Canastra Suja é filme importante desrespeitado pelos cinemas brasileiros
Para quê fazer cinema no Brasil, se o circuito exibidor trata a maioria dos filmes (os que não são derivados/produções de TV) com tanto desrespeito? Tudo bem que a fila precisa andar, levando em consideração a quantidade gigante de lançamentos. Mas a verdade é que os filmes brasileiros não estão sendo lançados; estão sendo arremessados. Muitos só encontram um único horário e se são lançados em cinema de shopping só duram mesmo uma semana em cartaz e pronto. Não há tempo para o boca a boca. Trata-se, infelizmente, do caso de “Canastra Suja”, terceiro longa de Caio Sóh, cineasta que não consegue projeção nacional porque seus filmes não chegam aos cinemas de todo o país. “Canastra Suja”, em particular, tem gerado um clamor justificado, pois se trata de um filme que tem despertado muitas paixões. Há, claro, o caso de algumas críticas negativas, em especial uma famosa publicada no jornal O Globo, e que alguns dizem ser responsável pelo fracasso comercial do lançamento, mas há, sem dúvida, pouco recurso para contra-atacar com marketing, já que as imagens de divulgação são de arrepiar, muito atraentes para quem não viu e muito significativas e emocionantes para quem já viu o filme. Mas falemos do filme em si, que já começa com uma câmera subjetiva de alguém adentrando uma casa humilde. Mais tarde, a história retoma a este ponto. Assim, logo em seguida, somos convidados a conhecer os dramas dos habitantes daquela casa, o pai Batista (Marco Ricca), a mãe Maria (Adriana Esteves) e os filhos jovens Emília (Bianca Bin) e Pedro (Pedro Nercessian) e a adolescente especial Ritinha (Cacá Ottoni). Entre os demais personagens importantes, há que se destacar o amigo da família Tatu (David Junior), namorado de Emília. Batista é alcoólatra e está tentando deixar o vício, e tem a intenção de levar o filho a seguir seus passos no trabalho de manobrista, já que o rapaz não quer saber de estudar e nem tem nenhuma formação profissional. Em clima de desgraça pouca é bobagem, mas também trazendo muito humor diante dos percalços de seus personagens, o filme vai aos poucos levando-os a uma espiral de descida aos infernos, com seus dramas se acentuando cada vez mais. O diretor e seu elenco têm a habilidade de manter a trama envolvente, por vezes divertida (como não se divertir com as cenas de Pedro e Tatu em um clube muito especial?), mas por vezes devastadora. Daí, as várias semelhanças que alguns críticos têm feito com a obra de Nelson Rodrigues, embora do ponto de vista do cinema possamos lembrar tanto do neorrealismo italiano (“Rocco e seus Irmãos”!) quanto do cinema brasileiro dos anos 1970 e 1980, quando os nossos filmes tinham de fato a intenção de destoar das telenovelas. no que se refere à exploração e explicitação dos problemas sociais. Aliás, falando em telenovelas, que bom que é poder ver Bianca Bin, uma atriz linda e talentosa, saindo um pouco da TV e enriquecendo o nosso cinema. O longa foi feito de forma bastante independente. Até a distribuidora é desconhecida, provavelmente própria. O elenco ajuda com a produção e o simbolismo da cena do karaokê é representativo deste espírito de união da equipe para a realização da obra. Assim, chegar até o final da narrativa é chegar a um ponto de extravasamento das emoções, acumuladas diante de tantas situações ruins vividas por aqueles personagens de quem aprendemos a gostar em pouco tempo de metragem, mas também pelas dificuldades econômicas da produção. Por isso é fácil entender a aposta que todo o elenco fez no filme, abrindo mão de seus cachês por acreditar na proposta de Sóh. Agora é torcer por ao menos uma maior visibilidade nos serviços de streaming. O importante é que este filme seja visto. Muito visto.
Hereditário é um dos grandes filmes de terror deste século
O cineasta estreante Ari Aster inicia “Hereditário” como um filme sobre luto, sobre como qualquer família jamais será a mesma após a morte de um ente querido. Com esse clima de dor no ar, ele adiciona mais um tema na trama: como herdamos os demônios de nossos pais e não conseguimos fugir disso. Mas o que parece um drama, aos poucos revela suas entranhas de filme de terror. Toda a primeira metade de “Hereditário” trata esse horror de forma metafórica, abordando cada ponto que despedaça uma família após o falecimento de sua matriarca (fato explicado no primeiro frame na forma de obituário), incluindo uma tragédia, que é a melhor cena do filme, e que você jamais esquecerá. A linha tênue entre os gêneros faz com que ambos se complementem e é muito bem conduzida pelo jovem diretor, de apenas 31 anos. Ele aposta 100% no talento de Toni Collette como Annie, que entrega provavelmente sua melhor performance desde “O Sexto Sentido”. Aliás, pode-se até fazer um paralelo entre os dois filmes, imaginando Collette como a mesma mãe quase duas décadas após o longa que tirou da obscuridade o cineasta M. Night Shyamalan. Há uma cena especialmente dramática durante um jantar, em que a protagonista desabafa contra o filho adolescente, Peter (Alex Wolff), que é mais assustadora que qualquer cena de horror do filme e serve muito bem para ilustrar qualquer indicação de Collette a prêmios de Melhor Atriz. Ela só é menos assustadora que a cena trágica já mencionada, mas a atriz se converte num terror em forma de mulher nesse momento. Vale esmiuçar a tal cena trágica, ainda que sem revelar muito, para destacar sua construção. Há uma morte inesperada. Ari Aster corta o violento fragmento de segundo e foca imediatamente no rosto de Alex Wolff, que reage com espanto ao mesmo tempo em que a ficha insiste em não cair. A câmera não sai de seu rosto nem mesmo quando a personagem vivida por Collette encontra o corpo e grita com todo o horror do mundo nas costas. Tudo isso ocorre num ambiente escuro e, de repente, Aster corta sem dó para a luz do dia com a câmera grudada numa parte do corpo que jamais imaginamos que seria mostrada. É horrível (no bom sentido) e um exemplo perfeito de como o explícito pode tomar conta do filme após uma antecipação muito bem construída pelo implícito. Sinal de surgimento de um novo grande diretor. Aster ainda reafirma que veio para ficar com outras transições impecáveis. Há uma cena elegante em que o rosto da filha mais nova, Charlie (a incrível Milly Shapiro, com seu tique clássico desde já), é substituído pela face da mãe quando uma luz estoura na tela. Também há outra parte em que Peter está sentado na cama e, num piscar de olhos, Aster corta a situação para o rapaz sentado na cadeira da sala de aula. Perspectiva é mais uma parte do show. Por exemplo, o detalhe da maquete da casa onde se passa 90% do filme, que faz alusão a uma força externa que manipula quem está lá dentro. Enquadramentos geniais também, como a cena em que Peter acorda no meio da madrugada e fica sentado em sua cama. Do lado de cá da tela, nossos olhos se esforçam para identificar um vulto ao fundo e, quando confirmamos que realmente algo está ali, a reação é de gelar a alma. Não se pode esquecer que nada disso seria ressaltado se Aster não dominasse a habilidade de contar bem uma história. Sucesso que passa pelo espectador disposto a embarcar numa viagem sem volta rumo ao inferno, pois uma vez que o diretor admite o sobrenatural na trama, ele pede para que a lógica seja desligada na hora em que tentamos ligar os pontos da trama. Claro que podemos entender o sobrenatural como o clímax sem esperança para a inevitável desestruturação de uma família traumatizada. Mas não ignore o que seus olhos finalmente estão vendo: as pistas estão todas em seus devidos lugares e ajuda muito fazer uma segunda sessão de “Hereditário”, um terror que se inspira mais no medo do desconhecido do que nos sustos fáceis. Por isso mesmo, jamais será um filme popular, mas tem tudo para figurar entre os grandes do gênero neste século, como um sucessor direto de clássicos como “O Bebê de Rosemary”, “O Exorcista”, “A Profecia” e “O Iluminado”.
Novo Jurassic World mostra que a franquia não têm fôlego para tantas sequências
Quando “Jurassic World” saiu em 2015, a continuação disfarçada de reboot atualizou a franquia e conceitos do amado filme original de 1993 para uma nova geração. Mas a sequência tinha a obrigação de levar a franquia adiante e não condená-la à repetição eterna do esquema “dinossauros à solta, salve-se quem puder”. Pois bem. “Jurassic World: Reino Ameaçado” troca o sem sal Colin Trevorrow, do “Jurassic World” anterior, pelo muito mais talentoso J.A. Bayona na direção. Mas se “Jurassic Park” era só efeitos digitais com um fiapo de roteiro, “Reino Ameaçado” exagera em narrativas sem saber muito bem qual caminho trilhar. São mais ou menos quatro filmes diferentes misturados na mesma trama e todos mal desenvolvidos, resultando um roteiro esquizofrênico que não consegue fazer suas diferentes partes dialogarem entre si. A primeira parte é uma versão atualizada de “O Mundo Perdido: Jurassic Park”, mas com um vulcão em erupção. A ideia chega a ser bacana para os fãs incondicionais, porque juntar vulcão e dinossauros soa como algo digno de blockbuster. Mas não é bem por aí. Afinal, quando a correria de humanos, dinossauros e lava tomam conta da tela, o filme encerra o primeiro ato para dar lugar a um dos momentos mais chatos de toda a franquia. Porém, antes de implodir, essa parte do vulcão traz uma interessante discussão a respeito de direitos dos animais (algo explorado em “O Mundo Perdido”), uma nova extinção dos dinossauros e termina com uma cena emocionante, que é a melhor do filme. E, cá entre nós, apenas esse ato renderia um longa satisfatório, caso fosse devidamente desenvolvido. Seria repetitivo, mas não vergonhoso. Mas, então, vem o segundo ato, que não passa de um intervalo longo para o clímax, apenas para repetir tudo aquilo que já sabíamos e sem trazer a mínima novidade: a raça humana não aprende, quer brincar de Deus e ganhar muito dinheiro sem saber exatamente onde e como gastar. Os protagonistas, novamente interpretados por Chris Pratt e Bryce Dallas Howard, não tem muito o que fazer nesse segmento, então ficam parados, falando e pensando, enquanto a trama vira um leilão de dinossauros tão divertido quanto as cenas de políticos no senado de “Star Wars: A Ameaça Fantasma”. E numa mansão estilo Bruce Wayne, onde a Batcaverna dá lugar a um laboratório/prisão. Vejam só o nível do entretenimento: saímos da ilha para uma mansão. Nesse meio tempo, entre até mesmo um clone humano na trama, que não é essa revelação tão surpreendente que os roteiristas queriam. Enfim, esse cenário logo vira um filme de terror censura livre, temática em que J.A. Bayona se sente à vontade e permite ao diretor de “O Orfanato” e “Sete Minutos Depois da Meia-Noite” exercitar sua verdadeira vocação entre sombras, luzes e sustos. É o terceiro ato. Bayona acha espaço para seu toque pessoal mesmo quando demonstra o quanto “Jurassic Park” e Steven Spielberg inspiraram sua criatividade como cineasta. Mas é um tanto esquisito ver que os planos gigantescos e abertos da ilha no primeiro ato foram substituídos por um pega-pega dentro de uma mansão proporcionada por mais um dinossauro mutante (o T-Rex não é assustador o suficiente?). Os críticos que reclamaram quando Spielberg mostrou um velociraptor abrindo porta no “Jurassic Park” original, não poderiam prever que, um dia, “Reino Ameaçado” traria um dino sorrindo sarcasticamente e outro capaz de “lê” uma placa (vai saber) sobre vazamento de gás de modo a correr tão rápido quanto Tom Cruise antes de ser consumido pelo impacto e o fogo. O ato final dentro de “Reino Ameaçado” é um gancho safado para mais uma sequência. É uma reviravolta tão inesperada quanto esdrúxula, porque o filme não conduz a trama para esse um clímax, que lembra outra franquia com animais, indicando um futuro diferente, mas que não garante a empolgação desejada. Pelo contrário, a ideia de um “Planeta dos Dinossauros” causa estranheza, desconfiança e a sensação de que tentaram inovar, mas sem a mínima certeza do que estavam fazendo. De positivo, Chris Pratt e Bryce Dallas Howard apresentam seus personagens de forma mais humana e vulnerável neste longa. O tema clássico de John Williams continua lindo, embora toque com vontade mesmo só nos créditos finais e conduzido aqui pelo mestre Michael Giacchino. Os efeitos visuais e sonoros também permanecem incríveis, como já eram desde o início dos anos 1990. A conclusão é que, na verdade, “Jurassic Park” não nasceu para ter tantas sequências. No máximo, uma continuação. Mas, diferente de “Alien” e “O Exterminador do Futuro”, o público parece correr para os cinemas cada vez que um novo longa é lançado. Mesmo que repita praticamente a mesma história de sempre, filme atrás de filme. E qualquer tentativa de sair disso apenas se mostra uma alternativa ainda pior.
Rei transforma narrativa de épico histórico em cinema experimental
Quem tem o hábito de ver muitos filmes, tem hora que se cansa da repetição de temas, de personagens e, principalmente, da forma de tratá-los. Além de encontrar com frequência os mesmos atores e atrizes em papéis principais, sobretudo na produção de países dominantes no cinema, como Estados Unidos e França. As narrativas clássicas, que contam uma história com começo, meio e fim, nessa ordem, com finais felizes, estão em baixa. No entanto, recursos como ir e voltar no tempo ou misturar o real com o imaginado, sonhado ou desejado, não chegam a alterar muita coisa. A forma como os conflitos são resolvidos, correndo contra o tempo até o último minuto, já se tornou algo insuportável. Finais muito abertos e indefinidos nem sempre acrescentam algo ao espectador, além de confundi-lo. E por aí vai. Há grandes cineastas de talento que, usando a narrativa clássica, aliada à criatividade no uso das câmeras, no modo de filmar, produzem grandes obras. Em todo caso, é bom buscar novidades e estar aberto a provocações. Nem tudo o que é novo é bom, é claro, mas não custa conferir. Tudo isso a propósito de um filme experimental que chegou aos cinemas e que merece atenção. “Rei”, do chileno Niles Atallah, tem uma narrativa fragmentada, como a história que ele conta. Aborda um personagem francês, um aventureiro, que em 1860 partiu para a região de Araucanía, no sul do Chile, com a intenção de formar um reino e dele se tornar rei. Supostamente, com o aval do chefe indígena da região. Ao chegar lá, com a ajuda de um guia, descobre que esse chefe está morto e fica difícil justificar sua viagem diante do governo chileno, que o prende e o acusa de usurpação indevida de território e traição ao país, ainda que a região pretendida pelo aventureiro fosse inóspita e estivesse nas mãos dos indígenas. Teriam eles o direito de sagrá-lo rei de Araucanía e Patagônia? É uma história estranha, misto de realidade, fantasia, delírio. Uma coisa de sonhos, memórias perdidas, fantasmagorias. Registros precários e lendas sobre um estranho rei: Orélier-Antoine de Tounens. Para penetrar nessa curiosa e inusitada trama, em que faltariam muitos pedaços, o diretor de “Rei” se utiliza de sofisticadas filmagens, produzidas como filmes antigos, cheios de bolas, borrões, riscos, imperfeições na tela. Inclui fragmentos de filmes realmente existentes? Talvez. Mas não importa. Cria-se um mundo ilusório de pesquisa imagética, com referências a um passado remoto, anterior à criação do cinema. E filma-se, também, o que seria a reconstrução da saga do viajante francês em encenações atuais, com boa qualidade de imagens. O suposto julgamento pelo governo chileno é encenado com os personagens cobertos por máscaras grossas, o que impede qualquer representação realista dos supostos fatos. Descaracteriza a representação cênica dos atores, que fica resumida a bonecos falantes. O filme alterna esses fragmentos narrativos e as diferentes formas filmadas, sem pretender chegar a contar uma saga coerente ou completa. Mas reconstrói, ao menos parcialmente, a lenda e vai além da simples loucura ou delírio extravagante, para se perguntar: o que há de relevante e coerente em tudo isso? O que significa uma figura como essa, que ocupa a cena, quando já estaria desaparecendo de qualquer registro ou memória, se não fosse resgatada em um filme? Esse resgate é importante? Por quê? Enfim, não se trata de uma busca de respostas. Mas, sim, de um exercício de investigação e recuperação da memória e dos sonhos, matéria prima do humano e do coletivo. “Rei” foi vencedor do prêmio de melhor filme no Festival de Cinema Latino-Americano de Toulouse, na França, em 2017.
Vingança usa violência como arma de empoderamento
Existe um subgênero do terror conhecido como “rape and revenge”, que faz justamente o que a sua alcunha sugere: mostra cenas de estupro seguidas por uma sanguinolenta vingança. Voltado para o público masculino, este subgênero gerou nos últimos anos alguns produtos de gosto duvidoso, como a franquia “Doce Vingança”, e parecia não ter muito conteúdo a oferecer, a não ser àqueles que ainda aguentam ver mulheres sendo submetidas a situações de objetificação sexual e extrema violência. A produção francesa “Vingança” tinha tudo para ser mais um desses filmes, mas não é. E o motivo para isso é simples: é escrito e dirigido por uma mulher. Estreando aqui no comando de um longa-metragem, a cineasta francesa Coralie Fargeat também é responsável pelo roteiro, que acompanha Jen (a italiana Matilda Anna Ingrid Lutz, de “O Chamado 3”), uma jovem que viaja para um local isolado para passar alguns dias com Richard (o belga Kevin Janssens, da série “Vermist”), um homem casado com quem ela mantém um relacionamento. O sossego dos dois é interrompido pela presença de Stan (Vincent Colombe) e Dimitri (Guillaume Bouchède), identificados apenas como “associados” de Richard, que chegaram mais cedo para a caçada anual que eles fazem pelo deserto que cerca a casa. E não demora a acontecer aquilo que o nome deste subgênero sugere. Mas por mais que Fargeat nos leve para lugares conhecidos, o caminho utilizado é pouco viajado. Assim, se o início apresenta Jen como um objeto sexual – com closes constantes da bunda dela –, o objetivo não é explorar o corpo da atriz, mas dialogar com a percepção que o público masculino tem acerca desse tipo de filme. A cineasta mostra o que o público espera ver, apenas para subverter essa visão em seguida. Isso é mais notável na cena do estupro, na qual a diretora afasta a câmera ato em si para aproxima-la do personagem que assiste aquilo – sendo que ele é um reflexo do voyeurismo do próprio espectador. Aliás, é interessante perceber como o roteiro não desenvolve nenhum dos personagens. Em vez de diminuir o alcance da narrativa, tal escolha a amplia, pois cada uma daquelas pessoas se torna representações muito mais amplas do seu gênero. A proposta da realizadora é criar um microcosmo de uma realidade cada vez mais presente na nossa sociedade. Os homens, neste caso, representam todos os homens que já cometeram atos de violência contra as mulheres. E o oposto é verdadeiro. Isso justifica o fato de a protagonista parecer imortal, continuando viva mesmo após perder litros de sangue. Afinal, ela carrega consigo a força de todas as mulheres. A diretora se utiliza de simbolismos para dar corpo à sua obra. É bastante significativo, por exemplo, que a primeira vingança empreendida por Jen seja contra aquele que viu o ocorrido, mas não fez nada para impedir. E o castigo que ele recebe tem a ver com essa ideia do olhar. Também é notável como, em certo momento, a protagonista precisa retirar um objeto fálico de dentro de si – um galho – e como este é substituído pela imagem de uma águia, simbolizando a liberdade. Tudo isso faz parte da transformação pela qual ela passa ao longo da projeção. E embora ela apareça correndo pelo deserto vestindo apenas de calcinha e sutiã, essa imagem não tem o intuito de ser sedutora, mas empoderadora.
Selfie para o Inferno é vídeo viral que não consegue conexão no cinema
Com a evolução da tecnologia e o barateamento dos custos para a realização, a produção de curtas-metragens de terror se proliferou nos últimos anos. Uma busca rápida na internet mostra a enorme quantidade de pequenos filmes feitos apenas com o intuito de pregar um susto no espectador. De vez em quando, algum desses curtas se destaca, atingindo um grande número de visualizações e de compartilhamentos. Quando isso acontece, é normal que algum estúdio ou executivo enxergue ali a possibilidade de gerar lucro, ignorando o fato de que talvez aqueles vídeos tenham funcionado justamente pela sua curta duração. Foi o que aconteceu com os curtas “Mamá”, de Andy Muschietti, e “Lights Out”, de David F. Sandberg, que geraram os longas “Mama” e “Quando as Luzes se Apagam”. E apesar de estes títulos terem apresentado alguns problemas ao serem transpostos para a longa duração, ao menos apontaram que, por trás das câmeras, havia um talento em potencial (Muschietti depois dirigiu “It: A Coisa” e Sandberg fez “Annabelle 2: A Criação do Mal”). Mas o recente “Selfie Para o Inferno”, dirigido por Erdal Ceylan, não faz nem isso. Não apenas o curta que o originou é ruim, como todos os problemas já vistos na pequena obra são exponenciados aqui, criando um longa-metragem extremamente problemático, mal feito e nada assustador. Escrito pelo próprio Ceylan, o roteiro acompanha Hannah (Alyson Walker), uma jovem que recebe a visita da sua prima, a youtuber Julia (Meelah Adams) e percebe que ela está agindo de maneira estranha – por ter se recusado a tirar uma selfie com ela no carro – mas prefere não falar nada. Já em casa, e sem nenhum motivo aparente, Julia vence o seu medo de tirar uma selfie, mas, quando o faz, percebe-se uma sombra atrás dela na foto. Essa sombra se aproxima a cada nova foto, o que não impede Julia de continuar tirando fotos de si mesma, culminando no momento em que ela é atacada. Depois do ataque, ela fica num estado de coma – mas não é levada para um hospital. Hannah, por sua vez, passa a receber estranhas mensagens no seu celular e começa a ser ameaçada pela mesma entidade que feriu a sua prima. Ceylan parece preso à estrutura do curta-metragem, apressando-se para introduzir logo uma situação de perigo e sacrificando o desenvolvimento dos personagens. Desta forma, o relacionamento daquelas pessoas nunca soa verdadeiro, em parte pela inexpressividade dos atores e em parte porque o roteiro tenta estabelecer essa relação por meio de diálogos expositivos e cenas que servem apenas como um respiro entre as sequencias de terror – que não conseguem causar um susto sequer. Assim, o diretor pula de um momento supostamente assustador para outro, esforçando-se para criar tensão, mas sem nunca atingir esse objetivo. Tais tentativas, porém, causam um sério problema de ritmo na narrativa. Além de cometer erros básicos de continuidade, como ao mostrar um ponto de vista da câmera do celular filmando na horizontal, sendo que a personagem está segurando o aparelho na vertical, o realizador também parece atirar para todos os lados, apresentando diversas teorias e possibilidades a respeito dos perigos que cercam a protagonista. E por mais que ele tente esclarecer tudo no final, a sua explicação – que ainda deixa muitas pontas soltas – serve apenas como uma desculpa pouco convincente para justificar os motivos que levam aquelas pessoas a passarem o filme inteiro se colocando em situações de perigo, em vez de buscarem a segurança. Ao final dos seus longos e arrastados 71 minutos de duração, “Selfie para o Inferno” se mostra tão esquecível quanto um stories do Instagram dois dias depois de ser postado.
História de Anna Karenina ganha “continuação” russa em clima de guerra
“Anna Karenina”, o romance de Liev Tolstói, se prestou a várias adaptações cinematográficas de sucesso e a produções bem cuidadas, caprichadas. A forte personagem feminina que encara o seu desejo, enfrenta os homens que ama ou que a amam e recebe a reprovação da sociedade, levando a um destino trágico, é muito atraente e sempre deu margem a reflexões sobre a questão de gênero, nas várias épocas em que foi encenada. Grandes atrizes viveram a personagem, começando por ninguém menos do que Greta Garbo, em filme de Clarence Brown, de 1935. A também grande Vivian Leigh a viveu no filme de 1948, dirigido por Julien Duvivier. Jacqueline Bisset oi Anna Karenina em filme de Simon Langton, de 1985. Em tempos mais recentes, Sophie Marceau encarnou-a, no filme dirigido por Bernard Rose em 1997, e Keira Knightley, no filme de Joe Wright, em 2013. Uma nova versão vem da Rússia, dirigida por Karen Shakhnazarov, o cineasta que fez “Tigre Branco”, em 2012, um espetáculo de suspense e guerra, com cenas muito bem construídas, de grande impacto cinematográfico. Com um talento para esse tipo de sequências, o drama intimista de Anna Karenina não ofereceria grandes oportunidades para a exploração de cenas em campo aberto, vistosas, como ele sabe fazer. Shakhnazarov inovou, fundindo a história de Tolstói com um outro conto russo, que se passa no acampamento militar/hospital, em plena guerra Rússia-Japão, de 1905: a história de Vronsky. Ali, dois personagens, seu filho e seu amante, tentam entender a tragédia vivida por Anna Karenina, em meio às providências de guerra, ataques, explosões, e o filme fica com a cara de Shakhnazarov. O recurso permite pensar a posteriori sobre o drama, mas acrescenta pouco à situação dramática e até confunde um pouco o entendimento da trama. Penduricalhos como a da órfã de guerra chinesa, que circula pelo acampamento militar, não se justificam. Em contrapartida, o filme adquire uma beleza visual admirável. “Anna Karenina: A História de Vronsky” vale pelas sequências externas, não só da guerra, mas também da corrida de cavalos no Jóquei: brilhante. O baile é muito bem encenado, com riqueza na direção de arte, figurinos. Enfim, é uma produção muito bonita e bem cuidada, sob a batuta de um cineasta muito competente, em que pesem as restrições que se possam fazer à sua estruturação dramática.
As Boas Maneiras vence o medo do cinema brasileiro de fazer terror de qualidade
A pouca popularidade da literatura fantástica feita no Brasil, pelo menos dentre os best-sellers nacionais, na comparação com seu sucesso nos Estados Unidos e na Inglaterra, acabou por ricochetear em nosso cinema, que tem bem mais títulos do gênero que muitos imaginam, ainda que apelem mais para o trash e para a comédia. O fato é que a falta desta tradição criou uma resistência ao terror brasileiro entre o público médio, que desconfia das investidas nacionais no gênero. Mas o salto que a dupla Juliana Rojas e Marco Dutra dá, do suspense psicológico de “Trabalhar Cansa” (2011) para a fábula de terror “As Boas Maneiras” é bem grande – ainda que, pelo meio do caminho, Marco Dutra tenha apresentado um belíssimo filme de possessão e casa assombrada, “Quando Eu Era Vivo” (2014). “As Boas Maneiras” é um filme de lobisomem, que entretanto acumula elementos que podem parecer corpos estranhos dentro do que se espera desse contexto. Há até mesmo cenas em que alguns personagens começam a cantar, evocando o drama musical “O que se Move” (2012), de Caetano Gotardo – com a presença de Cida Moreira aproximando os dois. A narrativa é visivelmente dividida em duas partes. No começo, Clara (Isabél Zuaa, que conquistou muitos fãs com sua performance de mulher intensa e forte em “Joaquim”) vai pedir emprego de babá na casa de Ana (Marjorie Estiano, excelente). Mas Ana procura uma pessoa que também cuide da casa e dela mesma, nos primeiros estágios da gravidez. Como precisa de dinheiro com urgência, Clara aceita, dando início a uma relação de cada vez maior intimidade entre as duas. Uma intimidade que une tanto a carência afetiva quanto o gosto de Clara por mulheres. Aos poucos, e de maneira deliciosa, começa a vir à tona a situação de Ana, seu misterioso gosto por carne, as dores grandes que sente na gestação e também somos apresentados à história de quando ela engravidou. De fato, a relação entre Ana e Clara é tão bela e singular que quando o filme parte para novos rumos se torna difícil não sentir falta dessa primeira parte. No entanto, a segunda parte tem o grande mérito de ser ainda mais corajosa, ao assumir explicitamente o cinema de horror, via homenagem ao clássico “Um Lobisomem Americano em Londres” (1981), de John Landis, além de evocar “Filhos do Medo” (1979), de David Cronenberg, e “Nasce um Monstro” (1974), de Larry Cohen, entre outros. Apesar dessas citações, “As Boas Maneiras” tem uma brasilidade muito forte, com festas juninas e uma projeção de São Paulo próxima do gótico, com a força da lua sempre sendo um elemento presente. A fotografia é linda e de autoria do português Rui Poças, conhecido por obras tão belas e distintas quanto “Tabu” (2012), “O Ornitólogo” (2016), “Zama” (2017) e “Severina” (2017). Mas o filme também conquista do ponto de vista humano. Tanto nas relações de afeto entre Clara e Ana, quanto nas relações de mãe e filho entre Clara e o menino Joel (Miguel Lobo). O pequeno Joel, dada sua condição de lobo, precisa se submeter a certos sacrifícios. É até possível que o espectador saia um pouco contrariado da sessão, por não encontrar nem um terror tradicional nem um drama típico, sem perceber que ver uma obra como esta no cinema brasileiro é um privilégio e tanto. Uma obra que marca época e impacta o desenvolvimento dos filmes de gênero no país.
Oito Mulheres e um Segredo é realmente a versão feminina de um filme já visto
Quem gosta de “Onze Homens e um Segredo” tem tudo para apreciar Sandra Bullock (como Debbie, a irmã do Danny Ocean de George Clooney), Cate Blanchett, Anne Hathaway, Sarah Paulson, Rihanna, Helena Bonham Carter, Mindy Kaling e Awkwafina em “Oito Mulheres e um Segredo”. Já quem acha um porre e se diverte bem menos que os astros e as estrelas da tela nesse tipo de filme, vai ter uma razão a mais para odiar, porque a intenção de “Oito Mulheres e um Segredo” é mesmo trazer de volta a atmosfera de “Onze Homens e um Segredo”, mas com um excepcional elenco feminino, que não deixa a mínima saudade de Clooney e sua turma. O filme faz parte da tendência hollywoodiana das continuações disfarçadas de reboots (ou vice-versa), como “Star Wars: O Despertar da Força” e “Jurassic World”, que mais ou menos repetem as estruturas consagradas dos roteiros originais como forma de reapresentar histórias velhas para uma nova geração. O curioso é que Hollywood tenha considerado a franquia de George Clooney, Brad Pitt e Matt Damon digna do mesmo tipo de tratamento, inclusive com uma cota de autorreferências e participações especiais. Está tudo em seu devido lugar de novo e outra vez. Inclusive em seu paradoxo primordial. Nesses filmes, os planos das “criminosas” não tem como ser levados a sério, embora sejam minuciosamente detalhados, sem fazer o menor sentido para quem está do lado de cá da tela. Enquanto personagens, falam, pensam, falam e pensam, o que fica para o espectador é o espetáculo visual, que consiste na observação de olhares, sorrisos, narizes empinados e como essas pessoas andam com estilo, vestem-se bem, e se comunicam de maneira esnobe. Aliás, por que os elencos desses filmes precisam falar quase que obrigatoriamente com empáfia? Será que o charme exala antipatia enquanto personagens caminham entre checkpoints grã-finos como galerias de arte, cassinos ou o Met Gala? É muito mais humano observar Helena Bonham Carter quebrar esse padrão, ao demonstrar insegurança, vulnerabilidade e um humor tão discreto quanto imprevisível. O mesmo serve para a sedução provocada por Anne Hathaway, com sua personagem que quer ser linda como uma Barbie, mas é, no fundo, uma menina mimada e ingênua. São as duas melhores atuações… Porque as líderes Sandra Bullock e Cate Blanchett, que são sempre extraordinárias, limitam-se aqui a fazer o perfil egocêntrico “comigo ninguém pode” de George Clooney nos filmes de Soderbergh. Como nos longas anteriores, “Oito Mulheres e um Segredo” também não apresenta conflitos ou grandes riscos para o elenco principal, muito mesmos reviravoltas surpreendentes. O enredo até inclui uma reviravolta. Mas ela não é memorável, pois só acontece quando, digamos, o filme esquece que havia terminado, estendendo-se desnecessariamente até gerar um anti-clímax. E há o problema da direção que não decola. Gary Ross é um cineasta que entrega o que está no roteiro. Seu talento aparece mais quando revisita o cinema clássico, mesmo que seja para atualizá-lo, como fez nos belos “Pleasantville” e “Seabiscuit”. Mas, aqui, sua dedicação é tão impessoal que ele visivelmente se esforça para parecer Steven Soderbergh. O detalhe é que nem sequer foi Soderbergh quem criou “Onze Homens e um Segredo”, materializado pela primeira vez em 1960 como veículo para Frank Sinatra, Dean Martin e Sammy Davis Jr. Claro que o remake de 2001 foi mais marcante. Mas o ponto é que Ross não tinha a necessidade de reproduzir os tiques de Soderbergh, que nem estava em sua praia indie quando topou entrar na brincadeira de “Onze Homens e um Segredo” com seus amigos. Ali, todos ganharam para se divertir. Da mesma forma que as atrizes deste filme. Afinal, se houvesse pretensão feminista e não apenas comercial no resgate da franquia como veículo para estrelas femininas, por que não contaram com uma mulher na direção? Assim, até a piada sobre isso, nos minutos finais, soaria mais pessoal e com personalidade. Fica a ideia para a sequência, já que estes caça-niqueis costumam virar trilogia. Se Soderbergh fez “Onze Homens”, “Doze Homens e “Treze Homens”, Sandra, Cate, Anne e cia devem retornar ainda em “Nove Mulheres” e “Dez Mulheres”. Até os números batem. Quem sabe, assim, consigam provar que conseguem fazer melhor, agora que já estabeleceram as personagens, podendo finalmente deixar a sombra dos “Onze Homens” e suas referências para trás.
Paraíso Perdido é experiência catártica poucas vezes vista no cinema brasileiro
Os musicais começaram a bombar nos Estados Unidos durante o período da chamada Grande Depressão, na virada dos anos 1920 para 1930, aproveitando o advento do cinema sonoro. Ir ver um musical tinha, portanto, um simbolismo imenso: a necessidade de encontrar em uma espécie de oásis em meio a turbulência do mundo lá fora. É isso que José, o personagem de Erasmo Carlos, proprietário da boate Paraíso Perdido, oferece aos que adentram o novo filme de Monique Gardenberg: esqueçam todos os seus problemas, esqueçam sua vida lá fora, bem-vindos ao “Paraíso Perdido”. Mais ou menos isso. E, de fato, o que se experimenta ao longo da duração do filme é realmente quase duas horas de trégua da dura vida. Não só isso. Por ser um musical, “Paraíso Perdido” não tem a preocupação de buscar fidelidade no campo do naturalismo das atuações e nem de fazer sentido em sua complicada trama familiar. As cores da fotografia, o gosto pelo brega e o respeito imenso ao amor (homo ou hetero) facilitam uma identificação com o cinema de Pedro Almodóvar, mas as canções, a maioria delas classificadas por muitos como bregas, são muito brasileiras, o que confere raízes absolutamente nacionais à trama. Como não gostar de um filme que já começa com uma bela interpretação de “Impossível Acreditar que Perdi Você”, de Márcio Greyck? E a música tem até mais espaço do que a fala ao longo da narrativa. As canções, além de muito queridas por todos os personagens, são fundamentais para que a experiência de se assistir ao filme seja arrebatadora, com vários momentos de arrepiar, em especial para quem não tem preconceito com canções mais populares e carregadas de emoções. Assim, há espaço para canções de Reginaldo Rossi, Odair José, Waldick Soriano, Belchior, Zé Ramalho fazendo cover de Bob Dylan, Gilliard, Roberto e Erasmo e até o jovem Johnny Hooker. As melhores interpretações são as de Julio Andrade. Talvez o melhor ator de sua geração, Andrade dá um show também na hora de subir no palco. O que dizer quando ele sobe para canar “Não Creio em Mais Nada”, clássico do rei da depressão Paulo Sérgio? É demais o que a obra faz sentir, talvez chorar, e se deliciar. E principal: o respeito com todo esse material explorado na tela é lindo. Além de Andrade, há também interpretações belas de Seu Jorge (quem diria que um cantor seria passado para trás por um ator), por Jaloo, por Marjorie Estiano e pelo próprio Erasmo Carlos. Sua presença ali é mais do que simbólica. Parceiro do Rei e influência direta na formação da maioria dos cantores românticos da década de 1970, o Tremendão não precisa se esforçar para cantar bem. Basta estar lá e cantar uma das faixas. Ele é o patriarca de uma família um pouco problemática e que comanda aquele espaço paradisíaco noturno. Somos apresentados à família por meio do personagem do policial Odair (Lee Taylor), que é convidado para ser o guarda-costas do neto homossexual, que se apresenta travestido nos shows. Odair aceita, encantado com aquele lugar. Não demora para descobrirmos que há uma estreita ligação entre ele e aquela família. Transbordando amor por todos os lados, “Paraíso Perdido” tem suas quase duas horas de música, intrigas amorosas e traumas do passado plenamente abraçados pela audiência, em uma experiência catártica poucas vezes vista no cinema brasileiro, ao menos no que se refere ao uso da música. Além de resgatar a música sentimental do passado, o trabalho mais belo da diretora de “Ó Paí, Ó” tem uma elegância no uso dos movimentos de câmera, dos campos e contracampos tão bem usados nas cenas de apresentações na boate (destaque para a cena em que uma personagem informa estar grávida usando libras) e uma direção de arte e uma fotografia em tons quentes. Um dos melhores acontecimentos deste estranho e sombrio ano.
Tully é um filme simples com proporções épicas e mais incrível que você imagina
Jason Reitman acostumou o público mal com seus três primeiros (ótimos) filmes, “Obrigado por Fumar”, “Juno” e “Amor sem Escalas”. Esse último tem quase 10 anos e, de lá para cá, entregou sucessivos trabalhos descartáveis. Mas ele finalmente reencontra seu bom cinema com “Tully” (2018), filme que marca sua terceira parceria com a roteirista Diablo Cody, do excelente “Juno”, e o apenas OK “Jovens Adultos”, completando assim uma trilogia involuntária sobre diferentes fases na vida de uma mulher. Novamente dirigindo Charlize Theron (sua atriz principal em “Jovens Adultos”), Jason Reitman conta a história de Marlo, mãe de dois filhos e à espera do terceiro. O marido (Ron Livingston) ama sua esposa e as crianças, mas bem que ele poderia ajudar mais, não? Porém, o ambiente é inteiramente favorável para Charlize dar um show como a mãe estressada, enfrentando depressão pós-parto e pronta para entrar em colapso. Na primeira metade do filme há uma curiosa sequência picotada pela edição monitorada por Reitman que convence qualquer um de que Marlo está pirando com a situação. É incrível como o poder da montagem influencia o espectador. Sou homem e vi de perto o drama de Marlo nessa parte que flerta com o visceral, mas imagino como muitas mulheres se sentiram, principalmente as mães. É a deixa para entrar em cena a babá Tully (Mackenzie Davis), que cuidará não somente da bebê enquanto os pais dormem (ou fazem outras coisas), mas também da mamãe à beira de um ataque de nervos. Jason Reitman tem a comédia correndo nas veias, afinal é filho de Ivan Reitman, diretor de importantes exemplares do gênero nos anos 1980, como “Almôndegas”, “Os Caça-Fantasmas” e “Irmãos Gêmeos”. Ele não faz filmes tão populares quanto o pai, mas exercita um estilo de humor muito mais contido, maduro, dramático, sempre em busca do lado humano dos personagens, focando num tom mais sério e, ao mesmo tempo, cínico. É um cara que se dá bem escrevendo seus próprios roteiros sem jamais trair suas influências. Mas quando ousa narrar histórias sobre mulheres, Reitman, como homem, sabe muito bem que não teria como ser justo na abordagem e nunca conseguiria entendê-las profundamente. Mas isso não quer dizer que não possa tentar. E faz o certo ao contar com a colaboração de Diablo Cody para investigar a alma feminina. “Tully” é mais um filme que comprova que a roteirista e o diretor nasceram um para o outro quando o assunto é cinema. Jason Reitman traduz com muita sensibilidade um texto extremamente honesto de Diablo Cody, que engana quem pensa que já viu de tudo sobre filmes de maternidade. E só temos a certeza disso no final de explodir cabeças; uma conclusão que torna praticamente impossível destrinchar as qualidades de “Tully” sem dar spoilers. Mas basta você saber que não é exatamente a depressão pós-parto que diferencia “Tully” da maioria dos filmes sobre mães. O que atualiza um tema tão explorado pelo cinema para o século 21 é a proximidade do espectador com o desabafo íntimo, confidencial, realista de uma mulher de 40 anos sobre sua rotina, as dificuldades do casamento, e de ser mãe; bem como o equilíbrio das expectativas de uma vida que se anuncia sem surpresas daqui para frente com a sensação de tempo perdido, o excesso de ansiedade, a velocidade do dia, das informações, e a distância cada vez maior do que faz alguém se sentir jovem. É um filme simples em sua forma, mas de proporções épicas quando notamos seus verdadeiros significados. Diablo Cody mostra que aceitação não precisa ser uma punição. Sim, a bagagem pesa, mas Cody lembra que juventude e velhice estão muito mais ligadas a sensações e atitudes capazes de dialogar em harmonia e ignorar nossos limites físicos. O que Reitman faz é abrir seu coração, admitir que está disposto a aprender e confiar 100% em sua roteirista e suas atrizes, porque Charlize e Mackenzie estão excelentes e a química entre elas é mais incrível que você imagina. São pontos que levam “Tully” a figurar entre os melhores filmes de Jason Reitman, que agora tem quatro “clássicos” em sua filmografia.
Han Solo mostra que “fan service” é pouco para sustentar um filme
Han Solo conhecendo Chewbacca? Confere. Han e Chewie entrando na Millennium Falcon pela primeira vez? Confere. A Millennium Falcon fazendo o Percurso de Kessel em menos de 12 parsecs? Tudo lá! Só faltou inspiração para o diretor Ron Howard e os roteiristas Lawrence e Jonathan Kasdan entregarem uma aventura empolgante e surpreendente em “Han Solo: Uma História Star Wars”. Afinal, era o que um dos personagens mais adorados da saga criada por George Lucas merecia. Mas esse filme de origem não combina com ele. Não se deve culpar Alden Ehrenreich, porque o garoto faz um trabalho competente emulando trejeitos e o espírito do contrabandista e mercenário eternizado por Harrison Ford. E não se limita a imitá-lo, esforçando-se para entregar sua própria versão de um jovem Han Solo anos antes de encontrar Luke Skywalker, Obi-wan Kenobi, C-3PO e R2-D2 numa certa cantina em Tatooine. Alden é um novo Han e consegue fazer o público aceitar o personagem numa versão diferente da eternizada por Harrison Ford. O processo é similar à aprovação de Roger Moore, Pierce Brosnan ou Daniel Craig num papel que nasceu e entrou para a história do cinema com Sean Connery. Enfim, mérito do ator. O problema de “Han Solo: Uma História Star Wars” é a impressão de que Lawrence Kasdan – autor dos textos de “O Império Contra-Ataca”, “O Retorno de Jedi” e “O Despertar da Força” – entrou nessa pela grana, quando ele mesmo demonstrou em entrevistas que estava de saco cheio de “Star Wars”. Teve a companhia do filho, Jonathan Kasdan, para escrever o filme. Mas, diante do resultado, fica clara a razão pela qual Phil Lord e Chris Miller, os diretores demitidos no meio das filmagens, entraram em colisão com o veterano roteirista e acabaram defenestrados pela Lucasfilm. Responsáveis por “Tá Chovendo Hambúrguer”, “Uma Aventura Lego” e a versão cinematográfica de “Anjos da Lei”, Lord e Miller nasceram da comédia. Lawrence Kasdan é bem mais sério e um talento consagrado de um cinema mais classudo, operístico. E isso não combina muito com o estilo de Han Solo, quando ele ainda não conheceu elementos dramáticos mais grandiosos, como o amor verdadeiro, a nobreza dos jedi, a mística em torno da Força e o sacrifício exigido por uma guerra. É provável que Lord e Miller tenham tentado quebrar o gelo e imprimir um tom menos sisudo. Isso não quer dizer que a intenção era avacalhar e deixar Solo com cara de bobo, afinal devem ser fãs de “Star Wars”, como todo diretor de sua geração. Mas, provavelmente, a dupla percebeu que o filme podia ser, no mínimo, mais divertido, e com isso mais eletrizante e, por que não, emocionante. Coisa que o substituto, Ron Howard, não fez. Porque o tom de “Han Solo” é frio, lento e, por vezes, sonolento. O filme, não o personagem. A verdade é que o protagonista passa a sensação de estar em outro filme. Assim como Donald Glover como o jovem Lando Calrissian, que honra o personagem interpretado por Billy Dee Williams na trilogia original, mas tem pouco tempo para fazer algo inesperado – embora isso seja exatamente que se espera de Donald Glover. Como sempre, Ron Howard entrega o que pediram. Respeitou 100% o Kasdan pai e a amiga e presidente da Lucasfilm, Kathleen Kennedy, que lhe confiou seu produto. Sim, essa é a palavra que define “Han Solo: Uma História Star Wars”: produto. Mas se Howard ficar para possíveis sequências, afinal Alden Ehrenreich assinou para três filmes, talvez tenha como pedir um texto mais leve e inspirado, para entregar finalmente um filme de verdade, porque é um cineasta que sabe como se faz. E uma nova abordagem é inevitável, pois Lawrence Kasdan admitiu que esta foi sua última contribuição para “Star Wars”. É aquela velha história: “Han Solo” reafirma que filme não se faz somente com fan service. É preciso paixão aliada à habilidade de se contar uma história que, aqui, foi concebida como uma lista de “eventos” que precisavam ser mostrados e ficou muito difícil para Howard sair disso. É um filme tão errado que nem mesmo há um vilão – o que não é uma regra, mas neste caso a trama precisava desesperadamente de um (mesmo que fosse um vilão patético). Assim como era necessário ver uma cena de ação decente, capaz de tirar a situação do marasmo. Elas existem, mas são modorrentas quando temos um protagonista aficcionado por velocidade numa década em que o cinema nos deu algo como “Mad Max: Estrada da Fúria”. Em vez disso, “Han Solo” tem muito falatório, flerta superficialmente com política e aposta tudo em referências da saga para os fãs mais ardorosos. A estranheza aumenta com relação à abordagem cinematográfica da produção. Desde que a Disney comprou a Lucasfilm, “Star Wars” explorou cenários e planos abertos, gigantescos, uma herança da câmera de Peter Jackson em “O Senhor dos Anéis”, que tem os filmes mais influentes do século e poucos notaram. É só reparar o olhar épico, que preenche toda a tela em “O Despertar da Força”, “Os Últimos Jedi” e até mesmo no problemático “Rogue One”. Mas isso não acontece com “Han Solo”. Como o filme é o mais caro de todos da saga, não se trata de restrição orçamentária, mas de opção assumida por planos mais fechados e cenas em ambientes internos. Talvez Howard quisesse homenagear a “simplicidade” que a produção do primeiro “Guerra nas Estrelas”, lançado em 1977, deve sugerir hoje em dia. Mas se o clássico de George Lucas é atemporal, “Han Solo” parece querer ser simplesmente antigo. Com tantos senões, é bom deixar claro que “Han Solo” não é ruim como outros lançamentos da saga espacial. Não há momentos constrangedores de envergonhar os fãs, como Anakin Skywalker (Hayden Christensen) se equilibrando num boi e dando frutinha na boca de Padmé (Natalie Portman), em “Ataque dos Clones”, ou Jar Jar Binks fazendo palhaçadas em “A Ameaça Fantasma”. Mas também não há uma cena que empolgue, embora haja uma surpresa no finalzinho, que parece deslocada neste ponto da saga, a ponto de parecer plantada para uma continuação – e, com isso, afetar não só o futuro da série, mas também seu passado. A curiosidade despertada por esta aparição inesperada é o que “Han Solo” deveria ter provocado no restante do filme. Surpresa, emoção, ansiedade. Infelizmente, o filme se contenta em ser a versão de cinema da wikipedia do protagonista. O encontro com Chewie, o jogo com Lando, a Millennium Falcon, etc. Mas precisava MESMO explicar o sobrenome do personagem?











