Rogério Samora (1959–2021)
O ator português Rogério Samora morreu nesta quarta (15/12), de 62 anos, após 147 dias hospitalizado em Lisboa. Ele estava internado desde julho, após sofrer uma parada cardíaca durante a gravação de uma novela. Conhecido no Brasil pela novela “Nazaré”, da Band, Samora sofreu um infarto nos estúdios da SIC enquanto gravava uma novela portuguesa, “Amor Amor”. O artista tem um papel importante na trama e, antes de se sentir mal, estava contracenando com outro ator conhecido dos brasileiros, Ricardo Pereira (“Deus Salve o Rei”, “Minha Vida em Marte”), que é o protagonista. Ele foi acudido rapidamente pelos colegas e equipes de produção da novela e levado para o Hospital Amador Sintra. Mesmo assim, não conseguiu se recuperar. Nascido em Lisboa, em 28 de outubro de 1958, Samora acumulava mais de 40 anos de carreira. Ele começou no teatro e participou de muitas novelas, séries, programas de televisão e filmes premiados, incluindo três longas do mestre Manoel de Oliveira, “Os Canibais” (1988), “Palavra e Utopia” (2000) e “O Quinto Império – Ontem Como Hoje” (2004), além de “Capitães de Abril” (2000), de Maria de Medeiros, e “As Mil e Uma Noites” (2015), de Miguel Gomes, entre outras obras premiadas. Samora também fez dois filmes brasileiros: “Solidão, Uma Linda História de Amor”, de Victor di Mello, em 1989, contracenando com Tarcísio Meira, Maitê Proença, Nuno Leal Maia, Vera Gimenez e até Pelé, e “Diário de Um Novo Mundo”, de Paulo Nascimento, em 2005, ao lado de Edson Celulari e Daniela Escobar.
Ennio Morricone (1928 – 2020)
O grande compositor Ennio Morricone, criador de trilhas sonoras inesquecíveis, morreu nesta segunda-feira (6/7) em Roma aos 91 anos, por complicações de uma queda sofrida na semana passada. Ele teve uma carreira de quase 70 anos como instrumentista e 60 anos como compositor de obras para o cinema, TV e rádio. Suas músicas acompanharam mais de 500 filmes, venderam cerca de 70 milhões de discos e criaram a identidade sonora de gêneros inteiros, como o spaghetti western, também conhecido como “bangue-bangue à italiana”, o giallo ultraviolento, os filmes americanos de máfia e reverberaram por toda a indústria cinematográfica italiana. “O Maestro”, como era conhecido, nasceu em 10 de novembro de 1928 em uma área residencial de Roma. Seu pai, Mario, tocava trompete, e este foi o primeiro instrumento que o jovem aprendeu a tocar. Graças a essa convivência, ele começou a compor músicas aos 6 anos. Quando tinha cerca de 8 anos, Morricone conheceu seu grande parceiro, o cineasta Sergio Leone, no ensino fundamental. Os dois voltaram a se encontrar duas décadas mais tarde para fazer História. O jovem Morricone começou a carreira compondo músicas para dramas de rádio, ao mesmo tempo em que tocava numa orquestra especializada em trilhas para filmes. “A maioria era muito ruim e eu acreditava que poderia fazer melhor”, disse ele numa entrevista de 2001. Ele trabalhou com Mario Lanza, Paul Anka, Charles Aznavour, Chet Baker e outros como arranjador de estúdio na gravadora RCA e com o diretor Luciano Salce em várias peças. Quando Salce precisou de uma trilha para seu filme “O Fascista” (1961), lembrou do jovem e deu início à carreira de compositor de cinema de Morricone. Depois de alguns filmes, Morricone reencontrou Leone, iniciando a lendária colaboração. O primeiro trabalho da dupla, “Por um Punhado de Dólares” (1964), marcou época e estabeleceu um novo patamar no gênero apelidado de spaghetti western – além de ter lançado a carreira de Clint Eastwood como cowboy de cinema. Os dois assinaram com pseudônimos americanos, e muita gente realmente acreditou que se tratava de uma produção de Hollywood, tamanha a qualidade. Ao todo, Morricone e Leone trabalharam juntos em sete filmes, dos quais o maestro considerava “Era uma Vez no Oeste” (1968) a obra-prima da dupla. O segredo da combinação é que Leone pedia para Morricone compor as músicas antes dele filmar, usando-a como elemento narrativo, muitas vezes dispensando diálogos. Nesta fase, ele também inaugurou duradouras parcerias com Bernardo Bertolucci e Pier Paolo Pasolini. Do primeiro, compôs a trilha de “Antes da Revolução” (1964), mas só retomou as colaborações na década seguinte. Já com o segundo, foi fundo na cumplicidade do período mais controvertido do diretor, embalando clássicos que desafiaram a censura, como “Teorema” (1968), “Orgia” (1968), “Decameron” (1971), “Os Contos de Canterbury” (1972) e “As Mil e Uma Noites” (1974). Serviu até de consultor musical para o mais ultrajante de todos, “Salò, ou os 120 Dias de Sodoma” (1975), proibidíssimo e talvez relacionado ao assassinato nunca resolvido do diretor naquele ano. Fez também muitas comédias picantes e uma profusão de obras sobre crimes e gângsteres de especialistas como Alberto Martino e Giuliano Montaldo. A verdade é que, no começo da carreira, Morricone chegava a compor até 10 trilhas por ano, entre elas composições de clássicos como “De Punhos Cerrados” (1965), de Marco Bellochio, e “A Batalha de Argel” (1966), de Gillo Pontecorvo. E o sucesso dos westerns de Leone – como “Por uns Dólares a Mais” (1965) e “Três Homens em Conflito” (1966), igualmente estrelados por Clint Eastwood – , aumentou muito mais a procura por seus talentos. Sua música não só ressoava em dezenas de filmes, como os demais compositores tentavam soar como ele, especialmente os que musicavam westerns italianos. Morricone ainda deixou sua marca num novo gênero, ao assinar a trilha de “O Pássaro das Plumas de Cristal” (1970), de Dario Argento, considerado o primeiro giallo, uma forma de suspense estilizada e sanguinária, que geralmente envolvia um serial killer e mortes brutais. Confundindo-se com a tendência, fez trilhas para outros giallos famosos, como “O Gato de Nove Caudas” e “Quatro Moscas Sobre Veludo Cinza”, ambos de Argento, além de “O Ventre Negro da Tarântula” e “Uma Lagartixa num Corpo de Mulher”, só para citar trabalhos feitos num período curto. As trilhas destes quatro filmes foram criadas em 1971, simultaneamente a uma dezena de outras, entre elas partituras de pelo menos três clássicos, “Decameron”, de Pier Paolo Pasolini, “Sacco e Vanzetti”, de Giuliano Montaldo, e “A Classe Operária Vai para o Paraíso”, de Elio Petri, sem esquecer uma nova colaboração com Leone, “Quando Explode a Vingança”. Para dar ideia, ele chegou a recusar o convite para trabalhar em “Laranja Mecânica”, de Stanley Kubrick, porque não daria conta. Requisitadíssimo, Morricone assinou as trilhas da franquia “Trinity”, que popularizou a comédia western italiana e virou fenômeno de bilheteria mundial, e começou a receber pedidos de produções francesas – teve uma forte parceria com o cineasta Henri Verneuil em thrillers de Jean-Paul Belmondo – e alemãs. Quando Clint Eastwood retornou aos EUA, convocou o maestro a fazer sua estreia em Hollywood, assinando a música de seu western “Os Abutres Têm Fome” (1970), dirigido por Don Siegel. Mas foi preciso um terror para que se estabelecesse de vez na indústria americana. Morricone tinha recém-composto a trilha do épico “1900” (1976), de Bernardo Bertolucci, quando foi convidado a trabalhar em “O Exorcista II: O Herege” (1977), contratado ironicamente devido a uma de suas obras menores, “O Anticristo” (1974). A continuação do clássico de terror decepcionou em vários sentidos, mas o compositor começou a engatar trabalhos americanos, como “Orca: A Baleia Assassina” (1977) e o filme que o colocou pela primeira vez na disputa do Oscar, “Cinzas do Paraíso” (1978). A obra-prima de Terrence Malick era um drama contemplativo, repleto de cenas da natureza, que valorizou ao máximo seu acompanhamento musical. E deu reconhecimento mundial ao trabalho do artista. Apesar da valorização, ele não diminuiu o ritmo. Apenas acentuou sua internacionalização. Musicou o sucesso francês “A Gaiola das Loucas” (1978), o polêmico “Tentação Proibida” (1978), de Alberto Lattuada, e voltou a trabalhar com Bertolucci em “La Luna” (1979) e “A Tragédia de um Homem Ridículo” (1981), ao mesmo tempo em que compôs suspenses/terrores baratos americanos em série. Dois terrores desse período tornaram-se cultuadíssimos, “O Enigma de Outro Mundo” (1982), em que trabalhou com o diretor – e colega compositor – John Carpenter, e “Cão Branco” (1982), uma porrada de Samuel Fuller com temática antirracista. Foi só após um reencontro com Sergio Leone, desta vez em Hollywood, que Morricone deixou os filmes baratos americanos por produções de grandes estúdios. Os dois velhos amigos colaboraram pela última vez em “Era uma Vez na América” (1984), antes da morte de Leone, que aconteceria em seguida. Ambos foram indicados ao Globo de Ouro e o compositor venceu o BAFTA (o Oscar britânico). A repercussão de “Era uma Vez na América” levou o maestro a trabalhar em “A Missão” (1986), de Roland Joffé, que como o anterior era estrelado por Robert De Niro. O filme, passado no Rio Grande do Sul, rendeu-lhe a segunda indicação ao Oscar. Em seguida veio seu filme americano mais conhecido, novamente com De Niro no elenco. “Os Intocáveis” (1987), de Brian De Palma, foi sua terceira indicação ao Oscar – e, de quebra, lhe deu um Grammy (o Oscar da indústria musical). O compositor recebeu sua quarta indicação da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas por outro filme de gângster, “Bugsy” (1991), de Barry Levinson. Mas nunca se mudou para os Estados Unidos, o que lhe permitiu continuar trabalhando no cinema europeu – em obras como “Busca Frenética” (1988), de Roman Polanski, o premiadíssimo “Cinema Paradiso” (1988), de Giuseppe Tornatore, “Ata-me” (1989), de Pedro Almodóvar, e “Hamlet” (1990), de Franco Zeffirelli. Eventualmente, voltou a bisar parcerias com De Palma, Joffé e até fez alguns blockbusters de Hollywood, como “Na Linha de Fogo” (1993), em que reencontrou Clint Eastwood, “Lobo” (1994), de Mike Nichols, e “Assédio Sexual” (1994), novamente de Levison. Mas sua última indicação ao Oscar foi uma produção italiana, outra colaboração com Tornatore: “Malena” (2000). Na verdade, Morricone musicou todos os filmes de Tornatore desde “Cinema Paradiso”. Foram 10 longas e alguns curtas, até 2016. Seu ritmo só diminuiu mesmo a partir de 2010, quando, em vez de 10 trabalhos anuais, passou a assinar 4 trilhas por ano. Apesar de convidado, ele nunca trilhou um filme dirigido por Eastwood, decisão da qual mais se arrependia, mas recebeu das mãos do velho amigo o seu primeiro Oscar. Foi um troféu honorário pelas realizações de sua carreira, em 2007. Morriconi ainda veio a receber outro prêmio da Academia, desta vez pelo trabalho num filme: a trilha de “Os Oito Odiáveis”, western dirigido por Quentin Tarantino em 2015. Esta criação sonora também lhe rendeu o Globo de Ouro e o BAFTA. E ele fez sem ver o longa, no estúdio particular de sua casa. Grande fã de sua obra, Tarantino já tinha usado algumas de suas composições como música incidental em “Kill Bill”, “Django Livre” e “Bastardos Inglórios”. E deu completa liberdade para Morricone, que, em troca, disse que trabalhar com o diretor em “Os Oito Odiáveis” tinha sido “perfeito… porque ele não me deu pistas, orientações”, permitindo que criasse sua arte sem interferência alguma. “A colaboração foi baseada em confiança”. O maestro ainda ganhou muitos outros prêmios, entre eles 10 troféus David di Donatello (o Oscar italiano) ao longo da carreira – o mais recente por “O Melhor Lance” (2013), de Tornatore. Foi uma carreira realmente longa, que seu velho parceiro Tornatore transformou em filme, “Ennio: The Maestro” (2020), um documentário sobre sua vida e obra, finalizado pouco antes de sua morte, que deve ser lançado ainda neste ano. Mas a última palavra sobre sua vida foi dele mesmo. Morricone escreveu seu próprio obituário, que seu advogado leu para a imprensa após o anúncio de sua morte. “Eu, Ennio Morricone, estou morto”, começa o texto, em que o maestro agradeceu a seus amigos e familiares, e dedicou “o mais doloroso adeus” a sua esposa Maria Travia, com quem se casou em 1956, dizendo “para ela renovo o amor extraordinário que nos unia e que lamento abandonar”. Relembre abaixo alguns dos maiores sucessos do grande mestre.
As Mil e Uma Noites usa surrealismo para tratar a realidade
Muitas vezes, quando a gente se aproxima da chamada realidade, ela soa surreal. Com humor e ironia, as desgraças se convertem em estranhamentos. O excêntrico também pode ser visto como redentor. É próprio do cinema mesclar o cotidiano e o sonho, o real e o imaginário, a verdade factual e a ficção, de modo que essas coisas se embaralhem e se tornem indiscerníveis. E alguns cineastas trabalham, de modo evidente, com a realidade surreal; desestabilizam nossa percepção, exigem que deixemos de lado o conforto da narrativa clássica, como o norte-americano Wes Anderson, o sueco Roy Andersson, o chinês Jia Zhang Ke e o mestre espanhol Luís Buñuel, entre outros. Pois o português Miguel Gomes é um lídimo representante dessa vertente. Seus filmes “Aquele Querido Mês de Agosto” (2008) e, sobretudo, “Tabu” (2012) já eram demonstrações claras e bem sucedidas disso. A trilogia de filmes “As Mil e Uma Noites” sacramenta de vez a inovação narrativa do diretor, sem deixar margem a dúvidas. Esclareça-se, de início, que são três filmes distintos, que resultaram de uma metodologia única e da mesma estrutura formal, no caso, emprestada das “1001 Noites”, com Xerazade contando histórias ao rei, mas não é uma adaptação, nem tem nada a ver com os contos árabes. O que Miguel Gomes e sua equipe fizeram foi contratar jornalistas para colher fatos importantes, surpreendentes, significativos ou relevantes, que estivessem acontecendo em qualquer parte de Portugal naquele momento para, a partir deles, construir uma história ficcional que, muitas vezes, é quase documental e, outras vezes, embarca fortemente na fantasia. Quanto mais surreal, mais retrata Portugal em meio à crise de austeridade que assolou o país e a Europa. Mas os momentos se alternam. O primeiro filme, “O Inquieto”, dá conta das maldições que se abatem sobre o país, tem baleias que explodem, desempregados que contam suas histórias, o banho (coletivo) dos magníficos, promovido por um sindicalista em pleno inverno, e um galo que, de tanto exigirem que seja abatido, resolve falar e explicar o que acontece. O mal estar civilizatório é muito claro e as coisas não são o que aparentam ser. No segundo filme, “O Desolado”, o título já diz tudo: não parece haver solução, a desolação toma conta das vidas. Até uma juíza se verá tão aflita que chorará, em vez de ditar a sua sentença, o suicídio se impõe na saga de um cão fiel, que muda de dono e permanece capaz de amar da mesma forma a todos. Os animais acabam sempre abrindo o caminho da esperança, até na desolação. Esse é o mais bem realizado da trilogia e foi indicado por Portugal para representar o país no Oscar de filme estrangeiro. O terceiro filme, “O Encantado”, descobre que há vida e esperança na simplicidade e na paixão: no caso dos passarinheiros, em que aprendemos que os tentilhões podem ser ensinados a cantar, os passarinhos não nascem sabendo, aprendem com os mais velhos e podem aprender o canto de outra espécie, se forem treinados para tal. A poesia encontra seu lugar. A revolução dos cravos é lembrada, as recompensas afetivas ganham destaque. São as diversas faces dos homens e das suas circunstâncias, pensando em Sartre, o que Miguel Gomes mostra nessa trilogia, muito bem realizada, em que pesem alguns maus momentos, como “os homens de pau feito”, no primeiro filme. Já o do “Simão sem Tripas” é uma das histórias saborosas que os filmes têm a contar. Cada um dos filmes vale por si só, independe dos outros. É possível assistir a eles isoladamente e em qualquer ordem. Não são partes sequenciais. São diferentes histórias que se relacionam a diferentes momentos e espaços da vida portuguesa atual. Em conjunto, formam um painel amplo e diverso, bastante ilustrativo da sociedade que procuram retratar. “As 1001 Noites” de Miguel Gomes foi um dos principais destaques da 39ª. Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e o primeiro volume entrou em cartaz em circuito comercial. Não pode faltar no cardápio dos cinéfilos, que se alimentam do cinema autoral.

