, que pouco se importam com a natureza do parto e estão mais preocupados com o dinheiro que eles rendem. O nome original do longa, “La Sage Femme”, significa “obstetriz”, mas também pode ser um trocadilho no idioma de Molière. “Sage femme” quer dizer mulher sábia, o que cai perfeitamente para a personagem criada pelo diretor e autor do roteiro Martin Provost (“Séraphine”). Não é sempre que o distribuidor brasileiro acerta no nome da adaptação, principalmente quando resolve mudar completamente o nome e não apenas traduzi-lo literalmente – caso deste longa. No Brasil, não funcionaria um filme com o título “Obstetriz”. Nada contra o ofício, ao contrário, mas não é um nome forte o bastante para despertar interesse do público – talvez o fosse caso se tratasse de um documentário sobre a jornada de uma parteira. Mas não é o caso e aqui a adaptação do nome é feliz. O longa trata justamente do reencontro das duas personagens centrais, vividas pelas duas Catherine. Claire (Frot), a parteira, ao chegar em casa após mais um dia exaustivo de trabalho, recebe a ligação de Béatrice (Deneuve), ex-mulher de seu pai, que desapareceu havia 30 anos, pedindo para se verem. A contragosto, Claire vai ao seu encontro e recebe uma péssima notícia. Enquanto Claire é organizada e responsável, Béatrice, que tem um diagnóstico de saúde nada bom, fuma, bebe e joga (e perde) rios de dinheiro. Comportamentos contrários tão previsíveis como a fábula da “Formiga e da Cigarra”. E é enquanto tenta se entender e ajudar a ex-madrasta que Claire conhece Paul (Olivier Gourmet, de “A Garota Desconhecida”), um caminhoneiro internacional, capaz de despertar os desejos da mulher que estavam enterrados há muito. É quando ela deixa um pouco de lado sua vida de “caxias” para aproveitar e brindar “à la vie”. As interpretações são um verdadeiro deleite. Embora as personagens estejam se reencontrando, este foi o primeiro encontro das duas atrizes: elas nunca haviam trabalhado juntas. Provost explica, no material de divulgação para a imprensa, que escreveu os papéis pensando nas respectivas atrizes. E elas responderam muito bem à missão. A trama, inspirada no nascimento do realizador (não por completo, mas apenas alguns detalhes), vai bem e é capaz de emocionar o espectador. O fim, porém, é um tanto moralista, segue a fábula e não surpreende. De qualquer maneira, “O Reencontro” é um filme que homenageia as parteiras e inspira o espectador a valorizar cada vez mais a vida, dia após dia.
Tal Mãe, Tal Filha é um pastelão francês com a cereja de Juliette Binoche
Tem cara de pastelão o início do longa-metragem “Tal Mãe, Tal Filha”, de Noémie Saglio (“Beijei Uma Garota”). E é. O pôster de divulgação do filme já dá uma ideia do que vem pela frente, ao mostrar as duas protagonistas grávidas. A mãe, Mado, vivida por Juliette Binoche (“Ghost in the Shell”), praticamente troca de papel com a filha, Avril (Camille Cottin, de “Aliados”). Enquanto a moça, aos 30 anos, é casada, tem emprego fixo e é responsável, a mãe vive de favor na casa da filha, é bagunceira e tem comportamento de adolescente no modo de se vestir e de agir. A cena dela mascando chiclete no supermercado mostra bem isso. Até que um dia Avril anuncia que está grávida e Mado alega que não está pronta para ser avó. Em cena também está o pai de Avril e ex-marido de Mado, personagem vivido por Lambert Wilson, de “Sobre Amigos, Amor e Vinho” e “Homens e Deuses”, que acaba originando a segunda gravidez da história. A diretora Noémie Saglio, que escreveu o roteiro ao lado de Agathe Pastorino, teve a ideia da trama lendo revistas femininas, nas quais havia histórias sobre mães e filhas engravidando ao mesmo tempo. Ou seja, embora pareça surreal, o comportamento é mais comum (e real) do que parece. O que não me parece comum, porém, é a maneira de agir da mãe. Binoche, uma das atrizes francesas mais cobiçadas por renomados diretores – ela já filmou, por exemplo, com o iraniano Abbas Kiarostami, o alemão Michael Haneke e o polonês Krzysztof Kieslowski – parece um pouco desconfortável no papel da mãe bancando a adolescente. A plateia, assim, não compra a personagem de primeira. É preciso insistência pra ir se convencendo aos poucos. É difícil, mas rir de comédias pastelões – principalmente quando já se é mãe, no caso desta trama – não faz mal a ninguém.
O Mínimo para Viver é um dos piores filmes bem-intencionados já feitos
Drama de doença, “O Mínimo para Viver” (To The Bone) é o primeiro longa-metragem dirigido por Marti Noxon, criadora das séries “UnReal” e “Girlfriends’ Guide to Divorce”. E é um prato cheio para quem quiser ilustrar uma aula sobre como não se deve fazer cinema. De forma apropriada, a produção evita as salas e chega direto em streaming pela Netflix. Por mais que seja motivada por boas intenções, ao tocar um assunto delicado e pouco explorado em filmes, a diretora novata passa a sensação de ter medo de enfrentar o problema da anorexia de frente e prefere, em vez disso, olhar com simpatia sua protagonista. Obviamente, quer abrir os olhos de todos, inclusive busca diálogo aberto com quem sofre ou sofreu com a doença. Mas é o filme mais feliz e censura livre que você verá na vida sobre o tema. Este problema se manifesta porque “O Mínimo para Viver” não parece saber qual caminho quer percorrer e o desequilíbrio entre cada mudança na história é grave. Tem hora que a trama quer ser dura, mas não demais. Depois, descamba para um estilo mais John Green, o autor de “A Culpa É das Estrelas”. Em outro momento, sem intenção, lembra “A Viagem”. A novela, não o filme, refletindo problemas na comunicação entre pacientes e o médico interpretado por Keanu Reeves (“John Wick”), coadjuvante de luxo, mas o pior doutor dos filmes recentes, que trata a protagonista sorrindo e pregando que a vida é bela. Anorexia é uma doença que pode levar à morte e pede uma abordagem e situações mais contundentes. Para piorar, a diretora parece não saber onde posicionar a câmera para convencer o público de que Lily Collins (“Os Instrumentos Mortais – A Cidade dos Ossos”) realmente ficou magra como o roteiro pede, pois os planos poucas vezes flagram a magreza da atriz, preferindo esconder seu corpo. E quando vemos Lily por inteiro, talvez seja tarde demais para crer. Fica parecendo que toda a revelação é um truque visual. É claro que o trabalho de atuação não se limita somente ao aspecto físico, mas, caramba, como fazer um filme sobre anorexia sem que isso seja importante?
Transformers – O Último Cavaleiro é barulho e poluição visual sem sentido algum
É impossível lembrar ou explicar o que acontece do início ao fim em “Transformers: O Último Cavaleiro”, espécie de lobotomia disfarçada de cinema. Não que a culpa seja somente da ação exagerada, que faz com que os olhos se percam e não consigam focar coisa alguma, com tanta poluição visual na tela (sem falar no barulho ensurdecedor e ininterrupto que maltrata os ouvidos). É tudo desconexo em nível básico de desenvolvimento de um roteiro e até na função do diretor como um contador de histórias, conduzindo a trama de um ponto ao outro. Estes pontos são inexistentes no quinto “Transformers”. Não é falha ou buraco. Eles simplesmente não existem e a sensação é que o filme se resume a explosões e efeitos visuais justificados por qualquer absurdo. Bom, você pode dizer: “Ah, mas isso é um filme do Michael Bay!” Verdade. E parece um greatest hits dos outros “Transformers”, com o diferencial de contar com um plot envolvendo o Rei Arthur (!), Merlin (!!) e os cavaleiros da távola redonda (!!!), além de ter Anthony Hopkins pagando mico (!!!!). Claro, Bay já fez isso antes com gente boa como John Malkovich e Stanley Tucci. Mas não é questão de o roteiro ser ruim ou a ação ser mais importante que tudo. As soluções que desenvolvem a narrativa, muitas vezes, fazem menos sentido que roteiro de filme de Renato Aragão (pós-Trapalhões!). Imagine um menino de seis anos brincando e misturando personagens em sua inocente imaginação, criando situações e histórias diferentes, tudo ao mesmo tempo agora e uma pessoa (mais velha) observando aquilo sem entender o que está acontecendo e para onde a cabeça da criança está indo. Pois “Transformers: O Último Cavaleiro” é exatamente assim: uma cena não tem nada a ver com a outra, e quem quiser encontrar sentido nisso vai se sentir frustrado. Por sinal, tem tanta gente nesse filme que provavelmente o público não seja capaz de guardar os nomes de seus personagens. Além de incluir novidades no elenco, como Laura Haddock (a nova Megan Fox) e Isabela Moner, o longa ainda resgata atores dos primeiros filmes, como Josh Duhamel e o pobre John Turturro, em participação especial tão desnecessária que não tem a menor importância na trama. Michael Bay é reconhecido por criar espetáculos em larga escala com câmeras que usam a tecnologia mais avançada existente. E seu novo filme abusa disso. Ao contrário de Christopher Nolan, por exemplo, que também usou câmeras de IMAX em “Dunkirk”, Bay aponta as câmeras megaultrahipermodernas para fogo e fumaça, sem compromisso algum com a linguagem cinematográfica. Ao menos, ele é consistente. Nunca decepciona em relação ao que se espera dele. Impressionante mesmo é lembrar como o primeiro “Transformers”, há dez anos, até tinha algum nexo e levava em consideração a inteligência do público apesar dos pesares. De lá para cá, cada filme ficou pior que o outro, mas suas bilheterias bilionárias estimularam Bay a considerar sua abordagem imune à críticas. A impressão é que ele decidiu extrapolar de vez e fez “Transformers: O Último Cavaleiro” para rir de todo mundo. Não há outra razão para ele responder a um repórter que a diferença em relação aos filmes anteriores é que “O Último Cavaleiro” tem mais ação.
Carros 3 é o melhor filme da trilogia animada da Pixar
Ninguém pediu “Carros 3”, mas a Pixar foi lá e fez. Por quê? Porque esse é o produto mais voltado para a criançada que o estúdio tem em seu acervo. Aceite: esse é o verdadeiro público-alvo das aventuras de McQueen e Mate. Mas pode ficar tranquilo que o filme é bem melhor que “Carros 2” (o que não seria muito difícil). E ainda saímos no lucro, afinal conclui o arco de Relâmpago McQueen com extrema dignidade – se “Carros 3” for o último da série, claro. Em qualquer franquia lucrativa do cinema, a decisão de ajustar o tom dos episódios seguintes de acordo com a idade dos fãs que cresceram com o filme original é, digamos, um tanto arriscada (do ponto de vista dos negócios que rolam nesse setor). A Pixar poderia fazer “Carros” para sempre e do mesmo jeito, já que a animação não é como “Harry Potter”, com atores de carne e osso, que envelhecem e amadurecem, assim como seu público. Mas Relâmpago McQueen está velho em “Carros 3”. E, pior, não sabe disso. Tenta, inclusive, superar em vão um carro de corrida moderno com os features mais atuais que a tecnologia pode proporcionar. Em uma cena chocante – até mesmo para os fãs que acompanham essa história desde 2006 –, McQueen capota feio na pista após acelerar tudo que pode, e é obrigado a dar um tempo para se recuperar, treinar muito e tentar dar a volta por cima superando o novo rival. Ora, ele decide a hora de parar. Ou será que é o tempo que decide? Eis a questão. Dizem, por exemplo, que um jogador de futebol morre duas vezes. Uma delas quando se aposenta. Máxima que deve servir para todos os atletas. Enfim, a franquia sempre quis homenagear a febre americana por carros. Mas, no fundo, foi uma oportunidade para revisitar temas de produções e gêneros que marcaram o cinema hollywoodiano com a presença de diferentes modelos de automóveis. A Pixar se agarrou aos dramas de mensagens positivas de Frank Capra no primeiro “Carros”, homenageou os filmes de agentes secretos em “Carros 2” e, agora, a influência é de “Rocky” – mais ainda das continuações da série estrelada e criada por Sylvester Stallone, cujo longa original foi elogiado na época de seu lançamento por ninguém menos que… Frank Capra. E Mate, o personagem coadjuvante mais popular da franquia? Ele está no filme, mas após as críticas a “Carros 2” (2011), a Pixar optou claramente por reduzir sua participação, assim como George Lucas foi obrigado a fazer com Jar Jar Binks, em “Star Wars: Ataque dos Clones” (2002) e “Star Wars: A Vingança dos Sith” (2005). Talvez “Carros 3” pudesse ser ainda mais melancólico para combinar com seus emocionantes minutos finais, como, por sinal, “Toy Story 3” (2010) não teve medo de ser. Mas o miolo de “Carros 3” apronta algumas gracinhas para arrancar risadas e o público infantil não estranhar tanto. Até que vem o final. E que final. Por mais que possa levar os marmanjos às lágrimas, a solução encontrada para fechar o ciclo de Relâmpago McQueen não só honra o legado do personagem como as próprias inspirações da Pixar em algumas das melhores histórias de superação já contadas pelo cinema. Fãs que cresceram com McQueen – e adultos – devem aceitar bem a conclusão. Mas fico pensando o que os pequeninos, que viram McQueen somente em home video, irão pensar. Se fosse para apostar, eu diria que também não deve ser um problema, afinal as novas gerações surgem para evoluir nossos modelos ultrapassados. E a evolução que o filme aponta é um futuro com menos preconceito e machismo, onde o cinema destaca protagonistas femininas fora de comédias românticas e papéis de princesas, mães ou donas de casa – percepções que a própria Disney vem ajudando a mudar com seus filmes recentes. Se “Carros” é uma franquia imperfeita, ao menos seu desfecho termina bem. Com ou sem Relâmpago McQueen.
Em Ritmo de Fuga junta musical e tiroteios num dos filmes mais originais do ano
“Em Ritmo de Fuga” é um filme de assalto tarantinesco concebido como um musical de jukebox por um diretor inglês conhecido por besteiróis deliciosos como “Todo Mundo Quase Morto” (2004), “Chumbo Grosso” (2007) e “Scott Pilgrim Contra o Mundo” (2010). Edgar Wright é cultuado em muitos círculos, mas nunca foi levado a sério como deveria. Após “Em Ritmo de Fuga”, convém prestar mais atenção. Taí um cineasta com um febril e delirante senso de aventura, que nunca resvala no tom cerimonioso. Ao contrário, é ferina a sua inclinação para espinafrar a tradição. Wright sabe que o cinema de Hollywood – reflexo de uma sociedade imatura – acredita em super-heróis, vilões e forças ocultas. Assim, propõe em seus filmes zombar de todo esse sortimento sem medo de medir seus excessos. Para ele, faz sentido que entre todo esse novo mundo de linguagem cifradas, os adolescentes estejam num patamar superior. É uma figura do gênero que ele elege para empreender sua nova aventura. Ansel Elgort, o August de “A Culpa das Estrelas” (2014), faz Wheelman Baby, um motorista de fuga dos sonhos para qualquer assaltante de bancos. O tipo de garoto de poucas palavras, imerso na trilha pulsante de seu fone de ouvido e que dirige como o diabo, safando os ladrões da polícia com seu jeito audacioso e intuito de pilotar máquinas envenenadas. A viagem de Baby sempre é dupla, um delas ocorre na direção de um carro, a outra, introspectiva, acontece dentro da sua bolha musical. Enquanto espera que a quadrilha saia do banco, ele escuta a eletrizante “Bellbottoms” de Jon Spencer Blues Explosion, estalando os dedos, transformando o console do carro numa bateria e repicando o ritmo ao som dos limpadores do pára-brisa. Ao ver isso, um assaltante o chama de retardado, o outro quer matá-lo. Baby é menosprezado e tratado como um insignificante. Acontece que tudo o que os adultos fazem de forma atrapalhada, o garoto refaz com a leveza de um malabarista. Menos atirar. Ah, essa índole destrutiva não faz parte do caráter de Baby. Ele não pertence a essa geração. As escopetas vomitam fogo e ele se enfurna no seu mundinho. A violência alucinada ganha a tela e ele se comporta quase como um autista. Há cenas em que o ra-tá-tá-tás das metralhadoras são usadas como pontuação melódica, proporcionando uma seção de ritmo homicida. Isso até o momento em que Baby começa a levar pancadas, tiros de raspão. O menino não quer ser acordado. No particular, Baby é um dos personagens adolescentes mais comoventes a desfilar nas telas esse ano. Se em princípio parece meio bobo, um homem-criança atrofiado, no decorrer, descobrimos tratar-se de um menino forçado a crescer muito cedo. Um garoto que ficou meio surdo após um acidente de carro que matou seus pais, e que agora está a mercê de Doc (Kevin Spacey, da série “House of Cards”), um líder criminoso, especialista em colocá-lo nas missões mais perigosas. Baby acredita que o próximo assalto será o último. Depois estará fora. Mas quem disse que Doc deixará ele partir? A generosidade de Wright com os atores muitas vezes é subvalorizada. Aqui ele compõe com Elgort, seu protagonista excêntrico. Embora em princípio, a auto-terapia musical de Baby pareça apenas uma muleta estilística para Wright, no prolongamento ele busca uma compreensão no uso da trilha que se traduz num ideal e nas próprias motivações de Baby. A música acrescenta sombras a um personagem que se inclina para um vazio severo. Quando Baby se interessa por uma garçonete chamada Debora (Lily James, a “Cinderela”), seu flerte desajeitado se reafirma de novo pela música, e o diálogo passa a ser tanto sobre a história da canção, como também sobre a história de cada um dos dois. Lily James acaba não fugindo muito da mocinha meiga, mas o resto do elenco integra-se perfeitamente ao enredo. Kevin Spacey condensa em seu líder criminoso tanto a frieza de um assassino, como uma certa ternura: algumas vezes ele trata Baby como filho. E só mesmo Spacey é capaz de combinar essas duas contradições, tornando o personagem convincente. Outro que surpreende é Jamie Foxx (“Annie”). Ele compõe o criminoso mais psicótico da quadrilha. Batts, seu personagem, é um observador inteligente, com uma habilidade para deduzir pensamentos precisa – e acredita que é exatamente esse dom que o mantém vivo. Jon Hamm (da série “Mad Men”) constrói a persona de seu ladrão com uma ilexão avessa a de Foxx. Ele parece afável, controlado, mas basta alguém espetar os olhos gordos sobre sua esposa, Darling (Eiza González, da série “From Dusk Till Dawn”), e o homem se transforma. Num piscar de olhos, ele passa do sujeito equilibrado a uma raiva inquietante e mais assustadora do que a violência de Batts. Há um quinto ator em cena precioso, CJ Jones (“What Are You… Deaf?”). O ator, que é surdo de verdade, interpreta Joseph, o pai adotivo de Baby. A interação de seus personagens, usando a língua de sinais dos surdos-mudos, é cheia de alegria e ternura, e suas advertências contra a profissão de Baby são suavizadas pelos olhares de simpatia e amor incondicional para o menino. Por trás da diversão inconsequente, “Em Ritmo de Fuga” pode ser visto também como sátira à briga pelo poder que existe na atual Hollywood. O garoto nerd, imerso no mundinho do fone de ouvido, e que todo mundo menospreza, está assumindo a chefia dos estúdios. E Wright, muito cáustico, brinca com a ideia da sucessão, ao mostrar que a esperteza de Baby pode levá-lo a dominar as circunstâncias. Num certo momento, no entanto, Wright zomba de Baby, mostrando que ele não deve ficar muito cheio de si. Um garoto ainda mais novo que ele aparece para suplantar sua esperteza. A criança intervém em apenas duas cenas, mas sua presença é suficiente para desarmar o herói nerd, ilustrando como o talento está se tornando algo cada vez mais precoce. Ou seria um infantilismo? “Em Ritmo de Fuga” orbita em torno dessas duas ideias. Botemos alguns defeitos. Na meia hora final, Wright empolga-se tanto com seu tour de force cinemático, que quase desaba no maneirismo estéril. As cenas e sacações de Wright extrapolam a duração do filme, que podia acabar uns 15 minutos antes. O excesso de entusiasmo põe em risco o resultado final. Mas para um diretor tão preocupado com a necessidade de crescer sem perder de vista suas obsessões artísticas, até no exagero Wright continua a aprimorar suas habilidades. Não é definitivamente um diretor fascinado apenas pela pirotecnia. Com “Em Ritmo de Fuga” ele comprova, sim, ser o cineasta de ação mais original de sua geração.
Dunkirk é xadrez épico em que atores não passam de peões
Christopher Nolan nasceu pro cinema no momento certo. Numa época de ansiedade, euforia e excessos. Não é a toa que ele é o diretor mais festejado pelo público e por uma grande parcela da crítica. Ele traduz a loucura da sobrevivência num cotidiano em que nossa readaptação à realidade não ocorre na mesma velocidade que as mudanças. No cinema dele, a ação não para. Mas isso faz de Nolan um dos maiores cineastas da atualidade? “Dunkirk”, o filme que muito gente vem chamando de obra-prima, é o mais novo “case” de sucesso do diretor. Exatamente como no mundo da publicidade, ele estabelece nos primeiros minutos o espaço, a atmosfera e o conceito de tempo: retoma um capítulo da 2ª Guerra Mundial, a evacuação das tropas aliadas da França, e bifurca em três histórias com três tempos distintos. Temos lá: a espera dos soldados durante uma semana, o resgate de barco que durou um dia e o embate dos aviões que aconteceu em uma hora. Claro que nada disso ocorreu em variáveis tão fixas, só que, no mundo de Nolan, ele estabelece as regras e preenche a planilha prometendo um espetáculo de cinema. Os minutos iniciais realmente surpreendem. Pra começar, aquela falação excessiva, os diálogos reiterativos de suas duas últimas aventuras, “Batman: O Cavaleiro Ressurge” (2012) e “Interestelar” (2014) saíram de cena. Perto desses dois, “Dunkirk” é quase um filme mudo. A primeira imagem na tela mostra o final de um movimento de rápido recuo pra trás de seis soldados, como reflexo de uma bomba que explodiu e que sequer vimos ou ouvimos o barulho. Assinala-se a ideia do susto, do tranco, e o consequente estado de alerta. Não sobra muito tempo pra pensar. Como veremos a seguir: vacilou, piscou, morreu. Na sequência, o soldado raso Tommy (Fion Whitehead, da série “Him”) chega à praia e procura um canto pra defecar. Aliás, ele abaixa a calça e faz as necessidades de pé. Está em estado de vigia, sempre. Um sujeito próximo enterra um cadáver na areia. Tommy se aproxima para ajudar, pensando que o soldado improvisa o funeral de alguém muito familiar e querido. Mas trata-se de outra coisa. O soldado roubou as botas do morto e está, na verdade, jogando terra sobre a vergonha do que a guerra está fazendo ele passar. Esse é o momento mais forte e humano de “Dunkirk”. A ação transfere-se para a história em velocidade mais rápida do senhor inglês (Mark Rylance, de “Ponte dos Espiões”) que está trazendo seu barco para o resgate, e, em seguida, salta mais veloz ainda para o entrecho do piloto de caças (Tom Hardy, de “Mad Max: Estrada da Fúria”) em sua missão de ataque. São 10 minutos impressionantes que mostram tudo o que Nolan tem para oferecer. Um belo curta de 10 minutos. Tudo o que vem depois é uma repetição, com o agravante que o espaço dado aos atores é cada vez mais comprimido. Nolan parece achar os dramas humanos uma enrolação. Ele nunca deixa a emoção desenvolver-se por inteira. Corta pra outra cena de ação. A logística de produção é o que lhe interessa. Para quem ama a orquestração das multidões e das máquinas é um prato cheio. E o making off do filme deve ser muito bom. Elogiam muito também o realismo, a proeza de não usar efeitos digitais para criar figurantes e a busca por vivenciar o calor e o desespero visceral de um conflito, enfim, questões que soam muito boas para vender algo que verdadeiramente não tem nada de autêntico. Videogames igualmente possibilitam esse tipo de imersão. Uma receita para um grande filme de guerra não existe. Os maiores, só para citar alguns, como “Sem Novidade no Front” (1930), “Glória Feita de Sangue” (1957), “Vá e Veja” (1985) e “Apocalipse Now” (1979), possuem pouco em comum, não foram feitos por diretores que vivenciaram uma guerra, como aconteceu com Samuel Fuller e William Wellman, diretores dos seminais “Capacete de Aço” (1951) e “Também Somos Seres Humanos” (1945), mas tanto num caso como no outro, esses cineastas desceram da grua, se embrenharam na pesquisa com o elenco para encontrar um milhão de inquietações humanas que reflete uma guerra. Nolan parte da ideia de que a humanidade é violenta e bárbara, mas entre anônimos você encontra heróis. De fato, é fácil dizer que a humanidade é estúpida. Mesmo sendo um raciocínio generalizado, uma coisa é dizê-lo com doçura e inclusão, outra é olhar do alto, falar de fora. Distante. E é exatamente do alto que Nolan fala. Retomando filmes anteriores, o espectador pode não gostar de “A Origem” (2010) ou de “Interestelar”, mas ali o diretor tinha algo mais a dizer (ainda que sempre com o defeito da redundância). “Dunkirk” atém-se à introdução. Depois de 10 minutos não tem o que acrescentar. Destacam-se apenas o episódio do náufrago (Cillian Murphy, de “Batman Begins”), que não quer voltar para a guerra, e a cena em que um grupo de sobreviventes acuados no porão de um barco encalhado luta para não serem alvejados pelas balas de um inimigo que está lá fora, e ninguém se atreve a sair para ver sua face. Nolan também nunca foi um grande encenador. Pensando os filmes dele, no papel – apesar daquela mania de não deixar subtexto, precisa sempre explicar – , o sujeito tem engenho. Agora, quando se põe a filmar é uma lástima. Na entrevista de divulgação de “Batman – O Cavaleiro das Trevas Ressurge”, ele teve a manha de abrir o jogo sobre sua opção pelo formato IMAX. Disse que a resolução do suporte era tão grande, que ele não precisava mais perder tempo em filmar os detalhes. Captava em plano geral e quando precisava de algo particular em cena, sabia que o editor podia dar um zoom eletrônico sem perdas de resolução. Hitchcock, Kubrick, e outros diretores de verdade jamais pensariam assim. Claro, ele não é supervalorizado como diretor apenas por isso. Basta recapitular as cenas mais memoráveis de “A Origem”, ou do melhor dele, “O Cavaleiro das Trevas” (2008), para perceber como ele se apóia na direção de arte, na edição e na trilha sonora. Tirou os três de cena e Nolan vira um engenheiro de obras. Sua vantagem é a inteligência, ele tem consciência de seus limites. Tanto que sobrevaloriza a participação dos três setores. Em “Dunkirk”, chega a exceder a confiança que deposita em Hans Zimmer. A trilha-relojinho que o compositor criou para pontuar a narrativa gera um certo interesse por cinco minutos, depois a insistência segue a mesma filosofia de redundância. Em “A Origem”, havia pelo menos o prazer lúdico de ver o diretor alinhando as peças no tabuleiro e fazendo tudo amolecer e derreter como num quadro de Dali. Em “O Cavaleiro das Trevas”, havia Heath Ledger para trombar pelos cenários e zombar com a mania de rigoroso controle de Nolan. Em “Dunkirk” temos o quê? Nada que transcenda o mero jogo de peões.
De Canção em Canção exalta obsessão de Terrence Malick pela beleza mundana
O azar de Terrence Malick foi a crítica ter adorado “A Árvore da Vida” (2011), em que ele usou talvez pela primeira vez o uso da câmera-chicote, que trabalha a aproximação e a rejeição ao mesmo tempo. É um tipo de efeito muito interessante, mas imagina só ver uma obra inteira feita dessa maneira, e com cortes rápidos, que impedem que quase nunca possamos ver imagens estáticas, a não ser quando a câmera está dentro de um barco, por exemplo – como na cena com Cate Blanchett (“Carol”) em seu novo trabalho, “De Canção em Canção”. O que se pode perceber também na nova obra é o quanto Malick passou de cineasta existencialista e religioso para um homem interessado nas coisas, digamos, mais mundanas. Ele aborda o amor, algo transcendental em qualquer forma que seja apresentado, mas o diretor está muito interessado em filmar rostos bonitos. Se em “A Árvore da Vida” e também em “Amor Pleno” (2012), Jessica Chastain e Olga Kurylenko pareciam figuras angelicais, esse sentimento é deixado de lado no novo filme. Ou ao menos, é diminuído consideravelmente, já que a personagem de Rooney Mara (“Lion”) parece estar vivendo uma crise de consciência tremenda, ao ficar com dois homens ao mesmo tempo, traindo o namorado vivido por Ryan Gosling (“La La Land”) pela personificação do cafajeste conquistador vivido por Michael Fassbender (“X-Men: Apocalipse”). Os dois atores, é bom dizer, funcionam muito bem dentro desses papéis. Não é uma má escolha no casting. Mas o excesso de voice over e de tentativa de dar profundidade às suas angústias acaba por tirar-lhes a voz. Por causa disso é que uma cena que deveria ser impactante, envolvendo Natalie Portman (“Jackie”), acaba não tendo força. Seria por culpa da edição, que tirou muito de sua personagem no enredo? Quem sabe. Mas o fato é que assistir a “De Canção em Canção” é quase um desafio. Não é todo mundo que entra na sala de cinema e fica até o final. Muitos espectadores vão embora, coisa que aconteceu com “A Árvore da Vida” também. Assim, é preciso entrar na sala esperando ver um filme de Terrence Malick. O Malick dos anos 2010, mais disposto a contar uma história de maneira fragmentada e estilizada, com uma câmera que não para de rodopiar, quase como num cacoete. O filme também gera frustração na questão da música, que é o pano de fundo da trama e está em evidência no título. Algumas das canções são muito boas, mas quando elas começam a tocar e o filme fica parecendo um belo trailer (como são belos os trailers dos filmes do Malick, hein?), são interrompidas, causando mais irritação. Tudo em prol de manter flutuantes os vai-e-vens da câmera do mexicano Emmanuel Lubeski (tricampeão do Oscar). Aliás, uma das melhores coisas do filme e o que mais segura o espectador é a beleza das imagens que Lubeski capta. Mais até que o interesse pelos roqueiros famosos filmados (Patti Smith, Iggy Pop, Red Hot Chilli Peppers, John Lydon, Florence Welch, Lykke Li, Tegan & Sara, etc). E entre as belas imagens está o elenco. Cate Blanchett aparece pouco, mas poucas vezes foi fotografada de forma tão deslumbrante como em “De Canção em Canção”. É até perdoável que Malick tenha se deixado inebriar pela beleza de suas atrizes, entre elas a francesa Bérénice Marlohe (“007 – Operação Skyfall”). Fazer cinema é muitas vezes registrar a beleza dos corpos jovens da melhor maneira possível, a fim de eternizá-los. Em alguns momentos, Malick quase se deixa levar pelo lado mais sensual, com personagens, principalmente as femininas, tocando ou tendo tocado o seu sexo com volúpia. E, nisso, vale destacar também uma cena de amor entre duas mulheres, o que só aumenta o sentimento de fascínio do diretor pela beleza sensual, ainda que seja uma beleza sempre branca, emoldura por filtros e por uma arquitetura luxuosa e envolta pelas coisas que o dinheiro pode comprar.
Cartas da Guerra contrasta o horror de batalhas sem sentido com a beleza da poesia
De um lado, o amor, de outro, a guerra. De um lado, a poesia, de outro, o sangue e a violência. O filme “Cartas da Guerra”, do cineasta português Ivo Ferreira, se nutre desses contrastes o tempo todo. O que o filme nos mostra é um acampamento de guerra, ações, confrontos. O personagem António (Miguel Nunes, astro de novelas portuguesas), convocado como médico pelo exército para atuar na guerra colonial de Angola, cuidando de feridos, triste e solitário, escreve cartas e um romance e tem com um superior hierárquico um ponto de contato intelectual, alimentado por conversas, ao jogo de xadrez. O que mais se vê, no entanto, são soldados vivendo o cotidiano embrutecedor da guerra. Se as imagens, maravilhosas em preto e branco, focam a guerra, o áudio é pleno de amor e poesia. Lindas cartas de amor apaixonado, poético, se sucedem ao longo do filme. Amo-te em tudo e sempre é uma das coisas mais repetidas nas cartas, que exploram literariamente a ausência da amada, da casa, dos pequenos prazeres da vida. É António escrevendo à sua esposa, a quem ele é fiel e de quem é sinceramente apaixonado. Mas ele está irremediavelmente longe da mulher amada, já grávida, e da filha que ele não poderá ver nascer, nem embalar, para seu desespero. De 1971 a 1973, ele escreve cartas de amor permanentemente, recebe as respostas que a gente não ouve, nem vê. E começa a escrever um romance. É o que o motiva a sobreviver. O contraste entre as belas mas terríveis imagens de batalha e a pureza de sentimentos do médico, aspirante a escritor, em suas cartas, produz uma espécie de curto-circuito entre a beleza do amor e a violência sem sentido de uma guerra colonial brutal. O impasse entre o desejo pelas coisas simples e cheias de humanidade e o horror do sangue jorrado em vão e da morte sem sentido, tese e antítese a clamar por uma síntese, que não virá. O que “Cartas da Guerra” nos mostra é a angustiante espera, a vida que se põe em suspensão e na incerteza. Só o amor para sustentar tal espera. Para além do sentimento, há a força das palavras, essencial para significar a vida e tudo o que acontece. A literatura como elemento de salvação. Baseado no romance homônimo de António Lobos Antunes, “Cartas da Guerra” é um filme de guerra belo, poético, amoroso. Não se dirige a uma racionalidade pacifista, mas às emoções que o conflito cria ou suprime. Mostra o contraste entre a vida de dentro e de fora da guerra, vivido por um ser humano sensível, capaz de colocar em palavras, bem escolhidas e encadeadas, a expressão de sentimentos de uma quadra decisiva da sua existência.











