“Andora”, de Sean Baker, vence a Palma de Ouro do Festival de Cannes
O evento francês também premiou os favoritos "Emilia Perez", "The Substance", "Tipos de Gentileza" e o iraniano "The Seed of the Sacred Fig"
Primeiro filme árabe da Netflix causa polêmica no Oriente Médio
O primeiro filme original em árabe da Netflix, “Perfeitos Desconhecidos”, virou polêmica e enfrenta críticas pesadas de conservadores em todo o Oriente Médio desde seu lançamento na quinta passada (20/1). O longa está sendo acusado, entre outras coisas, de promover a homossexualidade, a perversão e a infidelidade, e até mesmo de fazer parte de um complô para derrubar a sociedade árabe. Um dos muitos remakes internacionais do sucesso italiano de mesmo nome, dirigido por Paolo Genovese em 2016, o filme acompanha um grupo de amigos libaneses que concorda em deixar os celulares desbloqueados na mesa durante um jantar, expondo interações picantes e segredos sombrios. Com um elenco liderado pela cineasta Nadine Labaki (“Cafarnaum”) e a estrela egípcia Mona Zaki (“Sherazade, Conte uma História”), a trama inclui um personagem gay e outras histórias consideradas tabu, que raramente são discutidas abertamente em muitos países do Oriente Médio. No Twitter, o filme foi alvo de uma enxurrada de mensagens homofóbicas, sob a acusação de incentivar a “degradação moral” dos valores islâmicos e “divulgar ideias ocidentais” decadentes. Um usuário acusou o filme de ser um “crime”, acrescentando que não deveria apenas ser banido, mas que todos os envolvidos deveriam enfrentar “processo” e serem julgados como criminosos. A maior surpresa de tudo isso é a Netflix acreditar que isso não aconteceria. Filmes tão inocentes quanto “Eternos” e “Amor, Sublime Amor” foram proibidos nos cinemas de boa parte do Oriente Médio por fazer referências à questões LGBTQIAP+. Como “Perfeitos Desconhecidos” foi lançado direto em streaming, evitou os censores de cinemas, tornando-se um dos poucos filmes a mostrar estas questões para o público árabe. A principal reação aconteceu no Egito (o filme é uma co-produção egípcia), particularmente contra Zaki, que em uma cena do filme tira a calcinha (embora nada seja visto, pois não há nudez). Um usuário do Twitter acusou Zaki – uma grande estrela no Egito – de fazer parte de uma agenda internacional para forçar mudanças sociais. Um advogado egípcio, Ayman Mahfouz, afirmou que o filme era uma “conspiração para perturbar a paz da sociedade árabe” e que Zaki era a “campeã” de tudo. Este mesmo advogado – que em 2020 processou o filho transgênero do ator egípcio Hesham Selim por um post no Instagram por supostamente promover a homossexualidade – está preparando um processo para remover a produção da Netflix. O filme também foi atacado pelo político egípcio Mustafa Bakri, que em comunicado ao presidente da Câmara dos Deputados do Egito disse que ele “incita a homossexualidade e a infidelidade”. No Egito, ao contrário dos países do Golfo Pérsico, a homossexualidade não é oficialmente ilegal, embora seja costumeiramente reprimida na sociedade. Apesar da reação feroz, o longa também recebeu apoio de segmentos progressistas da comunidade árabe, com muitas pessoas elogiando tanto o enredo – por levantar tópicos da vida real muitas vezes ignorados – quanto a própria produção, ao mesmo tempo em que criticam as atitudes retrógradas daqueles que o atacam. “Árabes enlouquecendo por causa de um filme que mostra cônjuges infiéis, adolescentes sendo adolescentes, personagens gays… me faz perceber que não estamos nem 1% perto de discutir temas como seres civilizados em vez de nos fecharmos em uma bolha hipócrita reprimida”, disse um usuário do Twitter, em meio a uma campanha com uma hashtag que se traduz como #EuTambémSouUmPefeitoDesconhecido. Uma das maiores estrelas internacionais do Egito, Amr Waked, foi além e tuitou que qualquer um que estivesse “com medo” de que um filme pudesse mudar sua fé não tinha fé. Graças à polêmica, “Perfeitos Desconhecidos” tem sido um grande sucesso até agora, liderando as paradas de visualização da Netflix na região e chamando a atenção do mundo. Na França, atualmente é o sexto título mais popular da plataforma. Veja abaixo o trailer do filme dublado em português.
Clash confina tensões da Primavera Árabe num camburão
O filme egipcio “Clash” trata das turbulências que têm atingido o país após o que se convencionou chamar de Primavera Árabe e a revolução egípcia de 2011. O diretor Mohamed Diab focaliza momentos que se seguiram à deposição do presidente eleito Mohamed Morsi, da Irmandade Muçulmana, derrubado pelos militares em 2013 por meio de um golpe, que produziu muitos protestos nas ruas e confrontos que marcaram um país dividido. Para abordar a questão da radicalização política que envolve os dois grupos principais – os militares e a Irmandade Muçulmana – , além da participação de grupos minoritários – como os cristãos e os judeus – e até a atuação da imprensa, a estratégia do cineasta foi agrupá-los num único dia de protestos intensos, pela cidade do Cairo, dentro de um camburão. Presos extraídos dos protestos, os diferentes personagens convivem obrigatoriamente uns com os outros e têm de lidar com suas diferenças e seus ódios recíprocos. Tudo se passa, claustrofobicamente, dentro do camburão, o tempo todo. A rua é vista de lá, os muitos protestos, a repressão policial, os tiroteios, as bombas, tudo está lá, mediado pela velha caminhonete-prisão. Quando a porta do camburão se abre, o horizonte se insinua, mas logo ela se fecha e voltamos à tensa dinâmica desse carro-prisão. A filmagem é muito tensa e intensa. A agitada câmera na mão chega a incomodar, mas isso é intencional, nos põe no olho do furacão. O tempo decorrido é o de um dia de protestos no centro de Cairo, absolutamente revelador do ambiente de confronto, aparentemente intransponível, que tomou conta do Egito. O encontro dos detidos no camburão mostra a face humana, óbvia, que todos têm, encastelados em suas verdades políticas, religiosas, comportamentais. É, pelo menos, uma tentativa de empatia, de se colocar no lugar do outro. Única forma de procurar compreender algo para além das verdades ideológicas estabelecidas por cada grupo. A imprensa, que se arrisca nesse ambiente conturbado, em busca do registro dos fatos, se sai bem, na visão do filme. Não sem registrar suas discordâncias, representadas pelos dois jornalistas trancafiados. O diretor Mohamed Diab já é conhecido do público brasileiro pelo filme ”Cairo 678”, de 2010, que tratava do machismo e do assédio sexual às mulheres da cidade do Cairo, nos ônibus. Um trabalho muito bom. Mas “Clash”, do ponto de vista cinematográfico, é mais criativo na concepção e execução dos planos. Indica, portanto, uma evolução técnica do trabalho desse cineasta, que merece toda a atenção. Se mais não for, por sua capacidade de lidar no cinema com questões pungentes do seu tempo e do seu país.


