As Memórias de Marnie emociona com sensibilidade sobrenatural
Não fosse a marca forte e de qualidade dos estúdios Ghibli, “As Memórias de Marnie” talvez não tivesse a boa recepção internacional que merecidamente teve. Afinal, não é assinado por Hayao Miyazaki e Isao Takahata, os dois nomes mais conhecidos do estúdio. Mas o filme de Hiromasa Yonebayashi é um primor em sua história sobre solidão, amizade e relações familiares, aliado a um crescente e instigante clima de mistério. O contexto é muito comum à cultura japonesa, que lida com o próximo de uma maneira mais distanciada, enquanto, paradoxalmente, imagina os espíritos com formas físicas, como comprovam obras referenciais do J-horror, como “Contos da Lua Vaga” (1953), de Kenji Mizoguchi, e “Kwaidan – As Quatro Faces do Medo” (1964), de Masaki Kobayashi. Não que “As Memórias de Marnie” se enquadre exatamente nessa categoria, embora a tangencie (os momentos que aproximam a animação de um horror gótico lembram, inclusive, certas produções do gênero da velha Hollywood). A animação deixa claro, desde o início, que há algo de estranho na garotinha loira que mora em uma mansão abandonada. O lugar só pode ser acessado quando a maré está baixa ou via barco. E essa dificuldade cria um objeto de fascinação para a solitária Anna. Quando ela visita a mansão pela primeira vez, logo percebe que o lugar está abandonado. Mas vê que as luzes estão acesas. E finalmente tem a primeira visão e contato com a nova amiga. Há nuances nesse relacionamento que permitem imaginar que a atração entre as duas é mais que amizade, uma espécie de amor romântico, graças a detalhes como a forma como tocam suas mãos num barco, o momento em que Anna a convida para sua casa e a cena da dança na festa patrocinada pelos pais aristocratas de Marnie. O que as torna íntimas é a solidão que ambas sentem. As duas são órfãs e, por meio de suas conversas e flashbacks, os encontros viram confidências, aproximando-as também do espectador. Embora ameace cair no melodrama, “As Memórias de Marnie” se contém, evitando a manipulação ao atingir seu pico emocional, lá pelo finalzinho, quando o filme revela seu verdadeiro tema, a autodescoberta. E quando também, junto com Anna, o espectador finalmente descobre quem de fato é Marnie. Belo e sensível, “As Memórias de Marnie” foi indicado ao Oscar 2016 na categoria de Melhor Animação.
As Memórias de Marnie trata da adolescência com encanto e magia
Provável último filme do estúdio Ghibli – que legou ao cinema obras-primas como “Meu Amigo Totoro” (1988), “A Viagem de Chihiro” (2001) e o recente “A Lenda da Princesa Kaguya” (2013) – , “As Memórias de Marnie” é um trabalho de uma sensibilidade e delicadeza ímpares. E mesmo que não chegue a ser tão perfeito como os citados acima, é um filme maravilhoso e emocionante – o que nos força a cair novamente no clichê já comum às obras do Ghibli: um verdadeiro poema em movimento. O filme conta a história da garota Anna, filha de pais adotivos, introvertida e solitária, que é enviada, por conta de problemas de saúde, para passar alguns dias na casa dos tios, no interior, que fica próxima a um lago. A rotina e um certo marasmo destes dias logo são quebrados quando a garota conhece Marnie, uma garota de cabelos loiros que parece ser a única habitante da mansão abandonada que fica do outro lado do lago. O filme não faz questão de disfarçar ou enganar o espectador, investindo no tom de magia desde o início. Assim, fica logo claro que Marnie não é uma garota comum. A relação entre as duas cresce com o tempo, com Anna encontrando em Marnie a amizade verdadeira que tanto procurava. Marnie, por sua vez, vê em Anna a possibilidade de (re)viver com alegria momentos que pareciam para sempre desaparecidos. Dirigido por Yomasa Yonebaiashi (“O Mundo dos Pequeninos”), Marnie tem uma traço mais tradicional – longe da ousadia estética de “Kaguya”, por exemplo – , mas compensa isso com uma animação fluída e natural, além de uma paleta de cores absurdamente linda, capaz de transformar cada quadro em um verdadeira pintura. Some-se a isso uma trilha sonora perfeita e o resultado não é menos que fascinante. O filme é baseado no livro homônimo da escritora inglesa Joan G. Robinson, e traça um primoroso registro de diversas questões da adolescência, como a falta de habilidade em lidar com os sentimentos, a necessidade de pertencimento e o desejo quase insuportável de se sentir feliz e amada. Com Marnie, Anna aprende a lidar com seus sentimentos e a enfrentar suas dúvidas e frustrações, principalmente relativas à família que nunca conheceu – um arco que será devidamente trabalhado ao longo do filme. E mesmo quando dá uma derrapada em seu terço final, tornando-se quase redundante em suas revelações – outrora apresentadas de forma bem mais sutil e inteligente – é impossível não se emocionar ao extremo das lágrimas com os desdobramentos da relação entre Marnie e Anna, almas gêmeas que compartilham algo muito maior do que uma simples amizade. Se este for o canto do cisne dos Estúdios Ghibli, que sucumbiu diante de um mercado cada vez mais comercial, que assim o seja: uma despedida leve, despretensiosa, mas tão repleta de magia e emoção quanto se poderia desejar.

