Michèle Morgan (1920 – 2016)
Morreu Michèle Morgan, uma das maiores atrizes francesas do século 20, que deixava os homens de quatro com “os mais belos olhos” do cinema, conforme descreviam inúmeros elogios. Ela tinha 96 anos e faleceu na terça (20/12). Nascida Simone Renée Roussel na data bissexta de 29 de fevereiro de 1920, ela acreditava que era por causa disso que teve carreira tão longa. “Este privilégio de envelhecer quatro vezes mais devagar do que os outros foi o primeiro da longa série de golpes de sorte que tive ao longo da minha existência”, chegou a dizer numa entrevista. Ela começou a filmar aos 16 anos, fazendo figuração em “Vida Parisiense” (1936), de Robert Siodmak, mas após ficar nas sombras em quatro filmes foi surpreendentemente promovida a protagonista em “Mulher Fatal” (1937), sob direção de Marc Allegret, vivendo logo o papel-título, uma bad girl de 17 anos, levada a julgamento por acidentalmente matar seu amante, após já ter tido – escândalo! – quatro amantes antes dele. Sua carreira decolou rapidamente. Allegret aproveitou o sucesso e voltou a dar-lhe um papel precoce em “Veneno” (1938), como amante de Charles Boyer, intérprete de um engenheiro casado, cuja mulher estava grávida. Mas foi o mestre Marcel Carné que a colocou definitivamente no imaginário popular ao escalá-la ao lado de Jean Gabin em “Cais das Sombras” (1938). Considerado uma obra-prima do cinema francês, “Cais das Sombras” girava em torno de um desertor do exército, que encontrava problemas numa cidadezinha. A censura, porém, proibiu Gabin de ser chamado de desertor, e Carné precisou ser criativo para explicar seu estado de fuga. O importante é que todos a quem encontra são moralmente corruptos, exceto um cachorro, que se torna seu amigo, e Nelly, a personagem de Morgan, namorada maltratada de um gângster e vítima de um padrasto abusivo. Depressivo como as neblinas de seu título francês, o filme passa longe do final feliz e mesmo assim se tornou popular, a ponto de ser citado como principal influência de “Casablanca” (1942). É nesse filme que Jean Gabin lhe murmura: “Você têm os olhos mais lindos…” e ela lhe responde: “Me Beija”. A intensidade do olhar cristalino e os cabelos loiros deixaram o mundo inteiro apaixonados. O sucesso de “Cais das Sombras” gerou novas parcerias entre Gabin e Morgan, como “Recife de Coral” (1939) e “Águas Tempestuosas” (1941), mas logo a atriz foi para Hollywood, que naquela época via prestígio em contratar intérpretes europeias, como Greta Garbo, Marlene Dietrich, Ingrid Bergman e Viveca Lindfors. Em Hollywood, ela participou de “E as Luzes Brilharão Outra Vez” (1942), ao lado de Paul Henreid, “O Encontro em Londres (1943), com Alan Curtis, “A Lua a Seu Alcance” (1943), contracenando com ninguém menos que Frank Sinatra, e o clássico absoluto “Passagem Para Marselha” (1944), em que filmou com o astro e o diretor de “Casablanca”, respectivamente Humphrey Bogart e Michael Curtiz. Alguns desses filmes se passavam na França. De modo que ela não chegou necessariamente a “voltar” em 1946, quando Jean Delannoy a escalou na adaptação de André Gide “A Sinfonia Pastoral”, como uma mulher que encanta pai e filho. Por seu desempenho, Michéle Morgan se tornou a primeira intérprete vencedora do prêmio de Melhor Atriz no Festival de Cannes. Ainda mais célebre do que em sua primeira passagem por Hollywood, ela foi entronizada de vez no imaginário como uma femme fatale ao ser escalada em alguns filmes noir, particularmente “O Ídolo Caído” (1948), do mestre do gênero Carol Reed. Na trama, escrita por outro mestre, o escritor Graham Greene, adaptando seu próprio conto original, ela vive a amante que precipita o ciúmes mortal de uma esposa, fazendo-a arriscar a própria vida para conferir a traição do marido, um funcionário da embaixada em Londres, o que conduz a um acidente fatal e desperta a suspeita de assassinato na polícia. Ela retomou a parceria com Delannoy em seus filmes seguintes, todos com grande impacto de público e crítica, como “Encontro com o Destino” (1948), “Amar-te É Meu Destino” (1952), “Falsa Obsessão” (1954) e a antologia “Destino de Mulher” (1954), no qual viveu Joana D’Arc. Além de Joana D’Arc, Michéle Morgan também encarnou Josefina em “Napoleão” (1955) e Maria Antonieta em “O Calvário de uma Rainha” (1956), novamente sob direção de Delannoy, uma trilogia de mulheres que marcaram a História da França. Entre os grandes filmes desta fase ainda incluem a parceria com o diretor Jean Renoir em “As Grandes Manobras” (1955), o astro Yves Montand em “O Homem que Vendeu a Alma” (1955) e o cineasta André Cayatte em “O Espelho de Duas Faces” (1958) – que seria refeito por Barbra Streisand em 1996. Sua filmografia, porém, sofreu grande impacto com a mudança radical de gostos trazida pela nouvelle vague, cujos cineastas desprezavam o cinema comercial francês. Mesmo assim, ela trabalhou com Claude Chabrol em “A Verdadeira História do Barba Azul” (1963). Seu último grande sucesso foi “Benjamin, o Despertar de um Jovem Inocente” (1968), como um condessa que treina um jovem (Pierre Clémenti) nas artes da sedução, e o faz praticar com Catherine Deneuve e com ela própria. Aparecendo cada vez menos, Morgan ainda fez dois filmes de Claude Lelouch, “O Gato e a Rainha” (1975), seu derradeiro papel de protagonista, e “Um Homem, Uma Mulher: 20 Anos Depois” (1986), até se despedir do cinema com “Estamos Todos Bem” (1990), de Giuseppe Tornatore, num desfecho realizado na companhia de Marcello Mastroianni. Michèle Morgan participou de aproximadamente 70 filmes e foi eleita pelo público como a “atriz francesa mais popular” de sua época, em dez ocasiões distintas. Os fãs não podiam se desviar de seu olhar. Mas, de forma irônica pela quantidade de mulheres arrebatadoras que interpretou, sua beleza era considerada fria, melancólica até, o que a tornou pouco vista em comédias e a fez reconhecer, a certa altura: “A tristeza é o meu elemento”. Ao comunicar seu falecimento, a família da atriz resumiu de forma singela: “Os mais belos olhos do cinema fecharam-se definitivamente”.
Guy Hamilton (1922 – 2016)
Morreu o diretor inglês Guy Hamilton, responsável por alguns dos filmes mais famosos de James Bond e grandes clássicos do cinema britânico. Ele faleceu na quarta (20/4), aos 93 anos, num hospital em Palma de Maiorca, na Espanha, onde residia há quatro décadas. Apesar do passaporte britânico, Hamilton nasceu em Paris, em 16 de setembro de 1922, onde seus pais trabalhavam a serviço da Embaixada do Reino Unido. Ele começou a carreira ainda na França, aos 16 anos, como batedor de claquete de um estúdio de cinema de Nice. Mas precisou fugir quando os nazistas avançaram sobre o país. No barco em que rumava para a África formou amizade com outro “britânico parisiense” em busca de asilo, o escritor Somerset Maugham (“O Fio da Navalha”). O encontro o inspirou a se alistar na Marinha britânica e realizar diversas missões de resgate de compatriotas em fuga da França ocupada. Ele próprio se viu enrascado quando seu barco foi afundado por nazistas, e dizia que devia a vida aos heróis da resistência, especialmente à bela francesa de 18 anos Maria-Therese Calvez, inspiradora, em sua memória, de dezenas de Bond girls. Após a guerra, ele se reuniu com sua família em Londres, onde retomou seus planos de trabalhar com cinema. Logo começou a estagiar na London Film Productions, exercendo a função de diretor assistente sem receber créditos, em clássicos como “Seu Próprio Verdugo” (1947), de Anthony Kimmins, e “Anna Karenina” (1948), de Julien Duvivier, antes de ganhar o respeito de Carol Reed, que lhe deu seus primeiros créditos profissionais e se tornou seu mentor. Hamilton assistiu Reed na criação de grandes clássicos do cinema britânico, como “O Ídolo Caído” (1948), o fabuloso “O 3º Homem” (1949), estrelado por Orson Welles, e “O Pária das Ilhas” (1951), em que conheceu sua futura esposa, a atriz franco-argelina Kerima. A parceria deixou nele uma marca profunda. “Carol era basicamente meu pai”, ele observou, em entrevista ao jornal The Telegraph. “Ele me ensinou tudo o que sei. Eu o adorava.” Outra experiência marcante foi trabalhar como assistente de John Huston no clássico “Uma Aventura na África” (1951), produção estrelada por Humphrey Bogart e Katharine Hepburn, realizada entre bebedeiras e surtos de disenteria na savana africana, que serviu para demonstrar ao jovem tudo o que podia dar errado numa filmagem. Os rigores de “Uma Aventura na África” lhe encheram de confiança para iniciar sua carreira como diretor. Hamilton conseguiu convencer o produtor Alexander Korda que podia completar um filme inteiro em três semanas, e seu mentor Carol Reed aconselhou-o a estrear com um thriller de comédia, pois teria o dobro de chances de acertar, fosse na tensão ou na diversão. O resultado foi a adaptação de “O Sineiro” (1952), considerada um das melhores produções baseadas na literatura de mistério de Edgar Wallace. A boa recepção lhe rendeu convites para dirigir mais filmes do gênero. Vieram “Um Ladrão na Noite” (1953) e “Está Lá Fora um Inspetor” (1954). Mas para se firmar como grande diretor, Hamilton foi buscar inspiração em suas aventuras reais de guerra. “Escapando do Inferno” (1955) narrava a fuga de um grupo de prisioneiros de um campo de concentração nazista e foi rodada no castelo de seu título original, “The Colditz Story”. Baseado no livro de memórias de P.R. Reid (interpretado por John Mills no filme), o longa provou-se tão ressonante que sua trama acabou resgatada numa série de TV, duas décadas depois – “Colditz”, que durou três temporadas entre 1972 e 1974. O sucesso continuou com “A Clandestina” (1957), um filme incomum para a época, sobre o poder destrutivo da paixão sexual, envolvendo um capitão de navio (Trevor Howard) e uma jovem clandestina mestiça (a italiana Elsa Martinelli). E persistiu com a comédia “Quase um Criminoso” (1959), em que James Mason finge deserção para a União Soviética para processar os jornais por calúnia e sustentar seu plano de uma vida de luxo nos EUA. Os acertos sucessivos lhe renderam o convite para assumir sua primeira produção a cores, “O Discípulo do Diabo” (1959), drama de época que havia perdido seu diretor em meio a choques com os egos de seus astros, Burt Lancaster, Kirk Douglas e Laurence Olivier. Ainda que o filme tenha representado seu primeiro fracasso comercial, o fato de Hamilton conseguir trabalhar/domar as feras foi tido como um feito, que lhe abriu o mercado internacional – seguiram-se a produção italiana “O Melhor dos Inimigos” (1961), estrelada por David Niven, e a coprodução americana “As Duas Faces da Lei” (1964), com Robert Mitchum. Quando os produtores Albert R. Broccoli e Harry Saltzman adquiriram os direitos de James Bond, Hamilton foi sua primeira opção para estrear o personagem nos cinemas. Mas o cineasta tinha a agenda ocupada, e a oportunidade foi agarrada por Terence Young. Dois anos depois, porém, Hamilton não voltou a recusar o convite, que considerou uma oportunidade de superar seu maior desgosto. Ele estava arrasado após filmar “The Party’s Over”, que foi proibido pelo comitê de censura por conter cenas polêmicas, como uma orgia envolvendo necrofilia. Foram meses de trabalho perdido – o longa só veio à tona muito depois e com inúmeros cortes. Com a censura atravessada na garganta, Hamilton resolveu ousar na franquia de espionagem e acabou realizando aquele que até hoje é o longa mais cultuado de James Bond, “007 Contra Goldfinger” (1964). Para começar, decidiu aumentar a temperatura sexual, apresentando, logo de cara, uma mulher nua coberta de ouro – a morte mais brilhante, literalmente, nas cinco décadas da série. A trama também destacava a Bond girl de nome mais chamativo, Pussy Galore (Honor Blackman), e a melhor ameaça a laser, apontada exatamente entre as pernas de um cativo 007. As tiradas do vilão também marcaram época – “Não, Sr. Bond, eu espero que você morra!”. Sem esquecer da música tema de Shirley Bassey, “Goldfinger”, uma das canções mais famosas do cinema, que Hamilton brigou com os produtores para incluir na abertura – “Eu não sei se vai fazer sucesso, Harry, mas dramaticamente funciona”, ele disse a Saltzman. Foi ainda “007 Contra Goldfinger” que estabeleceu os elementos mais icônicos dos filmes de James Bond, ao apresentar Sean Connery dirigindo seu Aston Martin repleto de armas secretas, seduzindo vilãs até torná-las aliadas, tomando martíni para flertar com o perigo e fumando com charme antes de explodir uma bomba. O longa rendeu o dobro de bilheteria dos dois filmes anteriores de 007. O que colocou Hamilton na mira de um rival, o agente secreto Harry Palmer. O cineasta filmou em seguida “Funeral em Berlim” (1966), o segundo filme da trilogia do espião que usava óculos, vivido por Michael Caine. Ele completou sua década vitoriosa com “A Batalha da Grã-Bretanha” (1969), recriação meticulosa e em escala épica do esforço da RAF (força aérea britânica) para impedir a invasão nazista ao Reino Unido. A produção talvez seja seu trabalho mais elogiado pela crítica, que resiste até hoje como um dos grandes clássicos de guerra. A ambiciosa realização de “A Batalha da Grã-Bretanha” confirmou que Hamilton era o diretor mais indicado para comandar a franquia 007, que começava a dar sinais de decadência, com o desastre representado pela falha de George Lazenby em substituir Connery em 1969. Convencidos disto, os produtores o trouxeram de volta para três filmes consecutivos, de modo a garantir uma transição tranquila entre Sean Connery, que voltou à saga oficial para se despedir pela segunda vez com “007 – Os Diamantes São Eternos” (1971), e Roger Moore, o novo James Bond a partir de “Com 007 Viva e Deixe Morrer” (1973). Para emplacar Moore, Hamilton contou até com a ajuda de um Beatle, Paul McCartney, que compôs “Live and Let Die” como tema da estreia do ator. Mas foi o filme seguinte, “007 Contra o Homem com a Pistola de Ouro” (1974), que soube explorar melhor a mudança de intérprete, apresentando um Bond mais divertido, relaxado e simpático. A franquia praticamente renasceu com a adoção de elementos cômicos, que Hamilton já considerava um diferencial em “Goldfinger”, além de se tornar mais extravagante, com carrões, jatos e mulheres sempre lindas. James Bond virou um playboy. Depois de três “007” seguidos, Hamilton voltou à guerra. Foi dirigir Harrison Ford, recém-consagrado pelo sucesso de “Guerra nas Estrelas” (1977), em “O Comando 10 de Navarone” (1978), continuação do clássico “Os Canhões de Navarone” (1961). Mas, acostumado a blockbusters, ele entendeu o sucesso moderado obtido pela produção como hora de mudar de estilo. Quis mudar tudo, diminuir o ritmo, e optou por trocar a ação intensa pelas tramas cerebrais de mistério que lançaram sua carreira. Assim, realizou duas adaptações consecutivas de Agatha Chistie. “A Maldição do Espelho” (1980) registrou a última aparição da personagem Miss Marple no cinema, vivida por Angela Lansbury, enquanto “Assassinato num Dia de Sol” (1982) foi o penúltimo filme com Peter Ustinov no papel do detetive Hercule Poirot. Filmada nas ilhas de Maiorca, esta produção acabou tendo impacto na vida pessoal do cineasta, que, impressionado pela locação, convenceu-se a abandonar sua residência na Inglaterra para passar o resto de sua vida no litoral espanhol com sua esposa. Hamilton já fazia planos de aposentadoria e não filmava há três anos quando foi convencido pela MGM a fazer sua tardia estreia em Hollywood. O projeto era basicamente lançar um 007 americano, baseado num personagem igualmente extraído de uma franquia literária de ação. Só que a crítica não perdoou a tentativa apelativa. Estrelado por Fred Ward como um agente secreto a serviço da Casa Branca, “Remo – Desarmado e Perigoso” (1985) foi considerado um James Bond de quinta categoria. E a produção, que ia inaugurar uma franquia, se tornou o maior fracasso da carreira do diretor. Resignado, ele decidiu encerrar a carreira. Mas nos seus termos, lembrando o conselho precioso de Carol Reed. Se tinha começado com um thriller de comédia, também sairia de cena com chances de motivar meio riso ou meia aflição. E deixou a cortina cair com “De Alto Abaixo” (1989). Deu sua missão por comprida, e gentilmente recusou a proposta da Warner para, novamente, ajudar a lançar uma franquia de ação em Hollywood. Guy Hamilton disse não a “Batman” (1989).

